Se algo caracteriza a nossa era, em todo o planeta, é
a presença do racismo fenotípico intenso. Os seres humanos
que classificamos como caucasianos, isto é, de pele clara,
olhos claros, cabelos lisos e narizes finos - enfim, os
“brancos” ocidentais, europeus em geral e muito particularmente
os anglo-saxões - definiram um padrão de valor e beleza
para toda a espécie humana e o impuseram (antes a ferro
e fogo e atualmente através da indústria cultural e do
controle político e financeiro) a todo o resto do mundo.
Essa imposição começou no séc. XVI, quando os europeus
conquistaram a América e consolidaram o tráfico de escravos
da África para o Novo Mundo. A partir daí, a combinação
de escravidão, colonialismo e capitalismo marcou a imagem
do homem branco ocidental como superior aos não-brancos
(que começaram a ver-se como não-brancos) dos demais continentes.
Esse racismo fenotípico cresceu ainda mais
na época do alto imperialismo, alcançando dimensões
definitivamente globais no final do séc. XIX, quando
a auto-intitulada “raça branca” se impôs nos cinco continentes
e forçou os colonizados do mundo (americanos, africanos,
asiáticos, povos do Oriente Médio, da Ásia Menor e oceânicos)
a aceitá-la como padrão de referência. E não somente
a teoria racista moderna, formulada nos países ocidentais,
como também a pedagogia para transformar o corpo branco
ocidental em objeto de desejo universal e inconteste
de referência foi produzida e imposta nas colônias dos
impérios europeus. [1]
Essa referência generalizada do mundo ocidental
como sinônimo de humanidade plena centrou-se primeiramente
na superioridade militar (pois foi pelas armas que os
europeus dominaram os outros continentes); logo, na
econômica, por controlar o comércio e a expansão do
capitalismo; paralelamente, o controle político, por
impor e dispor dos regimes locais segundo seus interesses;
depois, o controle científico e artístico, ao desqualificar
os saberes e valores estéticos locais e universalizar
os padrões ocidentais nas ciências e nas humanidades.
Para culminar essa dominação, os próprios corpos dos
europeus passaram a indicar, por coerção e rendição,
as características físicas da raça humana superior.
O significante mais sobressalente desses corpos europeus
foi, sem dúvida alguma, a cor da pele, que foi complementada,
ao longo do tempo da ocidentalização do mundo, por outras
características físicas também secundárias do ponto
de vista genotípico, como a altura, o formato dos olhos,
do nariz, dos lábios, dos pomos da face e a textura
dos cabelos.
Atualmente, os seres humanos, queiram ou
não, são cada vez mais tratados de acordo com as características
fenotípicas da sua pele. Em primeiro lugar, os não-brancos
são tratados de um modo negativo e desqualificador pelos
brancos; e, logo, os próprios não-brancos introjetam
essa inferioridade fenotípica e passam a organizar suas
vidas de acordo com a rejeição à ausência de brancura
e também segundo seu esforço por emular essa mesma pretensa
brancura. Desse modo, o racismo fenotípico cresce a
cada dia e força a maioria das pessoas a tentar ajustar
sua pele para aproximar-se, ainda que minimamente, do
padrão de corpo ideal; ou, pelo menos, para afastar-se
das imperfeições físicas que acreditam portar e com
que se identificam a partir da sua consciência colonizada.
Desde o início do século XX, com a difusão da linguagem
cinematográfica, a operação de identificação passa da
pele para o corpo como um todo, envolvendo a anatomia
com sua gama de proporções e complexidades fisiológicas.
No início do século vinte, o racismo fenotípico
era uma estrutura de discriminação que favorecia sempre
os brancos e prejudicava exclusivamente os não-brancos.
No momento presente, porém, cresce uma patologia de
desconforto generalizado com a própria pele, não apenas
entre os não-brancos, mas também entre os brancos. E,
conforme veremos mais adiante, é esse desconforto que
induz as pessoas, praticamente no mundo inteiro, a promoverem
intervenções cada dia mais radicais, dolorosas e agonísticas
(dada sua incapacidade a priori de resolver a auto-rejeição
corporal que passaram a sofrer) no próprio corpo.
É uma questão controversa definir se a
classificação dos seres humanos com base no fenótipo
existiu sempre ou se é uma invenção do mundo moderno
ocidental. Vários estudiosos têm procurado demonstrar,
através de evidências arqueológicas e documentais, que
as sociedades do mundo antigo, antes mesmo do mundo
grego (como os hindus e os egípcios, por exemplo), já
classificavam os grupos humanos entre aqueles compostos
por pessoas mais claras e por outras mais escuras de
pele; e atribuíam as qualidades positivas e desejadas
(as qualidades dos nativos e de seus aliados) às pessoas
de pele mais clara, jogando os seres humanos de pele
mais escura na vala comum dos estranhos, dos inferiores,
dos bárbaros, dos incapazes, dos inimigos ou dos perigosos
em geral.
