in loco - o cinema de chantal akerman

Chantal Akerman e a coreografia do cotidiano feminino
por Julio Bezerra

Jeanne Dielman (Delphine Seyrig) é uma disciplinada viúva pequeno-burguesa. Mãe de um adolescente, ela complementa o orçamento do mês prostituindo-se em seu domicílio. Os encontros sexuais fazem parte das tarefas domésticas, distribuídas segundo uma imutável e eficiente organização do tempo, dia após dia. Dito assim, Jeanne Dielman, 23, Quai de Commerce, 1080, Bruxelles (1975) mais parece um melodrama. Chantal Akerman, no entanto, registra três dias da vida de sua protagonista e não fala em sacrifícios ou segredos inconfessáveis. Tampouco lida com personagens melancólicos ou nostálgicos. Nenhuma convenção social é aparentemente questionada ou subvertida. Ninguém parece em busca do que quer que seja. Jeanne nunca está alegre ou triste, calma ou nervosa. O grau de emoção aqui é zero.

Jeanne Dielman é o encontro entre uma forma e um tema. Logo de cara, salta aos olhos o rigor formal da cineasta. Akerman e a fotógrafa Babette Mangolte colocam a câmera em um ângulo específico e imutável em cada ambiente. A cineasta estabelece para si uma direção rígida e de mínimas variações, com um caráter monástico e obsessivamente depurado de “encenação”. Ela compõe a relação câmera/corpo/espaço como uma esteta, mantendo um mesmo padrão de enquadramento e de disposição dos atores, como se a imagem fosse estabelecida com régua e compasso. A partir daí, entretanto, a moldura é jogada à sua própria sorte. A realizadora demonstra respeito pela realidade espacial. Este espaço tem uma dupla função: plástica e dramática, uma vez que a sua existência provoca necessariamente a ação. Isto porque as linhas simétricas da sala, o formato da mesa de jantar, e as disposições milimétricas da cozinha são extremamente importantes para Akerman. São condutores de emoções delicadas. É uma maneira de abordar o personagem em termos espaciais e não por meio da dramatização de sua vida. Aos poucos, Akerman nos mostra que é no próprio seio do espaço filmado que se deve procurar, extrair e revelar as linhas de força que conduzem a narrativa.

Lembro de Eric Rohmer. Quando falou sobre “aquilo que restará do cinema”, Rohmer lançou a seguinte hipótese: “a própria matéria do filme é o registro de uma construção espacial e de expressões corporais” (Cahiers Du Cinema, 86, agosto de 1958). Eis o cinema de Akerman. Pois ela adota o plano fixo que, na unidade do seu enquadramento, respeita na íntegra um espaço filmado entregue ao presente dos acontecimentos registrados. E essa simples presença de um espaço onde age um corpo é o objeto mesmo da dramaturgia da cineasta. A atenção dada ao físico é emblemática do tom e do teor do universo cinematográfico de Akerman: o mundano e o dramático, sem hierarquias narrativas. É o que Ivone Marguilies chamou de “cotidiano hiper-realista”.

Akerman abandona Jeanne na coreografia de seu cotidiano. A personagem realiza todas as suas tarefas eficientemente, com uma naturalidade automatizada. E Akerman nos descreve de maneira literal cada um dos afazeres de sua protagonista: ela arruma a casa, descasca as batatas, lava os pratos, faz café, tem relações sexuais, etc. Sendo que a duração própria de cada uma dessas atividades coincide exatamente com a do filme. A cineasta realça os passos realizados e sublinha o tempo que demora a percorrê-los, um por um. Os segundos reforçam os segundos seguintes, como uma hemorragia interna do plano. A duração do plano, no entanto, não aponta para lugar nenhum. As situações não evoluem, mas ganham relevo. Em Jeanne tudo é ordinário e repetitivo, mesmo o sexo. O interesse aqui é pela banalidade do cotidiano, independentemente de qualquer referência a uma intriga. Nada emerge como tempo forte ou como acontecimento extraordinário. Akerman quer dar às pessoas um sentimento de vida sem retratar os autos e os baixos dramáticos.

A própria atriz não representa muita coisa. Ela se constitui gesto por gesto e palavra por palavra à medida que o filme avança. O que importa é a sua presença, suas expressões físicas e morais. Jeanne se debruça sobre o concreto dos fatos, sobre a materialidade das coisas, sobre a verdade dos corpos. O corpo é o “ancoradouro do ser”, para usar a expressão de Merleau-Ponty. Akerman se debruça sobre um corpo cotidiano. E essas atitudes cotidianas são o que põe o antes e o depois no corpo, o corpo como revelador do tempo. O filme não depende de uma história prévia ou de uma trama preexistente, mas se desenvolve a partir das atitudes deste corpo. O cinema de Akerman põe o tempo no corpo. O corpo de Jeanne é afetado pelo tempo (presente vivo) de tal maneira que exprime uma pluralidade das maneiras de ser no presente. E o corpo não é mais um obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deveríamos superar para poder pensar. Muito pelo contrário. O corpo de Jeanne a força a pensar, e força a pensar no que escapa ao pensamento: a vida.

Akerman forja assim um estilo diferente para examinar uma vida em suas margens. Veremos que a cineasta está interessada em grandes questões: o racismo, a imigração, a sobrevivência dos judeus. Mas ela explora estes temas específicos por meio de pequenas observações. É a história, não mais com H maiúsculo, que lhe preocupa. É, digamos, um “cinema menor”, em que uma possível subversão vem através de um enfoque em minúcias, sobre as condições aparentemente mundanas da vida diária, visto através de um prisma que é ao mesmo tempo poético e político. A realizadora nos dá a ver e ouvir o mundo de maneira mais acentuada. Aos poucos, o filme desfamiliariza o cotidiano, tornando-o ainda mais singular e concreto. E a naturalidade do relato parece proporcional à distância que se pode sentir entre a estranheza da vida da personagem e a eficiência automatizada com que ela a aceita.

Essa estranheza conduz o espectador. O segundo dia de Jeanne é igual ao primeiro, com apenas uma exceção: uma mecha de cabelo desorganizando seu penteado.  É o suficiente. Apesar de pequena, essa mecha é de uma visibilidade absurda, quase intolerável. A tensão contida que o filme mantinha até ali se converte em catástrofe. Ao contrário do que costumava fazer, Jeanne engraxa e escova os sapatos um por um. Ela entra no quarto e não acende a luz. Na cozinha, esquece de lavar um dos pratos. O café demora. O gosto não é o mesmo. Ela joga fora. Serve-se novamente, com açúcar. Não funciona.  Jeanne resolve fazer café novamente. Até então, em todos os dias de uma vida sem brilho, o tempo a levava. Agora, é ela que tem de levá-lo. Jeanne pertence ao tempo e reconhece seu pior inimigo nesse horror que a invade. É uma revolta da carne. E nada falta: nem a revolta não formulada, nem o desespero lúcido e mudo, e nem a assombrosa liberdade de conduta que a personagem experimenta no fim. Akerman consegue projetar no concreto a tragédia espiritual de sua personagem. E só pôde fazê-lo por meio de um paradoxo perpétuo que traduz um vazio através dos gestos cotidianos.

O que impressiona é o fato de Akerman inscrever seu cinema no domínio do pessoal e do político sem jamais forçar uma agenda. A grande sacada é mostrar as atitudes corporais de sua protagonista como signos de estados de corpos distintivos da personagem feminina – enquanto o homem é o poder instaurado, mas completamente desestruturado. As atitudes corporais e as temporalidades de Jeanne dizem respeito a todo um contexto, a toda uma organização de poder. Mas esta história será mais bem revelada quanto menos se mostra, mostrando-se apenas a maneira pela qual as atitudes do corpo se coordenam. É um cinema que não concilia a realidade que retrata com as facilidades da linguagem do cinema clássico. Não poderia fazê-lo com um mínimo de honestidade. As palavras de Akerman são contundentes – neste sentido, ela se aproxima de Bresson. Ambos têm uma concepção singular da invenção, que se apóia no imprevisto, na descoberta, no encontro. O cineasta deve reinventar o que imaginou. Ele não deixa absolutamente de ter uma intenção inicial, mas ela não deve, sobretudo, acarretar intenções demasiado particulares.

Maio de 2009


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