in loco - o cinema de chantal akerman

: do lugar que não existe à entrevista que deixou de existir
por Ilana Feldman

Diz-se que Chantal Akerman é uma prisioneira. Criou um ordenamento disciplinar para seus filmes, seus personagens e seu próprio corpo, uma “estética do confinamento”, como nos diz Roberta Veiga, e nele se instalou. Em Israel, quando lá esteve para fazer um filme, alugou um apartamento em Tel-Aviv, no qual permanecera durante uma temporada. Akerman não saiu do apartamento: espaço doméstico, porém não familiar. Próximo e estranho. Estranhamente próximo, como não haveria de deixar de ser: como judia, Israel é o refúgio para o qual Akerman sempre pode ir e o lugar que seus pais desistiram um dia de habitar. Na época, como ela mesma narra, terra árida, cheia de mosquitos, malária, vento e areia por toda parte. Hoje, um lugar em que, mesmo sem a areia nos olhos de outrora, nada, segundo seu filme, haveria para ver.

Para Akerman, esse lugar que não existe é para onde aponta a câmera de seu filme (“Là-bas”, 2006), composto basicamente por uma seqüência de longos e imóveis enquadramentos de janelas, cobertas integral ou parcialmente por persianas estriadas, semi-cerradas. nos revela que, tanto no filme quanto na vida, não se trata de existir, mas de persistir. Em Lá, Israel não existe, persiste como um enquadramento que dura. E Akerman não vive, sobrevive. Como prisioneira, come as provisões da proprietária e alimenta-se de arroz com cenouras. Akerman parece querer curar-se de si mesma, enquanto convalesce de um mal estar orgânico e existencial. Em suas pontuais narrações em voz off, tudo parece indicar o peso perene de ter sobrevivo: sua família atravessou a II Guerra com vida, mas uma tia muito próxima se suicidou em uma tarde de sol ralo na Bélgica. Não distante no tempo dali, fora a mãe do escritor Amós Oz quem pôs fim à vida em uma tarde de chuva. “Suicida-se por todo lugar”.

Logo mais, ainda que evite a política, sabemos de um atentado terrorista por meio de uma ligação telefônica. Mas Akerman parece não se afetar. Seu movimento de enclausuramento a partir da observação da superfície se revela contrário ao gesto de abertura para o mundo de David Perlov, que, no primeiro capítulo de seus Diários (1973-1983), filmava pela janela do apartamento de sua família em Tel-Aviv manifestações contra a Guerra de Yom Kippur. Para Perlov, o privado abria-se ao público e ao político por meio de um cinema de anotações, como um caderno de anotas audiovisual. Já Akerman, como nos informa algumas vezes sua narração, perde suas notas, junto, aliás, com os óculos e as chaves da casa. Como assim está evidente, ela não pode ver nem sair.

Auto-centramento da política israelense? Isolamento político de Akerman? Akerman evita dar nomes às coisas (mas não seria essa a função da linguagem?), evita, fora do filme, enunciar qualquer tipo de metáfora – embora, para quem quiser vê-las, elas possam lá estar. Como escreveu Cezar Migliorin, em , Akerman não permite “ter a escritura fílmica tocada pelo que filma”. Alternando entre o nada de vontade (seu olhar constringido e seu corpo, que não vemos, a não ser por um reflexo enquanto escova os dentes) e a vontade de nada (as imagens que produz), Akerman então tece considerações fragmentárias sobre seu desengajamento da vida cotidiana. “Como se constrói uma vida não rarefeita?”, ela se pergunta. Ao que responde: “Começar pelo pão na casa e por um mínimo de ordem”.

Pão e ordem. A sobrevida e a discreta emoção que podemos sorver de Akerman instala-se nessa ambigüidade fronteiriça entre a impotência e a potência de uma vida que, ao mesmo tempo em que resta, também resiste. Em ambos os casos, vemos o “res” (ainda que forçosamente) ou a “coisa”. Mas o que é esta coisa? Por um lado, é o que há de residual e irredutível em toda e qualquer vida, nossa opacidade radical, que se é “profunda” é também pura superfície: vida biológica, aquilo que em nós vive para comer, dormir e se levantar todos os dias. Aquilo que em nós vive para desejar todas essas, e outras, coisas. Em Carta de uma cineasta (1984), a própria Akerman já se perguntava entre a zombaria e a melancolia: “O que é preciso para fazer um filme?”. Em sua resposta, nenhuma atribuição ao olhar. Apenas, “Se levantar, tirar o pijama”. Em , o pão e a ordem, quer dizer, o arroz com cenouras e o ordenamento dos rígidos enquadramentos, são a possibilidade da crônica impossibilidade do ver e do estabelecer relações com qualquer tipo de fora.

Nessa construção quase asfixiante, a ordem dos planos é atravessada pela inevitável desordem da vida, que desde o primeiro plano penetra, por meio do som, as janelas do apartamento em que Akerman está: ruídos de trânsito, uma freada de ônibus, crianças brincando, uma música oriental em um rádio distante. Em parte, Akerman não compreende que lutar contra a desordem é ir contra a própria vida. Em parte porque, em dado momento, o filme é atravessado pelo caos: os planos dos prédios vizinhos, outrora sempre rígidos, entram em curto. A câmera sai do tripé, o sky line é revirado, um avião no céu treme, e o filme, do confinamento, não mais se contém. Mas, a quem pertence a desordem? A Akerman personagem-narradora ou à instância narrativa do filme da Akerman-diretora? Do mesmo modo: quem narra as imagens da praia e do mar de Tel-Aviv? É o filme que não suporta mais tamanha asfixia?

Como a vida de Akerman, entre o resistir e o restar, também se instala na ambigüidade fronteiriça entre o ponto de vista subjetivo da narradora-personagem e o ponto de vista objetivo da câmera, ambigüidade que impediria qualquer associação entre seu olhar e uma câmera de vigilância, como acredita Cezar Migliorin, embora realmente torne indiscernível a relação entre ver e espiar, entre falar e calar, entre recusar e consentir. Em , antes e depois da desordem, tudo o que possuímos é o abismo, a recusa e a opacidade das janelas que nada revelam, ou revelam vizinhos distantes, em gestos perdidos: um homem fuma, um casal toma Nescafé, uma mulher olha para as plantas, como quem as espera crescer.

Nessas diversas mediações entre Akerman e o fora, por meio das janelas, das janelas dentro de janelas, dos reflexos e das persianas, parcial ou integralmente fechadas, há ainda uma outra mediação: todo o contato entre Akerman e alguns poucos amigos e familiares se dá por meio de ligações telefônicas, das quais algumas, por sua vez, são em hebraico, língua a um só tempo estrangeira e familiar que Akerman diz não dominar. “Ani ló medaberet hivrit”, ou “Eu não falo hebraico”, diz ela, sustentando a ordem primeira, possivelmente a mais rígida de todas, da qual não se desfaz jamais: sua ordem identitária. Esta, se a salva como vínculo último e primeiro, também parece condená-la à dor de não enxergar nada para além de si mesma. Entre o aprisionamento e a liberdade, lá está todo o problema político da identidade. 

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- Você é judia?
- Você fala hebraico?

Essas foram as primeiras palavras preferidas por Akerman a mim, ao me ser apresentada por Carla Maia, pesquisadora de sua obra e curadora da retrospectiva que teve lugar no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo e do Rio, em março deste ano. Na ocasião, Lila Foster iria fazer uma entrevista para a Cinética com Akerman, mas eu, por mero acaso (na verdade para evitar o rush do metrô), resolvi chegar ao CCBB com bastante antecedência em relação ao horário do debate que lá haveria. Ao me encontrar, Lila generosamente convidou-me para participar da entrevista, e eu, embora tenha de início recusado, resolvi aceitar pela oportunidade de poder conversar com Akerman a respeito de um filme que tinha me mobilizado tanto e tão paradoxalmente, por tudo o que nele havia de diminuto, trivial, repetido e, ao mesmo tempo, vital: Lá.

Imediatamente antes da entrevista, por meio dessas duas questões, feitas imperativamente e em cortes secos, Akerman me reivindicou uma identidade e uma língua que eu deveria ostentar. À primeira pergunta, me esquivei de uma tomada de posição monolítica, ainda que tenha dito “sim”, como quem diz “também”. Á segunda pergunta, recusei o saber integral de uma língua que ela me impunha. “Ani ló medaberet hivrit”, eu lhe disse em hebraico sorrindo, assim como ela mesma havia dito em Lá.  Sua reação não foi das melhores.

Nesse mesmo momento, antes de pegarmos o elevador para a sala em que deveríamos ir, senti que algo de muito tênue havia se rompido. No confinamento do elevador, nós três, Lila, Carla e eu, nos olhávamos levemente inseguras. Chantal Akerman sempre teve fama de ser uma figura difícil, arisca, avessa a teorizações, mas até aquele momento eu ignorava. De qualquer modo, relevei minhas primeiras sensações não muito positivas, atribuindo a um possível “complexo de perseguição”, bem judaico, de minha parte. Antes tivesse posto a funcionar o tal complexo. Após as primeiras perguntas de Lila, cujas reações de Akerman também não foram muito receptivas, lá fui eu perguntar sobre a patente impossibilidade de diálogo que atravessa o filme Lá. Mas não conseguia me expressar: misturava as línguas, hesitava e, a cada reação negativa de Akerman, a cada recusa e a cada mal entendido, em vez de eu parar, queria corrigir, me explicar.

E Akerman recuava: recusava toda e qualquer “interpretação” a respeito de seus filmes, toda produção de sentido que se poderia fazer a partir de suas imagens. “Você é muito simbólica”, ela me disse com alguma rispidez. E a entrevista, que mal chegou a acontecer, se encerrou, fracassou. Nada poderia ser mais coerente com as impossibilidades que atravessam sua obra. Nesse desencontro de linguagens, a palavra não operou o milagre do contato. E munidas de palavras fracassadas fomos embora, com os indizíveis atravessados no gargalo: o muito e o nada que se obtém do esforço reiterado para dizer. Como queria G.H, personagem de Clarice, nós temos à medida que designamos – e este é o esplendor de se ter uma linguagem -, mas temos muito mais à medida que não conseguimos designar.

Maio de 2009


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