O
rosto fala... Desfaz a cada momento a forma que oferece.
Emmanuel Lévinas
[1]
A boca e o nariz, e antes de tudo
os olhos, não se tornam
superfícies esburacadas sem convocar todos os outros
volumes e todas as outras cavidades do corpo. Operação
digna do Dr. Moreau: horrível e esplêndida. A mão, o
seio, o ventre, o pênis e a vagina, a coxa, a perna
e o pé
serão rostificados.
Gilles Deleuze
[2]
Em
1959, o diretor de cinema George Franju apresentou seu
longa-metragem intitulado Os olhos sem rosto,
uma obra que hoje é conhecida como “o mais belo e apavorante
filme francês de todos os tempos”. Uma sofisticada estética
expressionista envolve o relato com sua atmosfera asfixiante,
enquanto a câmera acompanha um cientista-louco na caça
de jovens mulheres para extirpar-lhes o rosto. As operações
ocorrem em um laboratório montado na garagem da inevitável
mansão, em meio a um bosque sempre brumoso, soturno
e invernal. As faces das belas vítimas são cuidadosamente
recortadas com um bisturi para serem transplantadas
na filha do cirurgião: a desventurada Christiane Génessier,
uma espécie de bonequinha dos anos cinqüenta cujo rosto
foi dilacerado após um acidente. Só restaram seus olhos,
que cintilam no cerne de uma máscara inexpressiva de
um branco imaculado.
Meio século mais tarde, já neste reluzente século XXI,
não é segredo para ninguém que cientistas franceses
conseguiram realizar o primeiro transplante de rosto
em uma jovem mulher. Fora da ficção, do lado daqui da
realidade, a façanha foi profusamente festejada em todo
o planeta. A audaciosa aventura foi executada com êxito
após uma leve demora motivada por “problemas éticos
e espirituais”. Dúvidas ligadas ao fato de o rosto ser
uma peça bastante peculiar da anatomia humana: uma parte
do corpo com certa aura sagrada, (ainda?) fortemente
vinculada à idéia de uma “identidade” inalienável de
cada sujeito.
Nos inícios de 2004, quase dois anos antes de ser consumada
a primeira operação desse tipo, o cirurgião Laurent
Lantiéri admitiu que já era tecnicamente possível efetuá-la.
“Minha equipe é capaz de fazê-lo”, anunciou o médico,
“podemos transplantar o rosto de uma pessoa falecida
para uma viva que tenha sofrido um acidente grave”.
No entanto, considerando o arrojo implícito na proposta,
os cientistas se recusaram a continuar avançando sem
contar com a devida “aprovação da sociedade e de um
comitê ético e científico nacional”. Entretanto, como
costuma ocorrer nestes casos, a pressa e os prazos exerceram
suas pressões. Na época, informou-se que o Dr. Lantiéri
estava envolvido em “uma corrida contra o tempo e contra
dois concorrentes rivais: o britânico Peter Butler e
o norte-americano John Barker”.
[3]
Mas o tal comitê negou o pedido nesse mesmo ano, invocando
os diversos riscos que essa operação poderia acarretar
“tanto no plano médico-cirúrgico como no psicológico”.
Pouco tempo depois, a revista New Scientist informava
que uma equipe dos Estados Unidos, liderada pelo mencionado
Dr. Barker, tinha submetido um pedido ao comitê ético
de uma universidade local para “executar o primeiro
transplante mundial de uma face inteira”. [4]
Contudo,
tanto essas instâncias éticas nacionais como os obstáculos
jurídicos foram atropelados, quando outro médico francês
ganhou a corrida. Finalmente, a primeira cirurgia de
transplante parcial de rosto foi realizada em novembro
de 2005, pela equipe dos doutores Bernard Devauchelle
e Jean-Michel Dubernard. Após quinze horas de árduas
tarefas na sala cirúrgica, uma mulher de 38 anos denominada
Isabelle Dinoire, cujo rosto tinha sido despedaçado
pelo ataque do seu próprio cachorro, recebeu vários
traços faciais de uma doadora falecida: um triângulo
que compreendia a boca, o queixo, o nariz e boa parte
das bochechas. Assim como no filme de 1959, os olhos
permaneceram intocados. Apesar dos temores iniciais
a respeito de uma possível rejeição dos tecidos enxertados,
a intervenção foi um sucesso: a paciente recuperou um
rosto “normal”, mesmo que este não tivesse sido originalmente
seu. Com a nova face, a mulher reaprendeu não apenas
a falar, comer e respirar, mas também a sorrir, sentir
e até fumar. Daqui a pouco, garantem os médicos que
também conseguirá beijar. O fato é que agora esse rosto
passou a ser de Isabelle e ela é esse rosto,
embora confesse não ter planos de trocar a foto antiga
na carteira de identidade.
Pouco se sabe, aliás, de Maryline St. Aubert, a doadora
desses traços faciais que agora estão implantados em
outro corpo. Desconfia-se que essa mulher falecida aos
46 anos de idade teria cometido suicídio por enforcamento,
versão energicamente desmentida pelos médicos. Um prestigioso cirurgião
de face britânico, Iain Hutchison, comentou este primeiro caso admitindo que ainda são bastante ríspidas as questões morais e éticas em torno da doação
de tecidos faciais. “O material a ser transplantado
deveria ser extraído de um corpo que ainda tivesse o
coração batendo”, explica o especialista. No caso desta
primeira doadora, a retirada dos tecidos foi realizada
logo após o diagnóstico de morte cerebral. “Então, vamos
dizer que sua irmã está na UTI”, prossegue o Dr. Hutchison,
“você teria que concordar em permitir que a face dela
fosse removida antes de desligar os aparelhos de respiração,
e existe a possibilidade de o doador continuar respirando
depois disso”.
[5]
No ano seguinte desse primeiro passo ter sido dado
no Hospital de Amiens, foi transplantada na China uma
parte do rosto de um homem de 30 anos, que também tinha
sido atacado por um animal; neste caso, um urso. Já
na terceira operação, realizada na França em 2007, desta
vez pela equipe do Dr. Lantiéri, o paciente tinha 27
anos e não era vítima de um acidente, mas de uma doença
genética que provocava tumores cutâneos. Em seguida,
o cirurgião inglês Peter Butler — que foi o primeiro
a divulgar suas intenções, já em 2002 — obteve autorização
do comitê de ética de um hospital londrino para realizar
outra inovação em nível mundial: a reconstrução total
de um rosto humano.
Tal era o caso da desditosa Christiane, protagonista
do filme de terror de meados do século passado. A jovem
tinha sido muito bonita antes do acidente, provocado
sem querer por seu próprio pai, o Dr. Génessier, um
afamado professor e cirurgião parisiense. Porém, se
na decisão do cientista de restaurar essa beleza amada
flutuavam alguns vestígios de culpa, ainda mais vigorosa
era a vontade de perpetrar um grande feito tecnocientífico:
o primeiro transplante total de rosto. Um entusiasmo
que não é partilhado por sua filha, cuja angústia cresce
e se expande ao longo do filme. “Preferia ter ficado
cega, ou morta”, soluça a jovem desconsolada, quando
vislumbra que a experiência perseguida por seu pai “jamais
dará certo”. No entanto, desde o início do filme é evidente
que não foi ela quem optou por seu destino de cobaia,
como tampouco tiveram oportunidade de escolher as dezenas
de cachorros igualmente desesperados e enjaulados no
laboratório da luxuosa residência. “Por que ele me salvou?”,
insiste a jovem por trás da pálida máscara, “ele só
quer provar sua onipotência, mas nunca funcionará”.
A
possibilidade de renunciar, porém, não estava nos planos
do impetuoso Dr. Génessier. “Não há razão para duvidar
de mim”, declara o cirurgião, com a arrogância de quem
dispõe do saber e das ferramentas supostamente adequadas
para ir além. “O futuro já deveria ter começado”, acrescenta,
enquanto vibra ao imaginar as possibilidades da tecnociência
e despreza as palmas por tudo aquilo que já foi conquistado.
Como convém a um cientista realmente ambicioso, ele
nunca se conforma: quer ultrapassar os limites do possível.
“Eliminaram todos os espelhos, mas não adianta: ainda
posso ver meu reflexo nos cristais”, queixa-se a moça.
Superfícies brilhosas que surgem por toda parte, e que
em sua imediatez analógica refletem o horror de quem
não tem rosto: apenas olhos que insistem em não se apagar,
olhos que se recusam a deixar de enxergar. Na parede,
um enorme retrato mostra a bela jovem antes da tragédia,
com o rosto inteiro em torno dos olhos e sem máscara
alguma, como um Dorian Gray às avessas que ali ficou
petrificado.
Um dos médicos que participaram na cirurgia do primeiro
transplante de rosto, em 2005, referiu-se à condição
da paciente no estado prévio à intervenção como “monstruosa”,
enquanto a cirurgia teria lhe devolvido sua condição
“humana”. Isso não impediu, porém, que no meio da avidez
por mostrar os excelentes resultados, um ano depois
da operação, fossem divulgadas umas fotografias da paciente
retocadas com ferramentas de edição gráfica. Os jornais
e a agência responsável pelas imagens resolveram retirá-las
de circulação, depois que a equipe de comunicação do
Hospital de Amiens admitisse que “efetivamente, foram
efetuados alguns retoques”. Segundo os depoimentos,
o fundo das fotos e os cabelos da paciente “foram modificados
por computador, usando o software de imagens PhotoShop”.
[6] A polêmica desbordou nas mídias,
mas silenciou-se em seguida: os cientistas admitiram
que o sucesso do transplante foi ressaltado com esses
truques digitais, mas “isso não modificou em nada o
rosto”. A operação continuava sendo uma proeza admirável;
no entanto, o recurso ao PhotoShop é muito eloqüente
e não deve ser menosprezado.
Com efeito, apesar das abafadas brigas e desacordos
entre os cirurgiões envolvidos, a proeza foi promovida
com orgulho pelos representantes da ciência francesa,
com uma intensa repercussão midiática. No início de
2007, um documentário de uma hora de duração, intitulado Greffe du visage (literalmente, “enxerto de rosto”),
foi exibido na sala de cinema da Maison de France, no
Rio de Janeiro, com a intenção de contar “a história
de uma première mundial”. A equipe de filmagem
acompanhou a paciente Isabelle Dinoire ao longo de seis
meses, registrando “momentos intensos à espera da cirurgia e
os primeiros movimentos desse novo rosto”. Contundentes
imagens e vários depoimentos, tanto dos médicos como
da própria paciente, costuram o relato audiovisual dessa
“incrível odisséia humana”.
Após as três primeiras experiências de transplantes
bem-sucedidos, todos eles “reparadores” de rostos destruídos
por acidentes ou terríveis doenças, cabe imaginar uma
eventual aplicação cosmética deste recurso técnico no
futuro. Essa possibilidade foi sugerida no inquietante
episódio dos retoques digitais praticados nas fotografias
da primeira paciente, que visavam ressaltar as qualidades
estéticas dos bons resultados obtidos.
“Fazer um transplante facial é, antes que nada, devolver
ao paciente a possibilidade de reencontrar sua dimensão
estética”, reconhece a jovem médica Stéphanie Dakpé,
integrante da equipe que realizou essa primeira operação,
para depois acrescentar o seguinte: “mas se trata, sobretudo,
de recuperar os aspectos funcionais do rosto”. Reunidos
em um congresso sobre o assunto, Dakpé e sua colega
Sophie Carton, além do chinês Guo Shuzhong — que participou
na segunda intervenção em nível mundial — declararam
que “embora ainda sejam procedimentos experimentais,
uma vez que tenhamos acumulado mais experiência e tendo
avaliado a evolução a longo prazo das intervenções,
o transplante de rosto se tornará um procedimento de
rotina”. Os métodos ainda são muito complexos, requerem
a ação conjunta de cinqüenta profissionais e costumam
durar entre 15 e 17 horas; entretanto, todos admitem
que “a técnica já não é mais um problema”. No futuro
próximo, “uma vez que tenhamos conseguido mais experiência
e mais pacientes, demoraremos menos; é apenas uma questão
de tempo”.
[7]
Se for o caso de se converter em um recurso realmente
popularizado, cabe especular que a novidade poderia
integrar o profuso cardápio dos cirurgiões plásticos,
como mais uma opção de aprimoramento das aparências
corporais e faciais dos clientes. Não é impossível imaginar,
inclusive, o desenvolvimento de um aterrorizante comércio
de rostos belos e jovens de ocasião — como já estaria
ocorrendo com órgãos menos nobres da anatomia humana,
tal como sugere o filme Coisas belas e sujas (2002), de Stephen Frears, sem muitos pudores ou ambigüidades.
A cirurgia plástica brasileira Natale Gontijo, membro
da equipe de Ivo Pitanguy, levantou essa questão ao
afirmar que “precisamos definir uma legislação e estratégias
de fiscalização para que o transplante só seja feito
em pacientes com deformidades, que realmente o necessitam”.
Além da possibilidade da formação de “um mercado negro
de faces humanas, como já ocorre com o tráfico de órgãos”,
existe o risco de banalização do procedimento. Mas “o
transplante não pode se tornar simplesmente mais uma
cirurgia plástica”, concluiu a cientista. “Não pode
virar uma solução para uma pessoa que, por um motivo
ou outro, decide que não gosta mais do próprio rosto,
gosta do rosto de outra pessoa, e quer mudar”.
[8]
O Brasil, aliás, poderia ser um mercado bastante promissor
para o novo serviço, que parece um upgrade brutalmente
realista da fábula de Dorian Gray. Pois aqui a cirurgia
plástica não pára de crescer a um ritmo assombroso.
Com mais de 600 mil intervenções por ano, o país ocupa
o segundo lugar no mundo em quantidade de operações
deste tipo, somente ultrapassado pelos Estados Unidos.
Dados recentes indicam, inclusive, que a tendência é
atingir o primeiro lugar, “passando a frente dos EUA,
tradicionais campeões nesta área”, segundo informações
divulgadas no site Brazil
Medical Tourism, que promove as intervenções
estéticas como uma opção de visita turística ao país
tropical. “É como se, em cada dez mil habitantes brasileiros,
207 tivessem sido operados durante o ano que passou”,
afirma uma entusiasta reportagem citada, que data do
ano 2001.
Até agora, os procedimentos mais solicitados pelos
consumidores brasileiros são as lipoaspirações em diversas
partes do corpo, que respondem por mais da metade das
operações. Em segundo lugar, abundam os implantes de
silicone nos seios, e logo em seguida vêm os retoques
na face: modificações na forma do nariz, especialmente,
mas também na pele das pálpebras, no queixo e nas orelhas.
“Faço um nariz em vinte minutos”, assevera com satisfação
um dos especialistas mais procurados do país, o Dr.
Herbert Gauss Jr., em uma reportagem publicada no último
ano do século passado com o intuito de comentar “o caráter fast-food” que a cirurgia plástica já estava
atingindo em terras brasileiras. O mesmo médico admitia
cobrar entre quatro e doze mil reais por cada intervenção,
facilitando o pagamento em várias prestações, e reconhecia
a utilização de fotografias para planejar as alterações
no rosto e no corpo dos pacientes. Com a ajuda de uma
equipe de quinze profissionais, não é raro que um cirurgião
desse nível opere simultaneamente em quatro locais diferentes
e faça mais de cem intervenções por mês: “só chego quando
está tudo preparado”, constatou o médico.
[9]
De acordo com
estimativas da Sociedade Brasileira
de Cirurgia Plástica, que é a segunda maior entidade
do tipo no mundo, 69% dos pacientes nacionais são mulheres
e 31% são homens; desse total, 21% são jovens com até
18 anos de idade.
Conforme o imaginário atual, porém, e como também insinua
o recurso ao PhotoShop nas fotografias de “antes
e depois” no caso da primeira paciente que recebeu um
enxerto de rosto, a cirurgia plástica parece ter se
distanciado da carnalidade orgânica, demasiadamente
orgânica, que insiste em conformar nossos corpos demasiadamente
humanos. Hoje em dia, como resultado da sofisticação
de seus métodos e sua eficiente publicidade nas mídias,
essa renomada especialidade médica ganhou uma delicadeza
inaudita. Agora, inclusive, não parece mais operar com
bisturis e tesouras que fazem cortes na carne, deixando
hematomas nada estéticos e dolorosas cicatrizes no pós-operatório.
Mas essa dissimulação, essa construção imaginária da
cirurgia estética como uma técnica menos cruenta do
que na verdade é, inscreve-se na tradição de ocultação
da dor que caracteriza nossa cultura.
“Quanto
mais civilizada for a sociedade que ministra dor, tanto
mais ela irá ocultar o fundamento da crueldade na qual
essa dor se sustenta”, explica Enrique Ocaña, autor
de diversos estudos sobre a relação entre técnica e
dor. O ensaísta espanhol ainda recorre a um texto escrito
em 1836 por John Stuart Mill, um dos pais da sociologia,
lembrando que “cirurgiões, juizes e soldados mantêm
relações de parentesco com o carrasco e o açougueiro”.
Mas a tarefa da civilização consiste, precisamente,
em ocultar tais afinidades. Portanto, apenas uma mudança
de perspectiva ou um estranhamento capaz de desnaturalizar
essas práticas mediante a distancia crítica “pode nos
revelar as crueldades em virtude das quais sobrevivemos”. [10]
Assim, enquanto os resultados almejados nos rostos
e corpos dos pacientes são exibidos em fotografias cuidadosamente
confeccionadas, ao mesmo tempo costumam esconder-se
os procedimentos (sujos e penosos) que levam a atingi-los.
Mostra-se apenas a reluzente “versão final”, o resultado
como uma bela imagem bem construída, enquanto são silenciados
os rudes métodos que foi preciso implementar para conseguir
tal façanha. Por meio de artimanhas desse tipo, a cirurgia
plástica é “vendida” como uma técnica não apenas onipotente
e quase mágica, mas também asséptica e virtualmente
indolor. Quase digital, como se em vez de operar
com instrumentos de metal afiado que rasgam a pele,
dilaceram os órgãos e causam ferimentos doloridos, os
profissionais desta área trabalhassem apenas sobre a
mais etérea imagem corporal, utilizando dóceis ferramentas
de software de design gráfico.
A origem etimológica do termo “cirurgião” pode trazer
algumas pistas interessantes. A palavra provém do latim chirurgia, por sua vez tomado do grego kheirurgia,
cuja etimologia remete ao trabalho manual ou à prática
de um ofício: kheir (mão) e érgon (trabalho).
Estas raízes revelam um lado esquecido dessa prática:
desde a Antiguidade até alguns séculos atrás, a tarefa
do cirurgião não era muito valorizada socialmente. Até
o Renascimento, inclusive, os médicos costumavam deixar
esse “trabalho sujo” aos cuidados dos açougueiros ou
dos barbeiros. Por isso, há quem diga que o sinal branco
e vermelho que ainda flameja na entrada dos salões de
cabeleireiros em alguns paises, alude ao pano utilizado
pelos barbeiros para limpar suas navalhas quando concluíam
a tarefa.
Se
pensarmos no auge das cirurgias plásticas no mundo contemporâneo,
e no crescente prestígio e concomitante fortuna de seus
executores, surge uma ironia: hoje cirurgiões e cabeleireiros
tornam a se aproximar, como profissionais bem cotados
a serviço desse recurso tão prezado entre nós: a beleza
física. Há uma enorme diferença, porém, com o que ocorria
antigamente: sua qualidade de “trabalho sujo” foi abafada
e sua boa reputação não cessa de aumentar. Ou, pelo
menos, seus orgulhosos representantes teimam em remanescer
o mais longe possível da pavorosa figura do açougueiro.
E, de fato, conseguem-no: aquela imagem violenta e suja
de sangue, não foi apenas asseada como também glamourizada.
Assim, os cirurgiões estéticos de nossos dias se afastam
daquele outro cientista-louco, o médico gótico representado
na literatura pelo Dr. Frankenstein, enquanto se aproximam
do escultor grego Pigmalião — aquele que criara uma
bela estátua em marfim: uma mulher artificial,
porém mais perfeita que qualquer dama de carne e osso.
O mítico personagem acabou se apaixonando pela sua escultura,
deu-lhe vida e a desposou em feliz matrimônio.
Acompanhando os fabulosos avanços das técnicas que
permitem as mais diversas intervenções na vida e nos
corpos, nestes primeiros anos do século XXI, nossos
mitos e crenças ligados ao corpo humano não apenas abandonam
os açougues e as imagens ensangüentadas de outrora,
mas além disso se desvinculam das antigas metáforas
mecanicistas do “homem-máquina”. Cada vez mais longe
daquelas noções surgidas no século XVII e enriquecidas
ao longo de trezentos anos por diversos filósofos, cientistas
e artistas, agora nossos corpos são impregnados por
metáforas ligadas às tecnologias digitais. Esse processo
acompanha a crescente compatibilidade entre os
organismos humanos e a aparelhagem informática, não
apenas no campo da medicina mas também em todos os âmbitos
da existência.
Assim, por exemplo, a genética e as neurociências —
duas áreas privilegiadas das novas ciências da vida
— parecem coincidir em seu grande sonho. Dispensando
os bisturis e as incisões na carne, estes novos saberes
pretendem desvendar os códigos, sinais e circuitos pelos
quais trafega a informação vital dos seres humanos,
visando a reprogramá-la. Para isso, utilizam
sofisticados aparelhos digitais: seqüenciadores de DNA,
tomógrafos computadorizados e dispositivos de ressonância
magnética. A intenção não é apenas decifrar esses enigmas
inscritos nas próprias moléculas, mas busca-se também
a possibilidade de manipular essa informação vital,
efetuando ajustes em sua programação para corrigir eventuais
“defeitos”.
Supõe-se que esses códigos e sinais que logo serão
decifrados e reprogramados, são capazes de definir a identidade de cada indivíduo. Estaria gravado
ali, no âmago das nossas células, aquilo que cada um é. Esses dados se hospedam no mais íntimo substrato
biológico de cada sujeito; no entanto, em que pese essa
materialidade carnal, as entidades que armazenam essa
valiosa informação são quase etéreas: os circuitos cerebrais
e o código genético, por exemplo. Em um processo que
se apresenta como paradoxal, houve uma “desmaterialização”
das raízes corporais do nosso cerne individual. Assim,
como resultado dessa operação histórica de “virtualização”
ou mesmo “digitalização” das nossas essências, fruto
de um complexo processo metafórico, conceitual e biopolítico,
a subjetividade torna a repousar sobre bases imateriais.
