Revista Cinética Cultura e Pensamento
A Questão Humana:
A gestão da vida entre o nazismo e o neoliberalismo
Ilana Feldman Indicações

Simon, um sujeito meticuloso, sóbrio e calculista, é psicólogo e diretor de Recursos Humanos de uma corporação multinacional alemã sediada na França. Após demitir mais de mil trabalhadores, em um processo de "reengenharia" da empresa para melhor "racionalização" das linhas de produção, é solicitado pelo vice-presidente a investigar, em sigilo, o estado mental de um importante diretor-executivo, que apresentaria um comportamento supostamente estranho. A partir de então, do imbricamento entre técnicas motivacionais, delação, controle, metáforas bélicas e modernas formas de administração, A Questão Humana, terceiro filme do francês Nicolas Klotz, de 2007, em parceria com Elisabeth Perceval e a partir do romance homônimo de François Emmanuel, tratará de fazer emergir, no bojo do capitalismo transnacional, linhas de continuidade entre o nazismo e as democracias liberais-empresariais.

Por meio da percepção de Simon, a que o filme se conecta, enredado em uma teia de relações de poder que envolvem o passado e os vínculos de seus superiores com a Alemanha nazista, A Questão Humana enseja cinematograficamente, com a precisão, o rigor e a sobriedade próprios ao universo mental e existencial de seu protagonista, a tese de que entre os governos democráticos e aqueles totalitários haveria uma linha de continuidade que atravessaria um e outro regime, por meio das racionais, neutras, objetivas e eficientes técnicas de gestão da vida. Antes ainda, os modos de gestão da vida e da morte - isto é, a convergência entre a biopolítica e a tanatopolítica - constituiriam o fundamento mesmo dos modernos estados-nação ocidentais, calcado no histórico desenvolvimento de técnicas de racionalização da produção, otimização do trabalho, regulação da população e seleção dos indivíduos mais aptos, puros, eficientes, competitivos e, hoje, "carismáticos". Indivíduos que, por seus genes ou por seus desempenhos, tanto podem ser brutalmente eliminados de uma nação como ejetados de um sistema de valores que significa o pertencimento a uma corporação.

Nesse sentido, A Questão Humana não lamenta, como em tantos filmes sobre o mundo do trabalho, os danos que o desemprego pode causar sobre o estado mental e a posição social de um indivíduo, como em A Agenda (Laurent Cantet, 2001) ou O Corte (Costa Gavras, 2005), isto é, não lamenta os efeitos do capitalismo, mas, antes, questiona e critica os seus princípios: a lógica e a linguagem com a qual opera a economia capitalista, em sua faceta industrial e financeira (ou imaterial). Fazendo assim dialogar, por meio da linguagem cinematográfica, as teses e os percursos teóricos de autores como Hannah Arendt, Michel Foucault e Giorgio Agamben, o diagnóstico do presente postulado em A Questão Humana não trata, evidentemente, de identificar democracia e totalitarismo, nem de negar cinicamente os avanços e as conquistas dos governos democráticos, banalizando as atrocidades dos regimes totalitários, mas de explicitar que, em ambas as formas de governo, trata-se de uma mesma lógica de funcionamento: a redução da vida e da linguagem a uma dimensão meramente técnica, objetiva, neutra, instrumental e funcional. Inspirado pela notória frase do filósofo Jacques Derrida, que já disse que "a primeira vítima do nazismo foi a língua de Goethe", a questão propriamente humana a que se refere o filme é a linguagem - linguagem que teria sido seqüestrada pela racionalidade produtivista e pelas técnicas de gestão e otimização da vida.

A força política e a potência estética de A Questão Humana não estão, ao contrário do que pode parecer, na relevância de sua tese-diagnóstico, comuns a um cinema tradicionalmente chamado de político, mas no engajamento de sua proposta cinematográfica a uma tentativa de restituir à linguagem, pelas operações audiovisuais e pelas palavras, suas lacunas, sua hesitação, sua ambigüidade, sua improdutividade e sua ineficiência. Contra a totalização da vida e contra uma linguagem totalitária, desprovida de extracampos, não-sentidos e falsas pistas, A Questão Humana caminha sinuosamente, fazendo com que o rigor, a contenção e a meticulosidade, tanto dos enquadramentos quanto do corpo de Simon, se contaminem por uma progressiva desfuncionalização e desprogramação. Quando as evidências já não indicam uma verdade, se não por suas lacunas e ocultamentos, quando o psicólogo perde o controle sobre os sentidos precisos e sobre os desígnios de seu próprio corpo, em uma festa rave por exemplo, ou quando se deixa contaminar pela execução de uma música e pela sombra de tantas dúvidas, Simon, incorporado pelo ator Mathieu Amalric, com seu outrora impecável e bem cortado sobretudo, dorme pelos meio-fios de Paris, atônito pelo que não compreende e, simultaneamente, pelo que avista: a dimensão destrutiva de uma linguagem unicamente policialesca e produtivista.

Leia mais:

Entrevista com Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval, por Tatiana Monassa e Ruy Gardnier
http://www.contracampo.com.br/90/artentrevistaklotz.htm

"O nome das coisas", por Cléber Eduardo
http://www.revistacinetica.com.br/questaohumana.htm

Ilana Feldman é graduada em Cinema (UFF), mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da mesma universidade, onde também exerceu atividades docentes no curso de Estudos Culturais e Mídia, e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da USP. Como ensaísta e crítica, é colaboradora da revista Trópico e redatora da revista eletrônica Cinética. Como realizadora, dirigiu os filmes Almas Passantes – um percurso com João do Rio e Charles Baudelaire e Se tu fores.