in loco - o cinema de chantal akerman

O autômato e o bailarino
por Luiz Soares Júnior

1. Terror mecânico

Há uma aspiração à síncope em Jeanne Dielman que tira do filme qualquer veleidade demonstrativa: um vitrificado manancial de rituais dispostos em séries cadenciadas, que a qualquer momento ameaça cruzar os limites dos compartimentos de seus expedientes intransitivos e deixar aflorar, no curto-circuito casual e oblíquo de um ato falho ou de um evento inesperado, a oferta de graça – ou de horror – que é a utopia redentora do esquálido maneirismo do filme. As construções dos filmes mais minimalistas de Akerman deixam entrever uma estesia coreográfica, recalcada sob a limpidez macilenta do traço. A arquitetura vampiriza a dança, sepulta sob o mármore do automatismo. Uma fascinação anti-mourletiana (anti-erótica e fetichista) se esboça aí: ao invés de petardos de presença, dinamismo e sensualidade, objetos esvaziados de aura, exata e matematicamente despojados de erotismo.

Nada é tão simples como parece, porém. Há um ponto em comum entre Jeanne Dielman e os filmes de suspense, por exemplo, filmes que mantém o espectador numa dependência erótica infinitamente postergada, recuada e aproximada: ambos se empenham em desvelar as camadas de tempo contidas numa cena, até o esgotamento da duração: a descoberta do assassino no suspense; a descoberta do mundo, em sua brutal opacidade, em Jeanne Dielman. Em todo caso, desvelamento; no caso do suspense, uma cena contém antecipações e atualiza detalhes que permitem ao espectador se situar em relação ao verdadeiro objeto do filme, que é o mistério a ser revelado/intriga a ser desenvolvida. A progressão narrativa – tempo linear e cumulativo – é revertida em prol de uma temporalidade estratificada, que contém, em um único presente, o passado (o início do filme, às vezes em flashbacks) e indícios do futuro, o telos da obra (intriga decifrada). Assim, em Hitchcock, por exemplo na segunda versão do Homem que Sabia Demais, encontramos cenas nas quais, através do uso do plano-detalhe, coletamos/rememoramos as pistas coletadas até aqui e nos situamos em relação à trajetória da investigação “daqui por diante”.

Em Jeanne Dielman, esta superposição em camadas do tempo dá uma espessura fantasmagórica ao presente. O tempo não corre em direção a um telos, nem atualiza tensões que confiram dramaticidade à marcha inexorável da narrativa. Ele se congela e se volta para si, em espiral. Akerman é uma vampira do plano, suga-lhe todo sangue, todo élan vital e dramático, à espreita de que a última camada do tempo enfim se revele, sua quintessência: o horror vacui que suporta o automatismo de Dielman, o olho de um abismo cuja potência de dissociação e desintegração do real o tempo se incumbiu de deflagrar. Jeanne Dielman é um épico da extenuação e da entropia, de forças que não investem presenças e permanecem, sonambúlicas e flutuantes, impregnando a duração de morte.

Como toda obra que trate de alienação e recalque, Jeanne Dielman me faz pensar em um filme de terror. Assim como em Halloween e O Príncipe das Trevas, de John Carpenter, o Mal é identificado com o Nada, o tempo sem objeto, entregue a suas engrenagens demolidoras. No buraco negro aberto pela ausência normativa de Outro, desencadeiam-se as forças nefastas do tempo, que aqui possui por único objeto seu próprio mecanismo de rotação; o Outro, expulso para fora do campo, é esta ferida interdita, esta imagem recalcada de mim mesmo, “posta para debaixo do plano e  para fora do tempo” – a assassina na qual Dielman se converte ao final, ou o mascarado de Halloween, que pode ser moldado/encarnado por cada um de nós, já que a máscara representa a instância do Nada que tomou uma forma, investiu uma presença alegórica; ou o vaso demoníaco de O Príncipe das Trevas, imagem de um continente que abriga a virtualidade do próprio Mal.

