A
Troca (Changeling), de Clint Eastwood (EUA, 2008) por
Eduardo Valente Do
horror
Quando A Troca começa, com o primeiro
dos logotipos usados pela Universal, o espectador mais imediatista talvez seja
levado a pensar num tipo de relação fetichizante com a história do cinema, algo
que temos visto com freqüência recentemente, indo desde um O Homem que Não
Estava Lá, dos irmãos Coen; ao último Indiana Jones, de Steven Spielberg (em
registros e resultados bem distintos). No entanto, o jogo de Clint Eastwood neste
seu novo filme (mas já não o mais recente, uma vez que o ritmo do cineasta parece
cada vez assombrosamente mais rápido, como se ele disputasse junto com Manoel
de Oliveira uma surreal corrida contra o tempo) é de natureza bem diferente: ao
usar esta logomarca que remete ao começo dos anos 30, ele não indica nenhum desejo
de emular um cinema anterior (como tantos citaram), mas simplesmente colocar o
espectador no espírito de uma época, já que a história se passa naqueles mesmos
anos, cuja exatidão de reconstrução resulta tão crucial para a narrativa. A
armadilha deste primeiro olhar é tão grande quanto a de dizer que o filme é “filmado
à moda antiga” (seja lá o que isso signifique), ou voltar ao batido tema de Eastwood
como “o último dos cineastas clássicos”. Fazer isso tudo é receber A Troca
pelo que ele tem de mais epitelial, ignorando o que o filme deixa mais que claro:
que o cinema de Eastwood se consolida cada vez mais como uma arte que, (re)conhecendo
plenamente uma história do cinema (americano, principalmente), se coloca de maneira
definitiva para além de denominações como clássico ou moderno. Por isso mesmo,
se de fato impressiona no começo do filme uma característica cara ao melhor do
cinema americano do período considerado “clássico” (a limpidez extrema de narrativa
e linguagem, numa forma de ir direto aos fatos que interessam com um domínio quase
absoluto das ferramentas do tal storytelling cinematográfico), mais para
a frente, na medida em que o filme avança e a trama quase kafkiana (tão
mais impressionante porque verdadeira) vai se desdobrando, o cinema de Eastwood
começa a fazer uso de uma série de elementos absolutamente contemporâneos,
desde sua divisão em narrativas paralelas com entrecruzamentos distintos
até o uso de uma câmera ágil (que desmonta totalmente qualquer argumento sério
de uma filmagem “clássica”), passando por uma ida ao primeiro plano de uma série
de elementos da linguagem (como a edição de som nas sequências no hospício) que
se aventuram para além de qualquer noção de “transparência” na forma de narrar
uma ficção no cinema, como se fazia "antigamente". A
introdução dos personagens e da situação primordial do filme é realizada com uma
exatidão de elementos assustadora, que combina trabalho de atores, escritura de
diálogos e situações e colocação da câmera frente ao mundo que se vai habitar
com o filme – e sua posterior montagem. Só que aquilo que a princípio (e, de novo,
numa superfície muito rasa) se prestaria a narrar uma história de obstinação de
uma heroína pura frente a um mundo duro e insensível (principalmente na esfera
das instituições, encarnadas na polícia de Los Angeles e especificamente no delegado
Jones), logo começará a dar passos muito mais perturbadores e difíceis de enquadrar.
De fato, antes do tão citado melodrama, se há um gênero que parece mais adequado
ao filme depois de um certo momento é mesmo o filme de horror –não o horror entendido
como o gênero onde o sobrenatural é encarnado para causar sustos no espectador,
e sim o horror primordial do homem frente ao que ele não consegue compreender
ou lidar com (em última instância, a morte – tema eastwoodiano por excelência).
