Revista Cinética Cultura e Pensamento
Racismo fenotípico e estéticas da segunda pele
José Jorge de Carvalho Ensaios Críticos

Se algo caracteriza a nossa era, em todo o planeta, é a presença do racismo fenotípico intenso. Os seres humanos que classificamos como caucasianos, isto é, de pele clara, olhos claros, cabelos lisos e narizes finos - enfim, os “brancos” ocidentais, europeus em geral e muito particularmente os anglo-saxões - definiram um padrão de valor e beleza para toda a espécie humana e o impuseram (antes a ferro e fogo e atualmente através da indústria cultural e do controle político e financeiro) a todo o resto do mundo. Essa imposição começou no séc. XVI, quando os europeus conquistaram a América e consolidaram o tráfico de escravos da África para o Novo Mundo. A partir daí, a combinação de escravidão, colonialismo e capitalismo marcou a imagem do homem branco ocidental como superior aos não-brancos (que começaram a ver-se como não-brancos) dos demais continentes.

Esse racismo fenotípico cresceu ainda mais na época do alto imperialismo, alcançando dimensões definitivamente globais no final do séc. XIX, quando a auto-intitulada “raça branca” se impôs nos cinco continentes e forçou os colonizados do mundo (americanos, africanos, asiáticos, povos do Oriente Médio, da Ásia Menor e oceânicos) a aceitá-la como padrão de referência. E não somente a teoria racista moderna, formulada nos países ocidentais, como também a pedagogia para transformar o corpo branco ocidental em objeto de desejo universal e inconteste de referência foi produzida e imposta nas colônias dos impérios europeus. [1]

Essa referência generalizada do mundo ocidental como sinônimo de humanidade plena centrou-se primeiramente na superioridade militar (pois foi pelas armas que os europeus dominaram os outros continentes); logo, na econômica, por controlar o comércio e a expansão do capitalismo; paralelamente, o controle político, por impor e dispor dos regimes locais segundo seus interesses; depois, o controle científico e artístico, ao desqualificar os saberes e valores estéticos locais e universalizar os padrões ocidentais nas ciências e nas humanidades. Para culminar essa dominação, os próprios corpos dos europeus passaram a indicar, por coerção e rendição, as características físicas da raça humana superior. O significante mais sobressalente desses corpos europeus foi, sem dúvida alguma, a cor da pele, que foi complementada, ao longo do tempo da ocidentalização do mundo, por outras características físicas também secundárias do ponto de vista genotípico, como a altura, o formato dos olhos, do nariz, dos lábios, dos pomos da face e a textura dos cabelos.

Atualmente, os seres humanos, queiram ou não, são cada vez mais tratados de acordo com as características fenotípicas da sua pele. Em primeiro lugar, os não-brancos são tratados de um modo negativo e desqualificador pelos brancos; e, logo, os próprios não-brancos introjetam essa inferioridade fenotípica e passam a organizar suas vidas de acordo com a rejeição à ausência de brancura e também segundo seu esforço por emular essa mesma pretensa brancura. Desse modo, o racismo fenotípico cresce a cada dia e força a maioria das pessoas a tentar ajustar sua pele para aproximar-se, ainda que minimamente, do padrão de corpo ideal; ou, pelo menos, para afastar-se das imperfeições físicas que acreditam portar e com que se identificam a partir da sua consciência colonizada. Desde o início do século XX, com a difusão da linguagem cinematográfica, a operação de identificação passa da pele para o corpo como um todo, envolvendo a anatomia com sua gama de proporções e complexidades fisiológicas.

No início do século vinte, o racismo fenotípico era uma estrutura de discriminação que favorecia sempre os brancos e prejudicava exclusivamente os não-brancos. No momento presente, porém, cresce uma patologia de desconforto generalizado com a própria pele, não apenas entre os não-brancos, mas também entre os brancos. E, conforme veremos mais adiante, é esse desconforto que induz as pessoas, praticamente no mundo inteiro, a promoverem intervenções cada dia mais radicais, dolorosas e agonísticas (dada sua incapacidade a priori de resolver a auto-rejeição corporal que passaram a sofrer) no próprio corpo.

