in loco - especial É Tudo Verdade
A Dor e a Piedade (Le Chagrin et La Pitié), de
Marcel Ophüls (Suiça, 1970) por Julio Bezerra (colaboração
especial para a Cinética)
História
revisitada
Marcel Ophüls e sua melhor
e mais influente obra, A Dor e a Piedade, são símbolos de uma nova fase
do documentário. Nos anos 70, em um contexto de crescente efervescência cultural
e política, o documentário passa a assumir uma perspectiva histórica, se volta
para os materiais de arquivo, para as entrevistas, para acontecimentos do passado
que nos conduzissem a questões atuais. O cinema de colagens de Ophüls, feito de
imagens de arquivo e de muitas entrevistas, alimenta um compromisso com uma idéia
de justiça e verdade. Em suas mãos, o documentário se tornou um genuíno instrumento
de historiografia, um canal para análises político-sociais.
A
Dor e a Piedade é uma crônica sobre os quatro anos da ocupação alemã da França,
durante a Segunda Guerra Mundial. Ophüls se detém na pequena cidade de Clermont
Ferrand, de 150 mil habitantes, localizada a poucos quilômetros de Vichy, então
o centro da resistência na região da Auvergne. A Dor e a Piedade desafia
alguns mitos franceses pós-Segunda Guerra, em especial aqueles que circundam a
resistência à ocupação nazista e o colaboracionismo do governo de Vichy. Através
de fragmentos de cinejornais franceses, alemães e ingleses, e uma enorme variedade
entrevistas, o cineasta nos mostra as contradições da França ocupada, que ganhou,
talvez indevidamente, nos diz o documentário, o papel histórico de resistente.
O
filme é separado em duas partes. Na primeira, O Colapso, Ophüls
nos relata como a França se mostrou uma fácil conquista para a máquina nazista,
e como o país acabou dividido politicamente. Na segunda parte, A Escolha,
que cobre os dois últimos anos da ocupação, acompanhamos a crescente desconfiança
e enfraquecimento do poder nazista e a intensificação do movimento de resistência.
O cineasta expõe a política de repressão empregada pelo governo de Vichy, a criação
de campos de concentração nos arredores de Paris, o envio de crianças para campos
alemães. Aos poucos, somos apresentados a heróis, vilões, sobreviventes, culpados,
covardes, inocentes. Acreditamos em alguns, duvidamos de outros; sabemos que alguns
estão mentindo, não temos tanta certeza em relação a outros; certas pré-concepções
a respeito dos franceses e dos alemães são confirmadas, outras são desafiadas.
A Dor e a Piedade descreve um período histórico por
meio das lembranças. O filme tenta constituir um novo saber sobre a ocupação,
além de analisar os traços ideológicos que este momento histórico produziu no
presente. A voz de Ophüls emerge como uma perspectiva sobre o tema do filme. O
documentarista serve como um pesquisador ou repórter investigativo, seu envolvimento
na história é crucial para o desenrolar dos acontecimentos. Em A Dor e a Piedade,
temos a sensação de acompanharmos uma forma de diálogo entre cineasta e participantes
que enfatiza o engajamento localizado, a interação e o encontro carregado de emoção.
Aos poucos, o que se desenha é um documentário menos sobre a história e mais sobre
como as pessoas lembram do passado e como elas relacionam estas memórias com o
presente. A
força do filme vem certamente das entrevistas, que cobrem um enorme espectro,
do camponês ao aristocrata, do colaboracionista confesso ao integrante do movimento
de resistência, do ex-soldado alemão ao político inglês. Ophüls é um ótimo ouvinte,
paciente, compreensivo ou provocativo, sempre que pensa necessário. Algumas entrevistas
são realmente magistrais: um aristocrata francês explica como se tornou um nazista
aos 17 anos; um oficial inglês sublinha ter arriscado sua vida diversas vezes
para provar a si mesmo que, apesar de homossexual, era viril e corajoso como qualquer
outro; um camponês, ex-integrante da resistência, afirma não desejar vingança
em relação a um vizinho que o denunciou. São testemunhos – a palavra não é empregada
impunemente – que comovem pela veracidade do relato. Uma
das maiores curiosidades deste filme é exatamente como Ophüls consegue variar
de abordagem em um mesmo encontro. Em A Dor e a Piedade temos depoimento,
entrevista, interrogatório, conversa, e testemunho. O primeiro se refere em geral
às falas de pessoas públicas ou especialistas; a segunda está mais ligada ao jornalismo;
a terceira designa um processo coercitivo; a quarta tem um aspecto mais coloquial
e corriqueiro; a quinta está mais ligada à história oral. Ophüls passeia por todos
estes registros, mas talvez o testemunho seja a modalidade dominante. Em geral,
os participantes produzem falas que não funcionam sob a dicotomia verdade/mentira,
estão mais para revelação/recalque. Tratamos aqui de uma noção de “testemunho”
mais ampla e que não se restringe à sua íntima relação com o ocular. Composto
por pequenas partes de memória que foram oprimidas pelas ocorrências, o testemunho
atua como o elemento principal de mediação dos episódios traumáticos do passado.
O filme se converte em uma fonte de memória popular, dando-nos explicações e a
sensação vívida de quão atribulados e dolorosos foram aqueles anos. A Dor e
a Piedade é um tangível “teatro da memória”. A estratégia
expositiva de Ophüls nos deixa claro que ele está certamente do lado dos resistentes.
A Dor e a Piedade traz essa parcialidade desde o título e começa de cara
com uma seqüência que ecoará por todo o filme: o casamento do filho de um orgulhoso
ex-soldado nazista é justaposto a cenas de uma espécie de mesa redonda em que
um ex-integrante da resistência francesa responde a sua filha que os dois sentimentos
que mais sentiu naquela época eram a dor e a piedade. Essa perspectiva se desenvolve
através da montagem como um programa de colocação sistemática da parte do documentarista.
Ophüls propõe meios e modos de reconstruir o passado dialeticamente. Ao invés
de sucumbir à consciência do personagem testemunha, A Dor e a Piedade conserva
uma consciência independente. O filme nos lembra que a história
não é um monolito. O entrelaçamento entre passado e futuro e a multiplicidade
de pontos de vista formam um corpo complexo que, mais do que apontar quem está
certo ou errado, se preocupa em sublinhar a dificuldade em tomar qualquer que
seja a atitude em uma situação limite como aquela. Este documentário constrói
compreensão histórica bem diante de nossos olhos. No fim das contas, A Dor
e a Piedade faz eco à fala de um de seus entrevistados, o inglês Anthony Eden:
“Não devemos julgar os franceses porque nunca tivemos nosso território ocupado
pelo inimigo. Não temos como saber como reagiríamos”. Ophüls parece perguntar
como nós espectadores reagiríamos. Abril de 2008
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