Inspirados na idéia dos vários tempos das
desigualdades profundas (como o são as de gênero e as
étnico-raciais), podemos denominar essa teoria como
racismo de longa duração, ou de racismo monumental,
se comparado com outra estrutura hierárquica de longa
duração, que é a estrutura de gênero. É possível aproximar
o tempo longo do racismo com o tempo longo da mulher,
tal como teorizado por Julia Kristeva, por exemplo,
ao discorrer sobre os vários tempos e gerações dos feminismos. [2] A desigualdade de gênero, ou o patriarcado,
atravessou eras, civilizações, regimes políticos e econômicos,
ao longo de milênios, chegando até os nossos dias com
sua base ideológica ainda vigente e eficaz; esse mesmo
tempo monumental parece ter ocorrido com o racismo fenotípico.
A formulação mais erudita e mais contundente
politicamente acerca da existência desse racismo fenotípico
de longa duração, ou monumental, foi produzida nos anos
sessenta do século passado pelo grande cientista e humanista
senegalês Cheik Anta Diop. [3] Utilizando as mais diversas fontes históricas,
arqueológicas, lingüísticas e apoiando-se também em
datações do carbono 14 por ele mesmo concebidas, Diop
procurou demonstrar que o racismo fenotípico já estava
presente há pelo menos 4 mil anos atrás, quando os primeiros
códigos “civilizatórios” escritos atribuíram características
morais distintas aos grupos de peles claras e aos de
peles escuras. Segundo esse raciocínio, o racismo moderno
se expandiu pelo planeta com tanta intensidade justamente
porque se adaptou a um solo imaginário que já havia
reservado um lugar de superioridade aos povos de pele
clara.
Todavia, mesmo reconhecendo a sólida base
documental da teoria de Cheik Anta Diop, parece um pouco
difícil generalizar essa posição quando sabemos que
as sociedades ditas antigas ou clássicas (e que supostamente
formaram o que chamamos de mundo ocidental) não eram
homogêneas fenotipicamente. Conseqüentemente, não eram
exclusivamente brancas – pelo menos, não eram brancas
do modo como as sociedades ocidentais exigem ser vistas
atualmente. Assim, tanto os gregos como os romanos eram
povos multiculturais e multi-étnicos. Duas questões
importantes acerca da relação entre a pele e a cultura
surgem dessa reavaliação do que chamamos de mundo clássico
greco-romano.
Cheik Anta Diop foi provavelmente, em todo
o século vinte, o maior autor individual que conseguiu
desmontar cientificamente o mito racista ocidental da
superioridade da civilização grega, como se essa representasse
um milagre singular e irrepetível da inteligência, da
moral, da política e da beleza – e, fator essencial
na luta pela descolonização, como se os europeus modernos
fossem herdeiros diretos dessa suposta superioridade
civilizatória grega. Diop dedicou-se a mostrar que uma
grande parte das supostas descobertas que caracterizaram
o que aprendemos nas escolas como “milagre grego” foram,
na verdade, não muito mais do que cópias explícitas
(e reconhecidas, inclusive, pelos mesmos autores gregos
da era clássica) de descobertas feitas pelos egípcios
muitos séculos antes. Diop demoliu a hierarquização
fenotípica dos seres produzida pelos imperialismos europeus
ao demonstrar duas verdades paralelas e complementares:
primeiro, que os egípcios eram negros e, ao contrário
do que pregava a ideologia imperialista, foi então um
conjunto de povos negros que formularam uma das bases
do que chamamos de “civilização”.
Remando contra a corrente racista qures produzida pelos imperialismos europeus ao demoinstrar duas vedades
paralelas e co-dependentee impera ainda hoje
nas instituições acadêmicas dentro e fora do mundo ocidental,
outros pesquisadores, como Martin Bernal [4]
nos anos oitenta do século passado e Benjamin Isaac [5] na presente década, demonstraram que o
mundo grego antigo não era um mundo “branco”, tal como
atribuímos hoje uma brancura aos alemães e aos ingleses,
por exemplo; muito pelo contrário, tratava-se de um
mundo de muitas cores de pele e traços fenotípicos variados,
dada a convivência secular e constante com egípcios,
fenícios, persas e judeus, todos de pele escura, ou
não-branca (se utilizamos a pele dos nórdicos, arianos
e saxões como referência). Ou seja, havia entre os gregos
o que Issac denomina de proto-racismo, mas a cor da
pele não era nem o critério central nem o único para
a produção de uma hierarquia de valores atribuídos aos
diferentes grupos humanos então conhecidos.