É uma questão controversa definir se a classificação dos seres humanos com base no fenótipo existiu sempre ou se é uma invenção do mundo moderno ocidental. Vários estudiosos têm procurado demonstrar, através de evidências arqueológicas e documentais, que as sociedades do mundo antigo, antes mesmo do mundo grego (como os hindus e os egípcios, por exemplo), já classificavam os grupos humanos entre aqueles compostos por pessoas mais claras e por outras mais escuras de pele; e atribuíam as qualidades positivas e desejadas (as qualidades dos nativos e de seus aliados) às pessoas de pele mais clara, jogando os seres humanos de pele mais escura na vala comum dos estranhos, dos inferiores, dos bárbaros, dos incapazes, dos inimigos ou dos perigosos em geral.

Inspirados na idéia dos vários tempos das desigualdades profundas (como o são as de gênero e as étnico-raciais), podemos denominar essa teoria como racismo de longa duração, ou de racismo monumental, se comparado com outra estrutura hierárquica de longa duração, que é a estrutura de gênero. É possível aproximar o tempo longo do racismo com o tempo longo da mulher, tal como teorizado por Julia Kristeva, por exemplo, ao discorrer sobre os vários tempos e gerações dos feminismos. [2] A desigualdade de gênero, ou o patriarcado, atravessou eras, civilizações, regimes políticos e econômicos, ao longo de milênios, chegando até os nossos dias com sua base ideológica ainda vigente e eficaz; esse mesmo tempo monumental parece ter ocorrido com o racismo fenotípico.

A formulação mais erudita e mais contundente politicamente acerca da existência desse racismo fenotípico de longa duração, ou monumental, foi produzida nos anos sessenta do século passado pelo grande cientista e humanista senegalês Cheik Anta Diop. [3] Utilizando as mais diversas fontes históricas, arqueológicas, lingüísticas e apoiando-se também em datações do carbono 14 por ele mesmo concebidas, Diop procurou demonstrar que o racismo fenotípico já estava presente há pelo menos 4 mil anos atrás, quando os primeiros códigos “civilizatórios” escritos atribuíram características morais distintas aos grupos de peles claras e aos de peles escuras. Segundo esse raciocínio, o racismo moderno se expandiu pelo planeta com tanta intensidade justamente porque se adaptou a um solo imaginário que já havia reservado um lugar de superioridade aos povos de pele clara.

Todavia, mesmo reconhecendo a sólida base documental da teoria de Cheik Anta Diop, parece um pouco difícil generalizar essa posição quando sabemos que as sociedades ditas antigas ou clássicas (e que supostamente formaram o que chamamos de mundo ocidental) não eram homogêneas fenotipicamente. Conseqüentemente, não eram exclusivamente brancas – pelo menos, não eram brancas do modo como as sociedades ocidentais exigem ser vistas atualmente. Assim, tanto os gregos como os romanos eram povos multiculturais e multi-étnicos. Duas questões importantes acerca da relação entre a pele e a cultura surgem dessa reavaliação do que chamamos de mundo clássico greco-romano.

Cheik Anta Diop foi provavelmente, em todo o século vinte, o maior autor individual que conseguiu desmontar cientificamente o mito racista ocidental da superioridade da civilização grega, como se essa representasse um milagre singular e irrepetível da inteligência, da moral, da política e da beleza – e, fator essencial na luta pela descolonização, como se os europeus modernos fossem herdeiros diretos dessa suposta superioridade civilizatória grega. Diop dedicou-se a mostrar que uma grande parte das supostas descobertas que caracterizaram o que aprendemos nas escolas como “milagre grego” foram, na verdade, não muito mais do que cópias explícitas (e reconhecidas, inclusive, pelos mesmos autores gregos da era clássica) de descobertas feitas pelos egípcios muitos séculos antes. Diop demoliu a hierarquização fenotípica dos seres produzida pelos imperialismos europeus ao demonstrar duas verdades paralelas e complementares: primeiro, que os egípcios eram negros e, ao contrário do que pregava a ideologia imperialista, foi então um conjunto de povos negros que formularam uma das bases do que chamamos de “civilização”.

Remando contra a corrente racista qures produzida pelos imperialismos europeus ao demoinstrar duas vedades paralelas e co-dependentee impera ainda hoje nas instituições acadêmicas dentro e fora do mundo ocidental, outros pesquisadores, como Martin Bernal [4] nos anos oitenta do século passado e Benjamin Isaac [5] na presente década, demonstraram que o mundo grego antigo não era um mundo “branco”, tal como atribuímos hoje uma brancura aos alemães e aos ingleses, por exemplo; muito pelo contrário, tratava-se de um mundo de muitas cores de pele e traços fenotípicos variados, dada a convivência secular e constante com egípcios, fenícios, persas e judeus, todos de pele escura, ou não-branca (se utilizamos a pele dos nórdicos, arianos e saxões como referência). Ou seja, havia entre os gregos o que Issac denomina de proto-racismo, mas a cor da pele não era nem o critério central nem o único para a produção de uma hierarquia de valores atribuídos aos diferentes grupos humanos então conhecidos.

Mais que negar de frente a validade dessa teoria que defende a idéia de um racismo fenotípico de longa duração (Diop chega a defender a hipótese de que já na Índia antiga consolidou-se uma oposição entre etnias de pele clara – os arianos, por exemplo – e as de pele escura – os dravídicos, povos originários do Vale do Indus), penso que ela deve ser matizada e combinada com outras teorias, inclusive para não perdermos o foco do tipo de racismo contemporâneo que é nossa tarefa contribuir para dissolver. Nesse sentido, acredito que a absolutização verdadeiramente patológica das marcas fenotípicas para distinguir os seres humanos que nos interpela diariamente, seja pela realidade virtual seja pelas relações concretas entre as pessoas, é uma prática tipicamente moderna, que foi se consolidando nos países europeus entre os séculos XVI e XVIII e que tem sido imposta violentamente para todo o planeta desde a segunda metade do século XIX até os nossos dias.

Quanto mais se intensificou o colonialismo europeu nos demais continentes do mundo, mais intenso foi ficando o racismo dos brancos contra os não-brancos. O imaginário racista que nos interpela terminou por estabilizar uma hierarquia dos seres humanos que colocou no topo da pirâmide os homens brancos, de pele clara, olhos preferencialmente claros e cabelos preferencialmente loiros. Em cada região do mundo dominada pelos europeus (e, no século XX, também pelos Estados Unidos) foi gerada uma pigmentocracia entre os não-brancos: quanto mais claros (ou menos escuros) de pele, menos discriminados; e, quanto mais escuros, mais facilmente situados na parte inferior da hierarquia dos seres humanos e, portanto, mais discriminados, excluídos e passíveis de serem eliminados da face da terra. Assim como os povos das Américas foram transformados em índios, todos os povos europeus foram transformados em brancos e os não-europeus em não-brancos, ou nativos de alguma parte do mundo extra-europeu.

A revolução industrial possibilitou a disseminação das imagens racistas em uma escala monumental, sem precedentes na história da humanidade. Antes do século XVIII não havia meios tecnológicos para difundir o imaginário produzido com a finalidade de impor a superioridade branca no mundo inteiro. Assim como Walter Benjamin [6] construiu uma história das transformações da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, devemos agora incluir um recorte racial ou fenotípico em seu modelo interpretativo e refletir sobre a difusão e mesmo a naturalização das imagens do mundo clássico (da chamada beleza greco-romana) e do mundo europeu moderno.

Paralelo à passagem da arte aurática à arte sem aura (a arte que se reproduz tecnicamente e se afasta de sua dimensão única e sagrada), foi posto em marcha um processo contínuo e cada vez mais eficaz de fabricação estética da hierarquia dos seres humanos. Todo o repertório das artes visuais clássicas – as estátuas, as pinturas, os desenhos, as xilogravuras, gregas, romanas e medievais – foi atualizado através de reproduções técnicas, difundidas conscientemente, como uma política imperial, pelos quatro cantos do mundo a partir do século XVIII. Nos últimos duzentos anos, esse processo se intensificou ainda mais com a difusão dos livros didáticos, das revistas, dos jornais, dos catálogos de exposições, das capas de livros – enfim, com todo tipo de ilustrações que possibilitou, através do impacto direto de imagens, fixar os seres humanos ocidentais (homens e mulheres) em uma posição de destaque e controle face aos não-ocidentais. Obviamente, destaque e controle tornaram-se padrões de beleza.

Aqui, é preciso lembrar dos critérios de seleção das imagens clássicas que passaram a circular obrigatoriamente pelas colônias. As imagens preferidas foram aquelas em que os deuses, heróis ou seres humanos extraordinários do mundo clássico apresentassem traços fenotípicos mais próximos dos europeus modernos. E, além da cor da pele, procurou-se fixar também um tipo de proporções anatômicas mais de acordo com aquelas dos brancos modernos. Algumas esculturas gregas e romanas que não se encaixavam na imagem dos gregos como brancos europeus modernos, como o complexo do Laocoonte, por exemplo, foram descartadas e deixadas de fora dos livros de história da arte, em uma espécie de censura estética e racista que atravessou os últimos trezentos anos até praticamente os dias de hoje. Ou seja, por um lado, as elites intelectuais dos imperialismos europeus procuraram europeizar as artes greco-romanas. E, paralelamente, investiram ferozmente na produção de imagens dos europeus com traços helenizados. Houve, assim, uma obra de branqueamento que se voltou também para o interior do mundo europeu moderno.

A primeira lição do corpo em sociedade é que em nenhum lugar do mundo, até hoje, o corpo biológico é o corpo social. O corpo sempre tem um sujeito, está inserido em alguma comunidade, grupo, etnia ou nação. O corpo sempre é marcado, em alguma medida, pelas convenções culturais daquele grupo humano. São as marcas inscritas no seu corpo que singularizam o grupo étnico a que o indivíduo pertence. E é justamente apoiado na singularidade de um grupo humano que cada indivíduo pode aprender a desenvolver e a expressar a sua própria individualidade. São essas marcas, impressas temporária ou definitivamente na nossa pele biológica (nossa primeira pele, digamos), que conformam a nossa segunda pele, a pele que nos faz seres humanos para os outros seres humanos (se é a segunda pele que nos faz seres humanos também para os animais é uma questão aberta que não posso equacionar neste momento). Algumas dessas marcas incluem: as escarificações, as pinturas corporais, os furos e alongamentos nos narizes, os lóbulos furados, os lábios furados, os cortes longilineares nos pomos da face (as marcas de nação dos grupos da Costa Ocidental da África); os adereços, fixos ou intermitentes, que recobrem e sinalizam, como os braceletes, os colares, os brincos, os chapéus, as tornozeleiras. Em todos os corpos, a beleza é o resultado de alguma intervenção física que completa o trabalho puramente natural da anatomia herdada no nascimento.

O grupo étnico, ou a nação, é o ser que o indivíduo absorve, introjeta, incorpora e logo exibe, exterioriza, expressa simbolicamente e é reconhecido como membro do grupo pelos que já a ele pertencem, a saber, pelos que se iniciaram antes. Como são muitas as nações e variados os corpos por elas marcados, pode surgir o fascínio e o desejo de assumir a marca alheia, ou a marca de que se carece. O desejo de identificar-se com o outro através do canibalismo cultural é visível na maquiagem étnica. O filme Cannibal Tours, de Dennis O´Rourke [7] , mostra os turistas europeus nas aldeias da Nova Guiné pintados como os nativos e brincando alegremente de ser outros ao adquirir temporariamente (e através de um comércio, obviamente) as marcas de nação – enfim, podem experimentar uma segunda pele, eles que se vêm como universais, não-étnicos, sujeitos supostamente livres de se apresentar socialmente apenas com sua primeira pele. Também o rockeiro Sting foi ao Xingu, no início dos anos noventa, guiado pelo cacique Raoni e se pintou como os índios Txukarramãe, posando assim temporariamente de índio, a despeito da sua pele branca e do seu cabelo loiro.

A mesma sociedade que desenvolveu a tecnologia da desaparição da segunda pele oferece agora dois tipos de tecnologia destinados a intervir no corpo na tentativa de recobrar uma dignidade mínima diante do padrão racista idealizado. Primeiro, e mais definitivamente, ou através da operação plástica, alterando diretamente as proporções anatômicas; ou através das tecnologias de retoque da imagem, que evoluíram da intervenção física na fotografia impressa, depois nas alterações de pontos do negativo da foto até finalmente na manipulação do arquivo digital, que se tornou hoje metáfora com o termo photoshop.

No presente momento, a biopolítica ocidental da primeira pele parte do princípio de que todos os seres humanos que se subjetivam segundo a lógica da indústria cultural são feios. Em uma sala de aula com 30 estudantes, perguntei este ano quem se achava bonito e todos responderam que se sentiam feios e imperfeitos. A indústria da pele decreta que toda a humanidade, sem exceção, deverá se submeter a algum tipo de intervenção cirúrgica e/ou algum tipo de tratamento químico industrializado. Tratamentos “alternativos” também valem, desde que estejam inseridos no mercado alternativo de mercadorias. As pessoas já começaram a ser divididas entre as que têm e as que não têm intervenções corretivas na pele. Raciocínio invertido, pois é justamente a segunda pele que garante a beleza da primeira pele.

Tentemos resumir esse complexo processo histórico, com todas suas ramificações políticas, estéticas, econômicas, tecnológicas, psíquicas e até ecológicas.

1. A ênfase na cor da pele, ainda no racismo fenotípico monumental, implicou um apagamento das diferenças e marcas da segunda pele, mesmo no interior dos grupos humanos do mundo antigo que supostamente partilhavam da mesma cor. Esse racismo de longa duração generalizou os brancos, como se fossem todos iguais e os escuros, ou não-brancos, como se também fossem todos iguais.

2. Se pensamos agora no racismo fenotípico moderno, o efeito foi igualmente devastador. Unindo arte clássica grega selecionada e repadronizada para fins de fantasia de compatibilidade com os corpos das elites dos países europeus centrais, a difusão do padrão branco ocidental passou da cor da pele para as proporções anatômicas ditas “clássicas”: para os homens, altura de 1,80m, nem magros nem gordos; para as mulheres, altura de 1,75m, seios de tamanho médio, sem excesso de quadril nem de glúteos, mais um sem número de medidas secundárias que foram trabalhadas de um modo cada vez mais milimétrico a partir do século XIX. Foi então o corpo hegemônico ocidental, idealizado como uma reencarnação do corpo grego clássico que se tornou medida para todos, inclusive para os próprios ocidentais.

3. Apagaram-se as diferenças da segunda pele entre os brancos. Espanhóis, portugueses, italianos, ingleses, alemães, holandeses, que eram percebidos como muito diferentes entre si no séc. XVI, passaram a ser simplesmente brancos no fim do séc. XIX. A indústria das imagens foi crucial nesse processo de unificação, porque complexificou e massificou os parâmetros da anatomia do corpo hegemônico.

4. A eliminação da segunda pele entre os brancos provocou uma exclusão paradoxal entre eles: estavam unificados pela primeira pele, mas nem todos possuíam as proporções hegemônicas, a anatomia normatizada. O cinema fez crescer essa sensação de imperfeição, porque todo o cinema provocou um achatamento dos signos corporais quando reduziu o corpo a duas dimensões.

5. Em uma passagem antológica da literatura européia do século XX, Hermann Hesse dizia, no seu livro mágico O Jogo das Contas de Vidro [8] , que todas as músicas da época de Monteverdi eram belas. Entendemos que faz sentido o que diz Hesse: naquela época ainda havia iniciação e gnose nas nações européias e a música era bela porque expressava a beleza das pessoas. Do mesmo modo podemos dizer: todos os tajiques são belos, todos os iorubás são belos, todos os kaxinauás são belos, todos os uighur são belos, todos os aimarás são belos, todos os balineses são belos, assim como todas as suas músicas são belas.

Fizemos um zoom crescente da geografia à religião, à ordem legal, à cultura, para finalmente chegar à genética e chegamos a um paradoxo: há uma luta atual por desqualificar a base genética da raça e, ao mesmo tempo, uma obsessão por aproximar-se da loirice e da brancura. Pessoas colocam lentes de contato para deixar os olhos mais claros, água oxigenada para deixar os cabelos loiros, produtos químicos para alisar os cabelos, operações plásticas nos países asiáticos e andinos para diminuir ou retirar a dobra mongólica em volta dos olhos (os olhos “puxados” dos japoneses, e das populações indígenas sul-americanas); plástica para diminuir as fossas nasais dos povos africanos; cremes de vários tipos para clarear a cor da pele. Há uma polêmica dramática na Índia, atualmente, provocada por um dos mais famosos atores indianos que aceitou fazer propaganda de um creme que clareia a pele - um paradoxo racista de conseqüências geopolíticas monumentais. O objetivo último da corporação ocidental que fabrica o creme (e da suposta civilização ocidental que a estimulou a conceber essa idéia macabra) é simplesmente clarear a cor da pele de um bilhão de pessoas!

A indústria de imagens da sociedade de massa nasceu após a consolidação desse imaginário racista. Assim, a expansão da fotografia e, posteriormente, do cinema serviu para difundir a hierarquia fenotípica centrada nos brancos europeus que inventaram essas tecnologias. Enquanto todos os povos não-brancos, em alguma medida definidos como imperfeitos, exibem as variadas marcas da sua segunda pele, o branco ocidental parece apresentar-se como o único grupo humano não marcado; ou seja, o único grupo cujos atributos de humanidade já estariam expressos na primeira pele, na pele puramente biológica. Obviamente, trata-se de uma fantasia, as mais das vezes inconsciente, de excepcionalidade, cujos efeitos de violência, física e simbólica, sobre todo o mundo ainda não foi suficientemente avaliada.

Essa ideologia de um corpo branco perfeito, belo, inteligente e poderoso, sem marcas étnicas que poderiam “enfeiá-lo” foi construída no contexto de uma geopolítica colonialista de inferiorização e dominação sobre os não-brancos do planeta. Tão poderosa mostrou-se, porém, que os próprios brancos passaram a não mais enxergar a sua segunda pele e começaram a construir uma imagem do poder, da riqueza e da beleza como fenômenos passíveis de manipulação através de intervenções na sua anatomia, isto é, diretamente na primeira pele. Ou seja, passou-se a intervir na primeira pele, não mais para marcá-la como exemplo de um grupo singular de seres humanos, mas como se fosse uma alteração direta da pele biológica, um aperfeiçoamento da herança genética individual.

Que fique claro, todavia, que a brancura e a loirice que se espalham hoje não se referem de fato ao fenótipo europeu predominante, mas a uma loirice virtual, ou hiper-real. Aqui, podemos corrigir ou acrescentar algo à teoria do simulacro de Baudrillard [9] : o corpo que primeiro desaparece na hiper-realidade é o corpo branco. É com o seu desaparecimento, e conseguinte auto-instauração como corpo hegemônico, que ele procedeu a desaparecer com toda a grande diversidade de corpos portadores de milhares de segundas peles, decretando-os todos meramente como corpos não-brancos. Dito com outra metáfora, o Photoshop foi inventado para retocar primeiro a pele dominante, não a pele dominada, como podemos pensar os subalternos de hoje.

Na verdade, podemos complementar os ensaios de Walter Benjamin sobre a fotografia e o cinema e os escritos de Baudrillard sobre o simulacro, acrescentando uma dimensão crucial que lhes escapou: que todas as tecnologias modernas da imagem, incluindo a fotografia e o cinema, logo após sua invenção, foram colocadas a serviço de um projeto racista fenotípico. As tecnologias da imagem, além de introduzirem novas sensibilidades (como nos alertou Benjamin) e novas armadilhas sensíveis (como teorizou Baudrillard a partir do trompe l´oeil, por exemplo) se dedicaram não tanto a retratar, mas a produzir representações da hierarquia fenotípica dos seres humanos. 

No início do extraordinário filme Moloch [10] , de Aleksandr Sokurov, quando Hitler cumprimenta Eva Braun ao entrar no chalé, ele lhe dirige o então maior dos elogios: “Eine Antike Schönheit!” (Uma beleza clássica!). Esse significante Antike, tão presente nos filósofos e historiadores da arte alemães a partir do chamado Renascimento, une os dois pólos da idealização de uma pele branca sem marcas e de preferência coroada por um cabelo loiro: o “grego antigo” e o “alemão (ariano ou germânico?) moderno”. Como sabemos, essa idealização estética, mais do que agonística, foi letal para milhões de seres humanos na metade do século XX e ainda o é hoje em dia.  Resta saber até quando continuará sendo.

Um efeito devastador do uso racista da fotografia e do cinema, por mais de um século ininterrupto, foi o achatamento e a simplificação dos corpos pela bidimensionalidade desses dois sistemas de representação. A imagem bidimensional dos personagens registrados (atores ou não) pareceu retirar-lhes a segunda pele, universalizando o seu corpo como hegemônico e suscitando uma referência idealizada de beleza praticamente inatingível. Para os não-brancos, foi óbvia sua inferiorização diante dos brancos e as tecnologias cumpriram seu papel na universalização do hetero-racismo: eu sou superior a vocês, é a mensagem implícita na imagem bidimensional do corpo branco ocidental hegemônico. Mas os brancos também foram afetados. Diante do padrão “clássico” de beleza inalcançável dos seus supostos pares étnicos (os brancos representados com destaque nas fotos e nos filmes), a pessoa branca comum passou a introjetar o auto-racismo: eu sou um ser inferior no interior do meu próprio grupo.

As operações plásticas retocam a pele, mas não a marcam. A marca inscrita na pele, isto é, a segunda pele, não necessita de retoques. Por outro lado, por mais que se retoque a primeira pele, não se consegue imprimir nela uma marca de segunda pele. No mundo ocidental contemporâneo, as pessoas brancas estão desesperadamente fazendo intervenções físicas e retoques imagéticos na sua pele e na sua anatomia na tentativa de retomar alguma marca da segunda pele que sentem não mais possuir e cuja falta lhes retira a auto-estima. No auge das propostas de descolonização do continente africano, na época da luta aberta contra o racismo fenotípico ocidental, Frantz Fanon redigiu o seu libelo dramático: Pele Negra, Máscaras Brancas. [11]   Hoje em dia esse predicamento continua, tão ou mais intenso quanto nos anos cinqüenta do século passado. Porém, há outro predicamento agora, fruto da carência branca de uma segunda pele: “Pele Branca, Máscaras Brancas”. 