Pois é este o mergulho doentio que a narrativa toma a partir da internação da
personagem de Angelina Jolie no hospício. A partir dali, o horror é de fato o
registro do filme (algo, aliás, antecipado pela presença do falso Walter no começo
do filme, sempre filmado como algo próximo a uma assombração ou um monstro – sendo
que ele de fato representa as duas coisas ao mesmo tempo), e inclusive algumas
das ferramentas mais óbvias do cinema do gênero vêm de fato à tona, como a já
citada edição de som criando uma atmosfera de tortura quase surreal, mas também
o uso dos enquadramentos e das interpretações (e nisso as cenas de eletrochoque
são exemplares). Não por acaso é justamente neste momento em que surge uma cisão
narrativa e o filme começa a acompanhar duas histórias, num movimento que alguns
têm caracterizado como irregular ou derivativo, mas que de fato é central ao que
Eastwood deseja com o filme: fica claro então que ele não está falando aqui da
luta do indivíduo contra a instituição/o sistema, mas sim do Homem (encarnado
aqui numa mulher, mas não só ela) frente ao inexplicável – seja ele a crueldade
institucionalizada (ecos claros de Hannah Arendt no delegado Jones e no diretor
do hospício), seja a insanidade individual dos atos de Gordon Northcott (e aí
é particularmente interessante descobrirmos que a história de vida do verdadeiro
Northcott tem lances muito semelhantes ao perfil que se desenvolveu justamente
no cinema sobre os serial killers – abuso sexual, incesto, infância perturbada
– mas que Eastwood prefira ignorar isso ou qualquer tentativa de “explicar” Northcott).
Tal é a profundidade deste mergulho nos horrores do mundo, que ninguém sai limpo,
e parece particularmente importante tratar da alongada conclusão do filme para
entender que a Eastwood não interessa nem um pouco uma narrativa direta e precisa
(clássica), a qual se assim desejada (“people Love happy endings”, diz o capitão
Jones), poderia dar-se por encerrada tranquilamente na saída triunfal de Christine
Collins do hospício. Ao fazer deste o primeiro de vários possíveis “finais” do
filme, Eastwood deixa claro o tamanho do buraco onde sua narrativa nos mete, se
tornando tão mais incômodo e preciso quanto mais ele protela o final (e aqui um
parêntese anedótico: lá pela terceira destas protelações radicais, na sessão onde
revi o filme uma espectadora externou sua angústia em voz alta com um “eu não
agüento mais!” – exatamente o ponto).
Nessa
parte do filme é especialmente impressionante o movimento que o filme faz em tornar
auto-cambiáveis os “dois lados” da moeda (algo deixado absolutamente claro – à
la Eastwood também – na excepcional cena em que Collins e Northcott se confrontam
na cadeia, com ela terminando atrás das grades enquanto ele sai de cena). Por
um lado, os discursos do advogado e do pastor (interpretado por um John Malkovich
cheio de uma sutil dualidade pouco elogiada/percebida) que, para “fazer justiça”,
usam dos meios mais discutíveis (demagogia, a manipulação da mídia, retórica absurda);
por outro, tanto Jones quanto Northcott, de perto, soam absurdamente humanos,
entre a covardia e a real crença no próprio discurso do primeiro (onde as grotescas
risadas da platéia do julgamento deixam claro sua dimensão patética) e o desespero
demente do outro (e a cena da execução é exemplar não só da banalidade do mal
que ele representa – Arendt, de novo? – mas também da dimensão igualmente patética
da noção de “punição” possível).
No entanto, é mesmo a personagem de Christine
Collins que mais encarna neste final a disposição de Eastwood de ir até o fim.
Pois, ao passar por todos os estágios posteriores de provação que lhe são impostas
após a saída do hospício, podemos ver que aquilo que no começo seria determinação,
logo dá a ela uma característica latente de insanidade e de obsessão. Para todos
os efeitos da experiência racional do mundo, Christine Collins ultrapassa qualquer
barreira de normalidade, e sua busca eterna pela inocência perdida (aquela tão
bem filmada nos curtíssimos cinco ou dez minutos iniciais do filme) se expande
para além do filme, através da imagem do alto onde ela se perde na multidão da
cidade, com o crédito final revelando sua pena perpétua (“ela procurou pelo seu
filho até o fim da vida”). Irmanar-se com ela, portanto, como o filme nos faz
cumprir, passa a ser mergulhar na loucura e admitir, ao fim e ao cabo que, frente
ao insondável e uma vez tocados pela tragédia e pela violência do mundo, não é
possível voltar atrás, prosseguir da mesma forma, nem achar qualquer tipo de redenção. Janeiro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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