Mais que negar de frente a validade dessa
teoria que defende a idéia de um racismo fenotípico
de longa duração (Diop chega a defender a hipótese de
que já na Índia antiga consolidou-se uma oposição entre
etnias de pele clara – os arianos, por exemplo – e as
de pele escura – os dravídicos, povos originários do
Vale do Indus), penso que ela deve ser matizada e combinada
com outras teorias, inclusive para não perdermos o foco
do tipo de racismo contemporâneo que é nossa tarefa
contribuir para dissolver. Nesse sentido, acredito que
a absolutização verdadeiramente patológica das marcas
fenotípicas para distinguir os seres humanos que nos
interpela diariamente, seja pela realidade virtual seja
pelas relações concretas entre as pessoas, é uma prática
tipicamente moderna, que foi se consolidando nos países
europeus entre os séculos XVI e XVIII e que tem sido
imposta violentamente para todo o planeta desde a segunda
metade do século XIX até os nossos dias.
Quanto mais se intensificou o colonialismo
europeu nos demais continentes do mundo, mais intenso
foi ficando o racismo dos brancos contra os não-brancos.
O imaginário racista que nos interpela terminou por
estabilizar uma hierarquia dos seres humanos que colocou
no topo da pirâmide os homens brancos, de pele clara,
olhos preferencialmente claros e cabelos preferencialmente
loiros. Em cada região do mundo dominada pelos europeus
(e, no século XX, também pelos Estados Unidos) foi gerada
uma pigmentocracia entre os não-brancos: quanto mais
claros (ou menos escuros) de pele, menos discriminados;
e, quanto mais escuros, mais facilmente situados na
parte inferior da hierarquia dos seres humanos e, portanto,
mais discriminados, excluídos e passíveis de serem eliminados
da face da terra. Assim como os povos das Américas foram
transformados em índios, todos os povos europeus foram
transformados em brancos e os não-europeus em não-brancos,
ou nativos de alguma parte do mundo extra-europeu.
A revolução industrial possibilitou a disseminação
das imagens racistas em uma escala monumental, sem precedentes
na história da humanidade. Antes do século XVIII não
havia meios tecnológicos para difundir o imaginário
produzido com a finalidade de impor a superioridade
branca no mundo inteiro. Assim como Walter Benjamin
[6] construiu uma história das transformações
da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,
devemos agora incluir um recorte racial ou fenotípico
em seu modelo interpretativo e refletir sobre a difusão
e mesmo a naturalização das imagens do mundo clássico
(da chamada beleza greco-romana) e do mundo europeu
moderno.
Paralelo à passagem da arte aurática à
arte sem aura (a arte que se reproduz tecnicamente e
se afasta de sua dimensão única e sagrada), foi posto
em marcha um processo contínuo e cada vez mais eficaz
de fabricação estética da hierarquia dos seres humanos.
Todo o repertório das artes visuais clássicas – as estátuas,
as pinturas, os desenhos, as xilogravuras, gregas, romanas
e medievais – foi atualizado através de reproduções
técnicas, difundidas conscientemente, como uma política
imperial, pelos quatro cantos do mundo a partir do século
XVIII. Nos últimos duzentos anos, esse processo se intensificou
ainda mais com a difusão dos livros didáticos, das revistas,
dos jornais, dos catálogos de exposições, das capas
de livros – enfim, com todo tipo de ilustrações que
possibilitou, através do impacto direto de imagens,
fixar os seres humanos ocidentais (homens e mulheres)
em uma posição de destaque e controle face aos não-ocidentais.
Obviamente, destaque e controle tornaram-se padrões
de beleza.
Aqui, é preciso lembrar dos critérios de
seleção das imagens clássicas que passaram a circular
obrigatoriamente pelas colônias. As imagens preferidas
foram aquelas em que os deuses, heróis ou seres humanos
extraordinários do mundo clássico apresentassem traços
fenotípicos mais próximos dos europeus modernos. E,
além da cor da pele, procurou-se fixar também um tipo
de proporções anatômicas mais de acordo com aquelas
dos brancos modernos. Algumas esculturas gregas e romanas
que não se encaixavam na imagem dos gregos como brancos
europeus modernos, como o complexo do Laocoonte, por
exemplo, foram descartadas e deixadas de fora dos livros
de história da arte, em uma espécie de censura estética
e racista que atravessou os últimos trezentos anos até
praticamente os dias de hoje. Ou seja, por um lado,
as elites intelectuais dos imperialismos europeus procuraram
europeizar as artes greco-romanas. E, paralelamente,
investiram ferozmente na produção de imagens dos europeus
com traços helenizados. Houve, assim, uma obra de branqueamento
que se voltou também para o interior do mundo europeu
moderno.
A primeira lição do corpo em sociedade
é que em nenhum lugar do mundo, até hoje, o corpo biológico
é o corpo social. O corpo sempre tem um sujeito, está
inserido em alguma comunidade, grupo, etnia ou nação.
O corpo sempre é marcado, em alguma medida, pelas convenções
culturais daquele grupo humano. São as marcas inscritas
no seu corpo que singularizam o grupo étnico a que o
indivíduo pertence. E é justamente apoiado na singularidade
de um grupo humano que cada indivíduo pode aprender
a desenvolver e a expressar a sua própria individualidade.
São essas marcas, impressas temporária ou definitivamente
na nossa pele biológica (nossa primeira pele, digamos),
que conformam a nossa segunda pele, a pele que nos faz
seres humanos para os outros seres humanos (se é a segunda
pele que nos faz seres humanos também para os animais
é uma questão aberta que não posso equacionar neste
momento). Algumas dessas marcas incluem: as escarificações,
as pinturas corporais, os furos e alongamentos nos narizes,
os lóbulos furados, os lábios furados, os cortes longilineares
nos pomos da face (as marcas de nação dos grupos da
Costa Ocidental da África); os adereços, fixos ou intermitentes,
que recobrem e sinalizam, como os braceletes, os colares,
os brincos, os chapéus, as tornozeleiras. Em todos os
corpos, a beleza é o resultado de alguma intervenção
física que completa o trabalho puramente natural da
anatomia herdada no nascimento.
O grupo étnico, ou a nação, é o ser que
o indivíduo absorve, introjeta, incorpora e logo exibe,
exterioriza, expressa simbolicamente e é reconhecido
como membro do grupo pelos que já a ele pertencem, a
saber, pelos que se iniciaram antes. Como são muitas
as nações e variados os corpos por elas marcados, pode
surgir o fascínio e o desejo de assumir a marca alheia,
ou a marca de que se carece. O desejo de identificar-se
com o outro através do canibalismo cultural é visível
na maquiagem étnica. O filme Cannibal Tours,
de Dennis O´Rourke
[7] , mostra os turistas europeus nas aldeias
da Nova Guiné pintados como os nativos e brincando alegremente
de ser outros ao adquirir temporariamente (e através
de um comércio, obviamente) as marcas de nação – enfim,
podem experimentar uma segunda pele, eles que se vêm
como universais, não-étnicos, sujeitos supostamente
livres de se apresentar socialmente apenas com sua primeira
pele. Também o rockeiro Sting foi ao Xingu, no início
dos anos noventa, guiado pelo cacique Raoni e se pintou
como os índios Txukarramãe, posando assim temporariamente
de índio, a despeito da sua pele branca e do seu cabelo
loiro.
A mesma sociedade que desenvolveu a tecnologia
da desaparição da segunda pele oferece agora dois tipos
de tecnologia destinados a intervir no corpo na tentativa
de recobrar uma dignidade mínima diante do padrão racista
idealizado. Primeiro, e mais definitivamente, ou através
da operação plástica, alterando diretamente as proporções
anatômicas; ou através das tecnologias de retoque da
imagem, que evoluíram da intervenção física na fotografia
impressa, depois nas alterações de pontos do negativo
da foto até finalmente na manipulação do arquivo digital,
que se tornou hoje metáfora com o termo photoshop.
No presente momento, a biopolítica ocidental
da primeira pele parte do princípio de que todos os
seres humanos que se subjetivam segundo a lógica da
indústria cultural são feios. Em uma sala de aula com
30 estudantes, perguntei este ano quem se achava bonito
e todos responderam que se sentiam feios e imperfeitos.
A indústria da pele decreta que toda a humanidade, sem
exceção, deverá se submeter a algum tipo de intervenção
cirúrgica e/ou algum tipo de tratamento químico industrializado.
Tratamentos “alternativos” também valem, desde que estejam
inseridos no mercado alternativo de mercadorias. As
pessoas já começaram a ser divididas entre as que têm
e as que não têm intervenções corretivas na pele. Raciocínio
invertido, pois é justamente a segunda pele que garante
a beleza da primeira pele.
Tentemos resumir esse complexo processo
histórico, com todas suas ramificações políticas, estéticas,
econômicas, tecnológicas, psíquicas e até ecológicas.
1.
A ênfase na cor da pele, ainda
no racismo fenotípico monumental, implicou um apagamento
das diferenças e marcas da segunda pele, mesmo no interior
dos grupos humanos do mundo antigo que supostamente
partilhavam da mesma cor. Esse racismo de longa duração
generalizou os brancos, como se fossem todos iguais
e os escuros, ou não-brancos, como se também fossem
todos iguais.
2. Se pensamos agora no racismo fenotípico
moderno, o efeito foi igualmente devastador. Unindo
arte clássica grega selecionada e repadronizada para
fins de fantasia de compatibilidade com os corpos das
elites dos países europeus centrais, a difusão do padrão
branco ocidental passou da cor da pele para as proporções
anatômicas ditas “clássicas”: para os homens, altura
de 1,80m, nem magros nem gordos; para as mulheres, altura
de 1,75m, seios de tamanho médio, sem excesso de quadril
nem de glúteos, mais um sem número de medidas secundárias
que foram trabalhadas de um modo cada vez mais milimétrico
a partir do século XIX. Foi então o corpo hegemônico
ocidental, idealizado como uma reencarnação do corpo
grego clássico que se tornou medida para todos, inclusive
para os próprios ocidentais.
3. Apagaram-se as diferenças da segunda
pele entre os brancos. Espanhóis, portugueses, italianos,
ingleses, alemães, holandeses, que eram percebidos como
muito diferentes entre si no séc. XVI, passaram a ser
simplesmente brancos no fim do séc. XIX. A indústria
das imagens foi crucial nesse processo de unificação,
porque complexificou e massificou os parâmetros da anatomia
do corpo hegemônico.
4.
A eliminação da segunda pele entre
os brancos provocou uma exclusão paradoxal entre eles:
estavam unificados pela primeira pele, mas nem todos
possuíam as proporções hegemônicas, a anatomia normatizada.
O cinema fez crescer essa sensação de imperfeição, porque
todo o cinema provocou um achatamento dos signos corporais
quando reduziu o corpo a duas dimensões.
5. Em uma passagem antológica da literatura
européia do século XX, Hermann Hesse dizia, no seu livro
mágico O Jogo das Contas de Vidro
[8]
, que todas as músicas da época de Monteverdi
eram belas. Entendemos que faz sentido o que diz Hesse:
naquela época ainda havia iniciação e gnose nas nações
européias e a música era bela porque expressava a beleza
das pessoas. Do mesmo modo podemos dizer: todos os tajiques
são belos, todos os iorubás são belos, todos os kaxinauás
são belos, todos os uighur são belos, todos os aimarás
são belos, todos os balineses são belos, assim como
todas as suas músicas são belas.
Fizemos um zoom crescente da geografia
à religião, à ordem legal, à cultura, para finalmente
chegar à genética e chegamos a um paradoxo: há uma luta
atual por desqualificar a base genética da raça e, ao
mesmo tempo, uma obsessão por aproximar-se da loirice
e da brancura. Pessoas colocam lentes de contato para
deixar os olhos mais claros, água oxigenada para deixar
os cabelos loiros, produtos químicos para alisar os
cabelos, operações plásticas nos países asiáticos e
andinos para diminuir ou retirar a dobra mongólica em
volta dos olhos (os olhos “puxados” dos japoneses, e
das populações indígenas sul-americanas); plástica para
diminuir as fossas nasais dos povos africanos; cremes
de vários tipos para clarear a cor da pele. Há uma polêmica
dramática na Índia, atualmente, provocada por um dos
mais famosos atores indianos que aceitou fazer propaganda
de um creme que clareia a pele - um paradoxo racista
de conseqüências geopolíticas monumentais. O objetivo
último da corporação ocidental que fabrica o creme (e
da suposta civilização ocidental que a estimulou a conceber
essa idéia macabra) é simplesmente clarear a cor da
pele de um bilhão de pessoas!
A indústria de imagens da sociedade de
massa nasceu após a consolidação desse imaginário racista.
Assim, a expansão da fotografia e, posteriormente, do
cinema serviu para difundir a hierarquia fenotípica
centrada nos brancos europeus que inventaram essas tecnologias.
Enquanto todos os povos não-brancos, em alguma medida
definidos como imperfeitos, exibem as variadas marcas
da sua segunda pele, o branco ocidental parece apresentar-se
como o único grupo humano não marcado; ou seja, o único
grupo cujos atributos de humanidade já estariam expressos
na primeira pele, na pele puramente biológica. Obviamente,
trata-se de uma fantasia, as mais das vezes inconsciente,
de excepcionalidade, cujos efeitos de violência, física
e simbólica, sobre todo o mundo ainda não foi suficientemente
avaliada.
Essa ideologia de um corpo branco perfeito,
belo, inteligente e poderoso, sem marcas étnicas que
poderiam “enfeiá-lo” foi construída no contexto de uma
geopolítica colonialista de inferiorização e dominação
sobre os não-brancos do planeta. Tão poderosa mostrou-se,
porém, que os próprios brancos passaram a não mais enxergar
a sua segunda pele e começaram a construir uma imagem
do poder, da riqueza e da beleza como fenômenos passíveis
de manipulação através de intervenções na sua anatomia,
isto é, diretamente na primeira pele. Ou seja, passou-se
a intervir na primeira pele, não mais para marcá-la
como exemplo de um grupo singular de seres humanos,
mas como se fosse uma alteração direta da pele biológica,
um aperfeiçoamento da herança genética individual.
Que fique claro, todavia, que a brancura
e a loirice que se espalham hoje não se referem de fato
ao fenótipo europeu predominante, mas a uma loirice
virtual, ou hiper-real. Aqui, podemos corrigir ou acrescentar
algo à teoria do simulacro de Baudrillard [9]
: o corpo que primeiro desaparece na hiper-realidade
é o corpo branco. É com o seu desaparecimento, e conseguinte
auto-instauração como corpo hegemônico, que ele procedeu
a desaparecer com toda a grande diversidade de corpos
portadores de milhares de segundas peles, decretando-os
todos meramente como corpos não-brancos. Dito com outra
metáfora, o Photoshop foi inventado para retocar
primeiro a pele dominante, não a pele dominada, como
podemos pensar os subalternos de hoje.
Na verdade, podemos complementar os ensaios
de Walter Benjamin sobre a fotografia e o cinema e os
escritos de Baudrillard sobre o simulacro, acrescentando
uma dimensão crucial que lhes escapou: que todas as
tecnologias modernas da imagem, incluindo a fotografia
e o cinema, logo após sua invenção, foram colocadas
a serviço de um projeto racista fenotípico. As tecnologias
da imagem, além de introduzirem novas sensibilidades
(como nos alertou Benjamin) e novas armadilhas sensíveis
(como teorizou Baudrillard a partir do trompe l´oeil,
por exemplo) se dedicaram não tanto a retratar, mas
a produzir representações da hierarquia fenotípica dos
seres humanos.
No início do extraordinário filme Moloch [10] , de Aleksandr Sokurov, quando Hitler cumprimenta Eva Braun
ao entrar no chalé, ele lhe dirige o então maior dos
elogios: “Eine Antike Schönheit!” (Uma beleza clássica!).
Esse significante Antike, tão presente nos filósofos
e historiadores da arte alemães a partir do chamado
Renascimento, une os dois pólos da idealização de uma
pele branca sem marcas e de preferência coroada por
um cabelo loiro: o “grego antigo” e o “alemão (ariano
ou germânico?) moderno”. Como sabemos, essa idealização
estética, mais do que agonística, foi letal para milhões
de seres humanos na metade do século XX e ainda o é
hoje em
dia. Resta saber até quando continuará
sendo.
Um efeito devastador do uso racista da
fotografia e do cinema, por mais de um século ininterrupto,
foi o achatamento e a simplificação dos corpos pela
bidimensionalidade desses dois sistemas de representação.
A imagem bidimensional dos personagens registrados (atores
ou não) pareceu retirar-lhes a segunda pele, universalizando
o seu corpo como hegemônico e suscitando uma referência
idealizada de beleza praticamente inatingível. Para
os não-brancos, foi óbvia sua inferiorização diante
dos brancos e as tecnologias cumpriram seu papel na
universalização do hetero-racismo: eu sou superior a
vocês, é a mensagem implícita na imagem bidimensional
do corpo branco ocidental hegemônico. Mas os brancos
também foram afetados. Diante do padrão “clássico” de
beleza inalcançável dos seus supostos pares étnicos
(os brancos representados com destaque nas fotos e nos
filmes), a pessoa branca comum passou a introjetar o
auto-racismo: eu sou um ser inferior no interior do
meu próprio grupo.
As operações plásticas retocam a pele,
mas não a marcam. A marca inscrita na pele, isto é,
a segunda pele, não necessita de retoques. Por outro
lado, por mais que se retoque a primeira pele, não se
consegue imprimir nela uma marca de segunda pele. No
mundo ocidental contemporâneo, as pessoas brancas estão
desesperadamente fazendo intervenções físicas e retoques
imagéticos na sua pele e na sua anatomia na tentativa
de retomar alguma marca da segunda pele que sentem não
mais possuir e cuja falta lhes retira a auto-estima.
No auge das propostas de descolonização do continente
africano, na época da luta aberta contra o racismo fenotípico
ocidental, Frantz Fanon redigiu o seu libelo dramático:
Pele Negra, Máscaras Brancas.
[11] Hoje em dia esse predicamento continua,
tão ou mais intenso quanto nos anos cinqüenta do século
passado. Porém, há outro predicamento agora, fruto da
carência branca de uma segunda pele: “Pele Branca, Máscaras
Brancas”.
Um exemplo bem comum de auto-racismo e
de hetero-racismo através de operação plástica (e bem
conhecido na mídia de massa hegemônica) são as transformações
do corpo da apresentadora e atriz Xuxa. Nos meados dos
anos oitenta, ela diminuiu e remodelou o nariz; reduziu
o volume da coxas para parecer menos voluptuosa e aproximar-se
mais do corpo da boneca Barbie, que supostamente combina
com sua loirice; e diminuiu também os glúteos e os seios,
para parecer menos “vulgar” na sexualidade normatizada
brasileira que tem como referência o corpo da chamada
“mulata”. No livro de Amélia Simpson sobre Xuxa, de
1982 (cuja edição brasileira teve baixíssima circulação
no Brasil, aparentemente porque a própria apresentadora
mandou comprar a maioria dos exemplares impressos e
os destruiu), pode-se ver, na pág 142, em uma foto sua
ao lado de Pelé, como era o seu nariz original (menos
“branco europeu”, digamos); e na foto da pág. 141 suas
coxas são mais grossas que as de hoje e seus glúteos
mais proeminentes. Já os seus seios, aparentemente foram
reduzidos naquela época e mais recentemente, após a
maternidade, foram de novo aumentados.
Exemplos espetaculares de manipulação auto-racista
da primeira pele, tão comuns nos Photoshops,
podem ser apreciados no site da companhia iWANEX
Studio. Folheando seu portfolio de grandes celebridades
podemos destacar as duas fotos da cantora Beyoncé, antes
e depois dos retoques para deixar sua imagem mais “clássica”.
As alterações são realmente drásticas e, a partir do
que ali ficou representado do seu corpo biológico (isto
é, da sua primeira pele antes das inevitáveis plásticas),
provavelmente muitos de nós não a reconheceríamos se
a encontrássemos casualmente em algum lugar público.
Eis o que fez iWANEX com o corpo fotografado de Beyoncé:
afinou a sua cintura e retirou-lhe os “pneus” da barriga;
corrigiu e alinhou a ossatura um pouco saliente do ombro
direito; eliminou a flacidez e até o formato natural
do braço direito; reduziu drasticamente a batata da
perna; retirou as olheiras; levantou as sobrancelhas
de modo a tornar mais evidente a cor clara dos olhos;
corrigiu a coxa; como no caso da Xuxa, diminuiu os seus
glúteos para parecer menos “africana” e mais “européia”;
levantou os seios; clareou e alisou os cabelos; arrumou
a bochecha; eliminou uma pequena arruga do lado direito
do nariz. E o que mais importa no racismo fenotípico
moderno: clareou bastante a sua pele.
Um grande exemplo de representação da beleza
de segunda pele de um corpo não-branco é a foto que
Pierre Verger tirou de Mãe Senhora, que foi uma das
mais famosas mães de santo da Bahia e, por muitos anos,
a iyalorixá do candomblé Axé Opô Afonjá de Salvador.
Nessa foto magistral, reproduzida na capa do livro feito
em sua homenagem, Mãe Senhora exibe uma beleza majestática
deslumbrante, sem nada dever às proporções “clássicas”
de Eva Braun, Madonna, Xuxa, Beyoncé ou equivalentes
que recusariam seu sobrepeso, seus seios excessivos
ou mesmo a sua cor retinta e as suas marcas de nação
que a enraizavam na comunidade religiosa de matriz africana
no Brasil.
Assim como os não-brancos resistem com
a sua segunda pele ao hetero-racismo fenotípico, também
muitos brancos oferecem resistência contra o auto-racismo
que também lhes inferioriza através da imposição de
um padrão fenotípico idealizado e inalcançável. Tal
é o caso do movimento punk britânico, por exemplo, nos
anos setenta, que introduziu para os jovens brancos
um modelo de cabelo não-“clássico”, não-ariano, não-branco:
o moicano, inspirado no modelo de beleza dos
índios norte-americanos, grupos étnicos não-brancos
que foram massacrados durante os últimos séculos da
modernidade pelos anglo-saxões brancos. Introduziram
também, em outro gesto estético de solidariedade, o
piercing no nariz, inspirado também na beleza
da segunda pele de vários grupos étnicos não-brancos
da Índia, habitantes justamente do sub-continente que
foi devastado pelo colonialismo britânico por mais de
três séculos.
Assim, uma vez compreendida toda a dramaticidade
e a letalidade do racismo fenotípico ocidental contemporâneo,
que se globaliza através das poderosas tecnologias de
imagem, físicas e virtuais, é preciso incentivar e apoiar
a resistência da segunda pele que une todos os oprimidos,
não-brancos e brancos, vítimas tanto do hetero-racismo
como do auto-racismo. Não uma, mas milhares de belezas
“clássicas” diferentes a se construir nos quatro cantos
do mundo.
Referências bibliográficas
BAUDRILLARD, Jean. A Troca Simbólica
e a Morte. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
______________. Simulacros e Simulação. Lisboa:
Relógio D’agua, 1981.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica”. In: Benjamin, W. Obras Escolhidas.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
__________. “Pequena história da fotografia”. In:
Benjamin, W. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense,
1985.
BERNAL, Martin. Black Athena. The Afroasiatic Roots
of Classical Antiquity. New
Brunswick: Rutgers
University Press, 1987.
CARVALHO, José Jorge. “Transformações da Sensibilidade
Musical Contemporânea”, Horizontes Antropológicos,
Ano 5, No. 11, 59-118, 1999.
___________. “A Morte Nike: Consumir, o Sujeito”, Universa,
Vol. 8, N° 2, 381-396. Universidade Católica de Brasília,
junho, 2000.
DIOP, Cheik Anta. Civilisation ou Barbarie: Anthropologie
sans Complaisance. Paris: Présence Africaine, 1981.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas.
Rio de Janeiro: Editora Fator, 1983.
HESSE, Hermann. O Jogo das Contas de Vidro. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1969.
ISAAC, Benjamin. The Invention of Racism in Classical
Antiquity. Princeton: Princeton University
Press, 2004.
KRISTEVA, Julia. Women’s Time, Signs, Vol.7,
No.1, 5-25, 1981.
POIGNANT, Roslyn. Professional Savages. Captive Lives
and Western Spectacle. New Haven:
Yale University
Press, 2004.
SANTOS, José Félix & Cida da Nóbrega (orgs.) Maria
Bibiana do Espírito Santo. Mãe Senhora. Salvador:
Editora Corrupio, 2000.
SIMPSON, Amelia. Xuxa. The Mega-Marketing of Gender,
Race, and Modernity. Philadelphia:
Temple University
Press, 1993.
________. Xuxa. São Paulo: Editora Sumaré, 1994.
As idéias deste ensaio, aqui apresentadas
de forma extremamente concisa, são desdobramentos
de outras discussões sobre a indústria cultural contemporânea.
Cf. CARVALHO, José Jorge. “Transformações da Sensibilidade
Musical Contemporânea”, Horizontes Antropológicos,
Ano 5, No. 11, 59-118, 1999. CARVALHO, José Jorge.
“A Morte Nike: Consumir, o Sujeito”, Universa,
Vol. 8, N° 2, 381-396. Universidade Católica de Brasília,
junho, 2000. Contei aqui com a ajuda de Jocelina Laura
de Carvalho e Ernesto Ignacio de Carvalho.
KRISTEVA, Julia. “Women’s Time”, Signs,
Vol.7, No.1, 5-25, 1981.
DIOP, Cheik Anta. Civilisation ou
Barbarie: Anthropologie sans Complaisance. Paris:
Présence Africaine, 1981.
BERNAL, Martin. Black Athena. The Afroasiatic
Roots of Classical Antiquity. New
Brunswick: Rutgers
University
Press, 1987.
ISAAC, Benjamin. The Invention of
Racism in Classical Antiquity. Princeton: Princeton University
Press, 2004.
BENJAMIN, Walter “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica” & “Pequena história
da fotografia”. Em: Obras Escolhidas. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
Cannibal Tours. Dir: Denis O´Rourke, 72 min. Austrália:
CameraWork, 1988.
HESSE, Hermann. O Jogo das Contas
de Vidro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1969.
BAUDRILLARD, Jean. A Troca Simbólica e a Morte.
São Paulo: Edições Loyola, 1996; BAUDRILLARD,
Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio
D’agua, 1981.
Moloch. Dir: Aleksandr Sokurov,
108 min. Rússia, Alemanha, França, Itália, Japão,1999.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras
Brancas. Rio de Janeiro: Editora Fator, 1983.
|