Um exemplo bem comum de auto-racismo e de hetero-racismo através de operação plástica (e bem conhecido na mídia de massa hegemônica) são as transformações do corpo da apresentadora e atriz Xuxa. Nos meados dos anos oitenta, ela diminuiu e remodelou o nariz; reduziu o volume da coxas para parecer menos voluptuosa e aproximar-se mais do corpo da boneca Barbie, que supostamente combina com sua loirice; e diminuiu também os glúteos e os seios, para parecer menos “vulgar” na sexualidade normatizada brasileira que tem como referência o corpo da chamada “mulata”. No livro de Amélia Simpson sobre Xuxa, de 1982 (cuja edição brasileira teve baixíssima circulação no Brasil, aparentemente porque a própria apresentadora mandou comprar a maioria dos exemplares impressos e os destruiu), pode-se ver, na pág 142, em uma foto sua ao lado de Pelé, como era o seu nariz original (menos “branco europeu”, digamos); e na foto da pág. 141 suas coxas são mais grossas que as de hoje e seus glúteos mais proeminentes. Já os seus seios, aparentemente foram reduzidos naquela época e mais recentemente, após a maternidade, foram de novo aumentados.

Exemplos espetaculares de manipulação auto-racista da primeira pele, tão comuns nos Photoshops, podem ser apreciados no site da companhia iWANEX Studio. Folheando seu portfolio de grandes celebridades podemos destacar as duas fotos da cantora Beyoncé, antes e depois dos retoques para deixar sua imagem mais “clássica”. As alterações são realmente drásticas e, a partir do que ali ficou representado do seu corpo biológico (isto é, da sua primeira pele antes das inevitáveis plásticas), provavelmente muitos de nós não a reconheceríamos se a encontrássemos casualmente em algum lugar público. Eis o que fez iWANEX com o corpo fotografado de Beyoncé: afinou a sua cintura e retirou-lhe os “pneus” da barriga; corrigiu e alinhou a ossatura um pouco saliente do ombro direito; eliminou a flacidez e até o formato natural do braço direito; reduziu drasticamente a batata da perna; retirou as olheiras; levantou as sobrancelhas de modo a tornar mais evidente a cor clara dos olhos; corrigiu a coxa; como no caso da Xuxa, diminuiu os seus glúteos para parecer menos “africana” e mais “européia”; levantou os seios; clareou e alisou os cabelos; arrumou a bochecha; eliminou uma pequena arruga do lado direito do nariz. E o que mais importa no racismo fenotípico moderno: clareou bastante a sua pele.

Um grande exemplo de representação da beleza de segunda pele de um corpo não-branco é a foto que Pierre Verger tirou de Mãe Senhora, que foi uma das mais famosas mães de santo da Bahia e, por muitos anos, a iyalorixá do candomblé Axé Opô Afonjá de Salvador. Nessa foto magistral, reproduzida na capa do livro feito em sua homenagem, Mãe Senhora exibe uma beleza majestática deslumbrante, sem nada dever às proporções “clássicas” de Eva Braun, Madonna, Xuxa, Beyoncé ou equivalentes que recusariam seu sobrepeso, seus seios excessivos ou mesmo a sua cor retinta e as suas marcas de nação que a enraizavam na comunidade religiosa de matriz africana no Brasil.

Assim como os não-brancos resistem com a sua segunda pele ao hetero-racismo fenotípico, também muitos brancos oferecem resistência contra o auto-racismo que também lhes inferioriza através da imposição de um padrão fenotípico idealizado e inalcançável. Tal é o caso do movimento punk britânico, por exemplo, nos anos setenta, que introduziu para os jovens brancos um modelo de cabelo não-“clássico”, não-ariano, não-branco: o moicano, inspirado no modelo de beleza dos índios norte-americanos, grupos étnicos não-brancos que foram massacrados durante os últimos séculos da modernidade pelos anglo-saxões brancos. Introduziram também, em outro gesto estético de solidariedade, o piercing no nariz, inspirado também na beleza da segunda pele de vários grupos étnicos não-brancos da Índia, habitantes justamente do sub-continente que foi devastado pelo colonialismo britânico por mais de três séculos.

Assim, uma vez compreendida toda a dramaticidade e a letalidade do racismo fenotípico ocidental contemporâneo, que se globaliza através das poderosas tecnologias de imagem, físicas e virtuais, é preciso incentivar e apoiar a resistência da segunda pele que une todos os oprimidos, não-brancos e brancos, vítimas tanto do hetero-racismo como do auto-racismo. Não uma, mas milhares de belezas “clássicas” diferentes a se construir nos quatro cantos do mundo.

Referências bibliográficas

BAUDRILLARD, Jean. A Troca Simbólica e a Morte.  São Paulo: Edições Loyola, 1996.
______________. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D’agua, 1981.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Benjamin, W. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985.
__________. “Pequena história da fotografia”. In: Benjamin, W. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BERNAL, Martin. Black Athena. The Afroasiatic Roots of Classical Antiquity. New Brunswick: Rutgers University Press, 1987.
CARVALHO, José Jorge. “Transformações da Sensibilidade Musical Contemporânea”, Horizontes Antropológicos, Ano 5, No. 11, 59-118, 1999.
___________. “A Morte Nike: Consumir, o Sujeito”, Universa, Vol. 8, N° 2, 381-396. Universidade Católica de Brasília, junho, 2000.
DIOP, Cheik Anta. Civilisation ou Barbarie: Anthropologie sans Complaisance. Paris: Présence Africaine, 1981.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Rio de Janeiro: Editora Fator, 1983.
HESSE, Hermann. O Jogo das Contas de Vidro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1969.
ISAAC, Benjamin. The Invention of Racism in Classical Antiquity. Princeton: Princeton University Press, 2004.
KRISTEVA, Julia. Women’s Time, Signs, Vol.7, No.1, 5-25, 1981.
POIGNANT, Roslyn. Professional Savages. Captive Lives and Western Spectacle. New Haven: Yale University Press, 2004.
SANTOS, José Félix & Cida da Nóbrega (orgs.) Maria Bibiana do Espírito Santo. Mãe Senhora. Salvador: Editora Corrupio, 2000.
SIMPSON, Amelia. Xuxa. The Mega-Marketing of Gender, Race, and Modernity. Philadelphia: Temple University Press, 1993.
________. Xuxa. São Paulo: Editora Sumaré, 1994.



[1] As idéias deste ensaio, aqui apresentadas de forma extremamente concisa, são desdobramentos de outras discussões sobre a indústria cultural contemporânea. Cf. CARVALHO, José Jorge. “Transformações da Sensibilidade Musical Contemporânea”, Horizontes Antropológicos, Ano 5, No. 11, 59-118, 1999. CARVALHO, José Jorge. “A Morte Nike: Consumir, o Sujeito”, Universa, Vol. 8, N° 2, 381-396. Universidade Católica de Brasília, junho, 2000. Contei aqui com a ajuda de Jocelina Laura de Carvalho e Ernesto Ignacio de Carvalho.

[2] KRISTEVA, Julia. “Women’s Time”, Signs, Vol.7, No.1, 5-25, 1981.

[3] DIOP, Cheik Anta. Civilisation ou Barbarie: Anthropologie sans Complaisance. Paris: Présence Africaine, 1981.

[4] BERNAL, Martin. Black Athena. The Afroasiatic Roots of Classical Antiquity. New Brunswick: Rutgers University Press, 1987.

[5] ISAAC, Benjamin. The Invention of Racism in Classical Antiquity. Princeton: Princeton University Press, 2004.

[6] BENJAMIN, Walter “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” & “Pequena história da fotografia”. Em: Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985.

[7] Cannibal Tours. Dir: Denis O´Rourke, 72 min. Austrália: CameraWork, 1988.

[8] HESSE, Hermann. O Jogo das Contas de Vidro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1969.

[9] BAUDRILLARD, Jean. A Troca Simbólica e a Morte.  São Paulo: Edições Loyola, 1996; BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D’agua, 1981.

[10] Moloch. Dir: Aleksandr Sokurov, 108 min. Rússia, Alemanha, França, Itália, Japão,1999.

[11] FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Rio de Janeiro: Editora Fator, 1983.

José Jorge de Carvalho é professor do Departamento de Antropologia (UNB) e Pesquisador do CNPq. Foi Professor das Universidades de Queen's de Belfast, Rice University, Universidade de Wisconsin-Madison e Pesquisador Visitante na Universidade da Flórida. É autor dos livros Cantos Sagrados do Xangô do Recife, Mutus Líber, O Livro Mudo da Alquimia, O Quilombo do Rio das Rãs (org.), Rumi - Poemas Místicos e Os Melhores Poemas de Amor da Sabedoria Religiosa de Todos os Tempos.