Esta interdição do interlocutor, esta fulminação do Outro como fonte de terror sagrado, de tabu – as esparsas conversas que a personagem mantém são com uma vizinha cuja voz ouvimos em off, vivida pela própria Akerman, e com um filho abúlico – designa uma cumplicidade masoquista com a dimensão do tempo fantasmagórico, do tempo “sem objeto”, e portanto sem uma história para contar e uma experiência para descrever, sem um vínculo romanesco que torne visíveis as erosões/transformações que o tempo se encarrega de imprimir nas figuras. Entregue ao seu mecanismo originário de caduquice e decadência, o tempo transforma o corpo em um prontuário maniacamente mortífero, em fonte de atos que não refletem o corpo, pois não se projetam em direção ao mundo e ao outro, mas se enferrujam nas engrenagens do próprio circuito, moto perpétuo da anomia. Este tempo alienado gera um corpo alienígena, que só me pertence na medida em que me decompõe (e a sequência taquigráfica das ações do filme lembra-nos o princípio da cadeia de produção capitalista de uma forma cristalina: para melhor produzir, é necessário decompor, especializar o sujeito, pois a totalidade deve se refletir no produto acabado, não no sujeito do trabalho, reciclável e permutável meio para fins que o ultrapassam).

Duas características do filme enfatizam esta desconexão, totalidade do processo produtivo e decomposição do sujeito “produtor” (produtor de afetos e fantasmas também): respectivamente, a filmagem em rigorosos planos-sequência das ações e o fato de que o desenlace trágico é suscitado por microscópicas modificações inseridas no sistema total. A micro economia da efeméride desvenda a macro economia libidinal: estas em aparência insignificantes intervenções e deslocamentos no demoníaco arcabouço de Jeanne Dielman – seu lugar ocupado no café por outra pessoa, um objeto que cai acidentalmente na cozinha – são as figuras do Acaso e da Mortalidade, a prova de que, embora demonstre-se o contrário, assistimos à trajetória de uma consciência, e não de um mecanismo auto-regulado. Em algum momento, a bomba deve explodir, e o autômato implodir (Seyrig, extraordinária, catando os estilhaços do corpo-cápsula, atomizado e OVNI, no lusco-fusco da última cena). De alguma forma, há resquícios de romanesco dispersos por esta usina de produção estruturalista que só podem vir à tona quando o filme termina. E a personagem, enfim, começa a existir.

2. Ballet noturno

A casa é a concha do recalque em Dielman. Repetição, concentracionismo entrópico, afasia. Quando o pathos assoma no horizonte, é na figura negativa do crime. Em Toda uma Noite, o reverso: os personagens estão constantemente abandonando a casa, perdendo-se e encontrando-se em direção à noite, velha apóstrofe romântica. Se eu gostasse de sumários demagógicos, eu diria que Toda uma Noite é um filme que descreve um movimento em direção à noite e ao “fora” (para frente e para fora), um motor anabólico, enquanto Jeanne Dielman se volta para dentro e para trás, como um dínamo emperrado. Toda uma Noite conduz ao clímax a tendência do seu cinema ao ‘exílio de si”, da saída de casa iniciada em News from Home, onde uma Nova York esquiva e tétrica como um quintal belga é progressivamente infiltrada pelos ecos do romance sala e cozinha familiar, nas cartas da mãe.

Até News from Home e Os Encontros de Anna, a obra de Akerman se engasta na casa – ou mais exatamente num quarto, ou num hotel – e descreve o ritual de um corpo que toma como objeto de performance os fantasmas de sua impotência/afasia. Vejamos Je, tu, il, Elle: o filme consiste numa catalogação precisa de ações que não levam a lugar nenhum, que, ao contrário do que se espera de uma ação – uma intromissão ativa na ordem do mundo, um “sair de si em direção ao mundo e  no mundo” -, se empenham em fixar definitivamente a protagonista no mesmo tempo e  no mesmo espaço, em não deixá-la sair do lugar; no caso, as horas que antecedem o encontro com uma namorada, trancada num “pedaço” do quarto, em estado de sítio existencial. Um ideal autista e concentracionista se ilustra aqui: no pasarán. Em sua cripta narcisista e nosferática, o corpo traduz-distorce-mistifica o Outro como aquele que nos volta a face, aquele que não se dá a ver: objeto de punheta ou escritura, jamais de ativa presença. O Outro não me “encara”; ele me julga ou nega, mas tomando-me como objeto, não sujeito; jamais frontalmente, na figura do diálogo. Aliás, Je,Tu, Il, Elle é um filme que tem com a  presença frontal e plena uma relação bem controvertida, digamos. São inúmeros os planos em que a personagem se deixa engolfar pelas sombras e se mostra misturada, mimetizada ao ambiente, “como uma coisa entre outras”, ou então é filmada de costas: contracampo do mundo.