Agora, porém, é a própria matéria orgânica que de algum
modo se desmaterializa ao se “digitalizar”. De alguma
maneira, ela perde sua condição carnal ao se traduzir
em códigos, letras químicas e imagens pixeladas.
O rosto humano é um desses elementos corporais que
hoje se distanciam das metáforas do “homem-máquina”
tradicional, para se submeter às mais diversas tentativas
de digitalização. Não apenas nos transplantes
de rosto retocados com o PhotoShop, uma ferramenta
cujo uso já é tão habitual que motiva sua explicitação
supostamente crítica em publicidades de produtos de
beleza — tal é o caso do clipe Evolution,
da marca de cosméticos Dove, que mostra as transformações
e as diversas intervenções técnicas no rosto de uma
modelo desde que chega ao estúdio fotográfico até terminar
estampada em um outdoor publicitário.
Além disso, são criados “programas de reconhecimento
de face” para comandar sistemas de segurança digitais.
Cabe destacar, por exemplo, a “tecnologia de reconhecimento
de sorrisos” desenvolvida pela empresa japonesa Omron.
Trata-se de um dos programas que integram o pacote de
software Okao Vision, que é capaz de “detectar
rostos em imagens, além de inferir a idade aproximada
e o gênero da pessoa, bem como verificar sua identidade
em um banco de rostos”. [11]
Outra variante é constituída pelas ferramentas
com fins artísticos, tais como o software Cyberface, apresentado como “uma nova tecnologia que captura
a alma”. Esse programa de computador permite copiar,
com um realismo estonteante, todos os gestos faciais
de uma pessoa real nos mais diversos personagens, sejam
fictícios ou não — tais como atores já falecidos, por
exemplo, a partir de fotografias digitalizadas e reanimadas.
[12] Outro software que recorre à “digitalização
de gestos faciais” foi idealizado por cientistas holandeses
que trabalham para uma grande companhia fabricante de
diversos bens de consumo para o mercado global, com
a intenção de “medir o grau da felicidade” de cada sujeito
diante de seus diversos produtos.
[13]
Também foi inventado um espelho capaz de se converter
em tela de televisão ou em monitor de computador, a
fim de permitir o acesso a informações digitais enquanto
os usuários se observam na superfície brilhosa e retocam
seu visual. Assim, a própria imagem corporal — e, sobretudo,
o rosto — parece perder gradativamente sua condição
analógica e orgânica, anunciando uma possível proliferação
de versões digitais do pictórico Dorian Gray, o visionário
personagem do romance de Oscar Wilde, cuja beleza e
juventude se perpetuavam em seu corpo enquanto seu retrato
envelhecia na parece da sala.
Algo parecido já existe, de fato, nas ferramentas de
software que alguns cirurgiões plásticos (e alguns cabeleireiros)
utilizam para mostrar aos seus clientes os possíveis
“resultados finais” das intervenções estéticas em seus
rostos e corpos. Para isso, recorrem a técnicas de morphing de imagens que incorporam à fotografia original do paciente
os traços desejados de outros rostos e corpos — sejam
digitalmente “transplantados” de outras pessoas, ou
então programados em puro software de ficção. Com a
popularização desse tipo de instrumentos parece dialogar
a obra de outra francesa que também foi pioneira em
seu campo: Orlan, uma artista performática que realiza
“arte-carnal”. Nessas variantes radicais do auto-retrato,
que resultam de diversas cirurgias plásticas efetuadas
em seus traços faciais, são colocadas em questão “as
identidades definidas pelo rosto”. Em certos casos,
a própria Orlan também utiliza esse tipo de software
de morphing de imagens para hibridizá-las com
sua própria face plasticamente retocada.
[14]
São múltiplas as perplexidades envolvidas nesses fenômenos
de “digitalização do rosto”, cuja riqueza merece ser
explorada se desejarmos enxergar as metamorfoses que
nos mostram os espelhos. De acordo com as mais recentes
“verdades” emanadas da nossa tecnociência, o ser humano
é uma criatura fundamentalmente cerebral e geneticamente
determinada, pois sua “identidade” está inscrita nessa
informação biológica, que se hospeda em regiões recônditas
e quase virtualizadas de seu cérebro e seu capital genético.
O mundo, o ambiente, os outros e a própria carne parecem
alheios a essa essência confinada nas íntimas moléculas
imaterializadas. O resto de seu corpo não passa de um
mero ornamento desse núcleo identitário — inclusive
o rosto, apesar de seu caráter mais próximo da “sacralidade”;
ou seja, daquilo que não se deveria mexer para não deixar
de ser si mesmo. No entanto, é por causa de todas
essas redefinições em andamento que tanto esse corpo
como esse rosto processados pela lógica digital podem
ser substancialmente modificados, sem que tais mudanças
coloquem em risco a base individual que alicerça cada
subjetividade.
Ao contrário, até. De uma maneira crescente, parece
que a verdadeira essência de cada um só pode ser conquistada
a partir dessas transformações no aspecto físico: somente
assim seria possível atingir a mais autêntica singularidade
individual. Em casos extremos, como ocorre nesse novo
gênero de programa de televisão conhecido como “reality
shows de transformação”, mudar as aparências passa
a ser um requisito obrigatório, necessário e suficiente,
para “reencontrar-se” consigo mesmo, para iniciar uma
“vida feliz” ao se tornar enfim aquela pessoa que cada
um realmente deseja ser.
[15]
Outra versão caricatural desses processos é retratada
no filme Time (2006), do diretor coreano Kim
Ki-duk, no qual uma jovem mulher passa por uma série
de transformações cirúrgicas com a intenção de driblar
as armadilhas do tempo e manter acesa a atração exercida
sobre o namorado; tudo convenientemente planejado a
partir de imagens projetadas com software de design.Assim,
também, por exemplo, quando a transexual de nome Agrado,
uma das personagens do filme Tudo sobre minha mãe (1999), de Pedro Almodóvar, declara que “uma mulher
é mais autêntica quanto mais se parece com o aquilo
que sonha ser”, também está aludindo às várias intervenções
cirúrgicas às quais deveu se submeter para se tornar
o que ela é.
Portanto, não são apenas as cirurgias plásticas padronizadoras
que contribuem para abrir o caminho rumo a essa curiosa
“autenticidade” tecnicamente fabricada, mas também as
práticas mais radicais de body modification,
dos piercings e tatuagens até as mutilações, queimaduras,
escarificações e amputações de membros. Nesse sentido,
um eventual transplante de rosto também poderia ajudar...
por que não? Afinal, como afirmou uma reconhecida “viciada”
em cirurgias estéticas e exercícios físicos, respondendo
àqueles que a acusam de não ter um corpo natural:
“quem pode dizer que essas partes do meu corpo não são
minhas, se eu as escolhi e paguei um bom preço por todas
elas?”. Ou, ainda, como disse a cantora Baby do Brasil
aos 48 anos de idade, quando resolveu acrescentar 240ml
de silicone em seus seios: “o
melhor da cirurgia plástica é poder co-criar com Deus
as formas que ele me deu”. [16]
Pois não são apenas as fabulosas possibilidades técnicas
fornecidas por nosso saber científico que contribuem
para configurar este complexo fenômeno. Outro ingrediente
fundamental é a pedagogia da mídia, que contribui para
disseminar essas novas “verdades”. Sob o entusiasta
impulso do mercado, os meios de comunicação de todo
o planeta não se cansam de apregoar que a substância
que constitui nossos corpos é dócil. Recorrendo às mais
diversas técnicas à venda, o corpo de cada um de nós
pode ser aprimorado. Entretanto, por se tratar de um
organismo que é valorizado em seus contornos visíveis,
é justamente isso que nele deve ser constantemente aperfeiçoado:
a imagem corporal.
Esse desejo de conquistar a felicidade imagética ligada
ao corpo não é uma mera futilidade, que por tanto deveria
ser desestimada, como tampouco é irrelevante essa intensa
busca da singularidade inscrita no próprio aspecto físico.
Embora se trate de uma peça aparentemente secundária
e perfeitamente modificável, longe das essências profundas
que definem o que se é (essências enraizadas
nas entranhas biológicas de cada um), não há dúvidas
quanto à importância do corpo na cultura contemporânea.
Pelo menos nesse sentido: como uma silhueta visível.
O corpo se apresenta, assim, como uma imagem para ser
exibida e observada — e que deve ter um determinado
aspecto, obedecendo aos rituais padronizados da moral
da “boa forma” e do “bem-estar”.
Essa ênfase na visibilidade complementa outra tendência
bem contemporânea: um deslocamento dos eixos em torno
dos quais as subjetividades modernas se construíam.
Esses eixos se distanciam, gradativamente, do cerne
profundo da interioridade psicológica, para se inscrever
nas próprias células e se mostrar na superfície da pele.
Naquele quadro típicamente moderno, onde germinava o
tipo subjetivo que alguns autores denominam homo
psychologicus ou personalidades introdirigidas,
as máscaras que eventualmente cobriam o rosto no espaço
público também ocultavam uma verdade interiorizada e
fundamental: aquilo que realmente se era.
[17] Pois aquele cerne vagamente “interior”
era obscuro e opaco por definição, além de possuir uma
estabilidade que condenava cada um a ser aquilo
que era. Um âmago duro e essencial, cujos mistérios
resistiam à penetração técnica. Por isso, pode-se dizer
que a enigmática “vida interior” de cada um ostentava
características analógicas, imunes à informatização digital e às sondagens técnicas. Em vez disso,
demandavam complexos métodos introspectivos e hermenêuticos
para desvendar seus segredos.
Uma
máscara desse tipo é a que cobre o rosto inexistente
da infeliz Christiane Génessier: em seu branco impenetrável
e mudo, trata-se de uma máscara pesadamente analógica.
Apesar do seu aspecto de boneca que remete à sua contemporânea
Barbie (um brinquedo casualmente nascido em 1958), e
em que pesem seus movimentos rígidos de robô ou de mulher-máquina,
a filha do médico encarna uma personalidade fortemente introdirigida. O núcleo do seu ser lateja em
sua interioridade oculta: uma alma ferida, cujas janelas
se escancaram no olhar expressionista que a impávida
máscara constringe. Por isso, apesar do aparente afinidade
com a Barbie que seu aspecto e seus modelitos anos cinqüenta
por vezes insinuam, o personagem de Christiane nada
tem a ver com as atuais imitadoras da famosa boneca
a força de cirurgias plásticas e cabelos tingidos —
tais como a britânica Cindy
Jackson, que exibe suas barbitúricas transformações
na Internet. Se a senhorita Génessier encarna uma genuína
tragédia enquanto essas cópias da Barbie sugerem um
tom de leve comédia, é por motivos semelhantes que a
filha do médico-louco protagonizou um relato de terror
com um desenlace atroz cinqüenta anos atrás, enquanto
Isabelle Dinoire acabou de se tornar a estrela de um
documentário bem realista com final feliz.
O acaso quis semear uma coincidência, talvez como uma
inquietante dobradiça entre ficção e realidade, ou como
uma pista perdida para algum leitor do futuro. No início
das penúrias da primeira mulher submetida com sucesso
a um transplante de traços faciais, cuja epopéia terminou
em aparente happy end, houve um cachorro que
bestialmente destruiu boa parte do seu rosto. Eis que
os cachorros também desempenham um papel fundamental
no final nada feliz de Os olhos sem rosto. Liberados
por Christiane em um momento de catarse, os cães mordem
e desfiguram a face do ambicioso Dr. Génessier, em um
claro episódio de vingança das cobaias contra o cientista
outrora onipotente. Assim, em uma casualidade que talvez
o mero acaso não saiba explicar por completo, são emblemáticas
as cenas do longa-metragem em que a jovem mascarada
acaricia as cabeças e chega até a beijar as peludas
bochechas dos cachorros enjaulados: cães que mostram
seus dentes, mas mal conseguem gemer.
Para
além dessa impressão umheimlich de difícil elucidação,
é evidente que neste meio século nos distanciamos muito
daquele quadro expressionista com reminiscências góticas,
pintado em preto e branco por George Franju em 1959.
Agora, nossa essência subjetiva abre seus poros para
a exploração técnica sem fios: é a era dos instrumentos
digitais — silenciosos e muito limpos, porém não menos
incisivos. Nesse processo, o rosto também parece estar
deixando de ser uma parte do corpo inextricavelmente
atrelada à idéia de uma “identidade” inalienável de
cada sujeito. Em meio a essas metamorfoses, evaporam-se
aqueles enigmas interiores que ancoravam a subjetividade:
dissipam-se e tendem a desaparecer, junto com os traços
indesejáveis e excessivamente visíveis que cravejam
nossos corpos. À medida que a “identidade” se desloca
rumo a entidades aparentadas com o universo digital,
como o código genético e os circuitos cerebrais, inventam-se
aparelhos capazes de decifrar essas essências. Assim,
tanto o organismo humano como a subjetividade de cada
indivíduo tornam-se compatíveis com essa eficaz aparelhagem.
Mas essa compatibilidade não se restringe apenas aos
circuitos cerebrais e à programação genética de cada
um: também a própria imagem visível se torna digitalizável.
Inclusive a imagem do próprio rosto, aquele vulto que
os espelhos e os cristais ainda teimam em refletir sobre
suas superfícies brilhosas, aquele que foi incansavelmente
retratado em pinturas e fotografias ao longo dos últimos
séculos da nossa tradição. Pois nesse trânsito do cultuado
corpo humano rumo à digitalização, torna-se um corpo-imagem
que pode (e, cada vez mais, deve) ser redesenhado.
O rosto é mais uma peça nessa metamorfose, porém uma
peça primordial.
Nesse projeto de redesign corporal e facial, quase
tudo parece valer. O corpo e o rosto podem ser esculpidos
com a miríade sempre crescente de produtos e serviços
de reformatação que se oferecem nas prateleiras dos
mercados. Da musculação aos cosméticos; dos alimentos
dietéticos às cirurgias estéticas; do PhotoShop e outras ferramentas de edição de imagens a, quem sabe,
logo mais também os transplantes de traços faciais.
A linguagem, entretanto, é traiçoeira. Com suas conotações
tridimensionais de luta contra a matéria que resiste,
termos como “moldar” e “esculpir” não conseguem dar
conta do fenômeno. É preciso recorrer a outro vocabulário
para expressar suas nuanças, pois o corpo parece estar
perdendo a espessura carnal: ele também atravessa um
processo de bidimensionalização. A própria carne é tratada
como uma imagem que deve ser retocada ou redesenhada.
Ou, melhor ainda: editada, como se ela também
fosse uma criatura de software entregue ao bisturi super-eficaz
dos programas de edição digital de fotografias.
Neste contexto de fortes turbulências e redefinições,
uma das principais funções do corpo (e do rosto) consiste
em servir de cartão-de-visita para expor a própria subjetividade:
o aspecto físico mostra o que se deseja exibir a respeito
de si mesmo. E em uma era na qual as distinções entre
aparências e essências se desvanecem, o caráter não
aflora mais daquelas velhas essências interiorizadas.
Nessa gradativa “exteriorização” da personalidade, as
máscaras nada significam porque nada ocultam de mais
autêntico por trás desse artifício que deixa de ser
falso. Assim, cada um passa a ser aquilo que
mostra de si — seja uma máscara ou não; sua condição
de tal pouco importa, desde que ela seja bonita e bem
desenhada.
Sob as novas regras do jogo, tanto a face desmascarada
como os demais componentes do corpo humano podem se
revelar como um fardo demasiadamente carnal e — na grande
maioria dos casos — incomodamente inadequado, devendo
portanto ser depurados em seu aspecto visual: como belas
imagens para serem expostas diante do espelho dos olhares
alheios. Olhos impiedosos que perscrutam o próprio aspecto
visual, olhos que cintilam no cerne de um rosto alheio
que, no entanto, agora também poderia ser meu.
Para isso, porém, assim como ocorria no filme de Franju,
é preciso que o outro morra.
Um dos grandes obstáculos que ameaçam a popularização
do transplante de rosto é, precisamente, a escassez
de doadores. Embora as duas equipes francesas que já
deram o primeiro passo tenham autorização para fazer
outras cinco operações cada uma ao longo dos próximos
cinco anos, “na China não há suficientes doadores”,
lamenta Shuzhong Guo, um dos responsáveis pela segunda
intervenção em nível mundial. “As pessoas estão acostumadas
a doar seus rins ou o coração, mas o rosto é tão especial”,
procura explicar o especialista: “se o coração é removido,
ninguém percebe, mas quando se trata do rosto...”.
[18]
Além dessas complicações para se conseguir o material
facial a ser transplantado, os médicos detectam receios
porque as pessoas pensam que será possível reconhecer
o semblante do doador no sujeito operado. “Claro que
isso é impossível”, garante Guo, “porque só transplantamos
os tecidos brandos, e ao colocá-los sobre outra estrutura
óssea, o rosto muda”. Já no futuro, efetivamente, o
quadro pode se complicar: “se transplantarmos também
os ossos, o doador poderia ser reconhecível, e isso
será um problema”, conclui o cirurgião chinês. Ocorre
quelhos que perscrutam o prpcrutarerspcrutar nos mostram os espelhos matem clicar
em certas palavras para acessar os sites. Q os
outros, como há muito tempo se sabe, podem ser um verdadeiro
inferno. Esses fantasmas mudam de face mas continuam
vigentes, e podem se tornar ainda mais medonhos quando
as miragens traiçoeiras do paraíso parecem brilhar na
ponta afiada de um bisturi.
Referências
bibliográficas
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[1] LÉVINAS, Emmanuel. Totalité et infini: Essai sur
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MAUER, Manuel. “Tempo, diferença e alteridade: Lévinas,
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BORBA, Siomara; KOHAN, Walter (Orgs). Imagens
da Imanência: Escritos em memória de Henri Bergson.
Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2007; p. 211.
[2] DELEUZE, Gilles. “Ano Zero – Rostidade”. In: Mil platôs:
Capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro:
Ed. 34; p. 35.
[3] QUIÑONERO, J.P. “La cirugía que faltaba: el trasplante de cara”. La Nación, Buenos Aires, 19/02/2004.
[4] “Cientistas querem fazer transplante total de face”.
Jornal da Ciência, Nº 2534, 28/05/2004.
[5] “Médicos fazem primeiro
transplante de rosto do mundo”, BBC Brasil
e FolhaOnline, São Paulo, 30/11/2005.
[6] “Hospital manipulou foto da primeira transplantada de
rosto”. Folha de São Paulo, São Paulo, 13/12/2007.
[7] BAR, Nora. “En el futuro, el trasplante de cara se convertirá en una rutina”.
La Nación, Buenos Aires, 13/11/2007.
[8] JUSTE, Marília. “Transplante
de rosto traz dilema legal e psicológico, diz cirurgiã”.
G1: Portal de Notícias da Globo, Rio
de Janeiro, 25/10/2006.
[9] NALIO, Alessandra; BRISSAC, Chantal. “Estrelas Reformadas”.
Isto é Gente, São Paulo, 13/12/1999.
[10] OCAÑA, Enrique.
“Técnica y metafísica: sobre la esencia del dolor”.
In: Artefacto: Pensamientos de la Técnica,
Buenos Aires, UBA, vol. 2, mar. 1998, p.
49.
[11] O novo aplicativo, que acaba de ser acrescentado a esse
produto destinado a proteger a segurança de prédios
particulares e instituições, pretende ir além: trata-se
de um programa que “reconhece, mede e qualifica os
sorrisos em uma escala de porcentagens”, como uma
tentativa de detectar e analisar tecnicamente as diversas
expressões faciais. Para isso, os engenheiros da empresa
Omron processaram dez mil imagens de rostos humanos,
alguns deles com sorrisos espontâneos, outros com
sorrisos impostados ou com diversas expressões, a
fim de “treinar o software na avaliação de sorrisos”.
Dando as boas-vindas ao novo recurso, um executivo
de outra companhia dedicada a “fornecer tecnologia
de identificação, especialmente para fins de segurança”,
sediada na Califórnia e denominada L-1 Identity Solutions,
afirmou o seguinte: “se você pode ler melhor as pessoas,
então poderá servi-las melhor”. In:
DAVISON, Anna. “Rating Facial
Expressions”. Technology Review, 25/10/2007.
[12] WAXMAN, Sharon. “Cyberface: New Technology That Captures
the Soul”. The New York Times, Nova York, 15/10/2006.
[13] Os pesquisadores responsáveis por este desenvolvimento
trabalham para a empresa Unilever, mas são também
“conhecidos por seu trabalho de decifrar o sorriso
da Mona Lisa”. Neste caso, criaram um sistema “capaz
de converter um vídeo do rosto de um sujeito em
um gráfico tridimensional; depois, através da
análise de suas diversas regiões da face, o sistema
consegue detectar o nível de prazer que o sujeito
está experimentando”. Os primeiros testes foram realizados
com grupos de mulheres européias, que degustavam diversos
alimentos enquanto seus rostos eram digitalizados
e processados pelo programa, a fim de “verificar as
reações que os novos produtos provocam nos consumidores”.
In: “Científicos holandeses crearon un software capaz de determinar el nivel de felicidad de las
personas”. Clarín, Buenos Aires, 19/07/2007.
[14] ONFRAY, Michel. “De l’anatomie à l’oeuvre: Orlan, esthétique
de la chirurgie”. Art Press, 207, nov. 1995;
p. 21-25.
[15] FELDMAN, Ilana. “Reality show:
reprogramação do corpo e produção
de esquecimento”. Revista Trópico, São
Paulo, Nov. 2004.
[16] NALIO, Alessandra; BRISSAC, Chantal. op. cit.
[17] Sobre a desvalorização das máscaras na vigência das
“tiranias da autenticidade”, ver SENNETT, Richard.
O declínio do homem público: Tiranias da Intimidade.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Para aprofundar
nessa passagem do “caráter introdirigido” da
modernidade para as “personalidades alterdirigidas”
da contemporaneidade, ver RIESMAN, David. A multidão
solitária. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995. Ou,
sobre o declínio do “homo psychologicus” em
proveito da configuração de novos modos de subjetivação,
ver BEZERRA Jr., Benilton. “O ocaso da interioridade
e suas repercussões sobre a clínica”. In: PLASTINO, C. A. (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro:
Contracapa, 2002; p. 229-239.
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