Corpo como fortaleza da consciência, baluarte que a impede de pôr-se à prova, à mostra, no comércio mundano dos corpos que se digladiam e dos discursos que se refutam. Mas sob a forma de diário íntimo, de romanceiro confessional. Isto até Jeanne Dielman. Neste filme, os demônios de Akerman se objetificam. Ou antes: o risco de objetificação que toda consciência que se nega/resguarda do mundo sofre (Je, Tu, Il, Elle é o filme arquetípico nesse sentido) aparece como o próprio filme, e não como matéria casual, contida neste. Todo artista tem direito a erigir um monumento-tumba funerária – a seus fantasmas, espécie de Summa Teológica de suas obsessões e formas: Glauber com Idade da Terra, Ford com Lincoln, Syberberg com Hitler, um filme da Alemanha, Pasolini com Saló, Godard com Passion. O monumento de Akerman é Jeanne Dielman.

Sai de cena o passo marcial e zumbi de Jeanne Dielman, entra o passo de dança, em Toda uma Noite (foto). A fascinação pelo monumental e pelo inorgânico da estrutura no filme de 1975 encontra aqui um objeto, um finito e frágil objeto: desencontros amorosos. Filme noturno, com uso fantasioso das elipses, intermezzos sentimentais saídos de uma aquarela de Rouault (aliás, o Hopper dos primeiros filmes é substituído pelo esfumado e fusões cromáticas da atmosfera pós-impressionista, que sugerem uma dilatação e uma rarefação hedonísticas da duração), decupagem serena e apaziguada. A princípio, pode parecer que a matéria de Toda uma Noite são os deslizes e declives dos corpos amorosos em recíproca busca e exaltação, e que finalmente a masturbação de Akerman encontrou uma zona erógena fora de si. Mas o filme encena coreografias mais rocambolescas: trata de reencontros, ou de ocasos de relacionamentos convertidos em êxtases de reencontros. O autômato dos filmes minimalistas enfim se permite dançar, e a descoberta desta graça bailarina é concomitante, no cinema de Akerman, à cauterização de um corpo habitado pela Alteridade, de um corpo não mais retraído na bolha espectral do Si Mesmo, colcha de retalhos de objetos parciais e narcisismo narcótico, mas “livre e solto” no mundo.

Se o corpo fechado sobre si dos filmes anteriores não se mostrava própria e absolutamente, pois era filmado sempre em posição estatuária (icônica, infensa ao fluxo vital do tempo) ou se negava à frontalidade, neste filme o corpo se mostra frontal e diligentemente, não mais executando atitudes destituídas de “fins”, de telos, de implicações no mundo, mas brincando: dançando, ou escutando o mundo bater à porta, ou esperando, transfigurado enfim pela ascese do encontro. Educação sentimental: o corpo aprende a estar atento e aberto, armas essenciais a quem se encontra na arena do mundo. O lúdico descoberto por Akerman em Toda uma Noite permite à ação escapar ao mesmo tempo do valor utilitário do circuito produtivo e do valor fantasmático do circuito masturbatório. É uma moeda de Janus, porosa à mundanidade e ao sujeito.

A ascese em Akerman até então coincidia com a exaustão entrópica (Jeanne Dielman), ou com um fastidioso tête-a-tête com fantasmas, mesmo que fantasmas eróticos, onde o Outro era um duplo do Mesmo, era por ele implicado ou absorvido (êxtase erótico seguido de depressão e abandono em Je, Tu, Il, Elle - foto); ou então era um “esbarrão” acidental com o Outro na forma de cidade, uma versão mais ampliada e labiríntica da casa (News from Home); ou a travessia de um continente, versão “on the train” do exílio geográfico como substrato de um cosmo interior (a Europa desenraizada do pós-guerra, em Os Encontros de Anna). Em Toda uma Noite, este Outro possui uma figura, um destino e um ritmo; a força encontrou uma presença na qual se encarnar; o mundo, um corpo para habitar; o corpo, um horizonte para existir.

Maio de 2009


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta