in loco - o cinema de chantal akerman Olhar
pela janela por
Carla Maia - colaboração especial para a Cinética
"Sou parte de algumas imagens bem precisas de minha infância:
minha mãe que eu via na bancada da cozinha; minha mãe carregando as compras. O
que eu quero não é fazer naturalismo. Mas, a partir de uma imagem bem estilizada,
chegar à própria essência da realidade." Chantal Akerman Na
epígrafe acima, estão presentes duas noções que podem ser tomadas como chaves
de compreensão para o cinema de Chantal Akerman ou, ainda, para o que a motivou
a produzir, ao longo de quatro décadas, mais de quarenta filmes: memória
e realidade. Possivelmente, desde que a locomotiva dos irmãos Lumiére investiu
sobre os primeiros espectadores, tais palavras passaram a integrar o vocabulário
crítico e teórico do cinema. Isso deve-se ao fato de que o cinema, esta "mágica
caixa de quinquilharias", ao possibilitar que as imagens fossem vistas em
movimento, reproduzindo a realidade numa escala até então jamais vista, passou
a estimular a cognição humana a articular dois universos distintos, embora interdependentes
– o mundo exterior, povoado por pessoas e acontecimentos diversos, e o universo
interior, povoado pelas lembranças e sensações que tais acontecimentos, quando
projetados numa tela em sala escura, provocam no íntimo de cada espectador. No
texto "O substituto dos sonhos", Hofmannsthal irá defender que a atmosfera
do cinema é "a única na qual os homens do nosso tempo – aqueles que constituem
a massa – entram numa relação imediata, sem o menor constrangimento, com uma herança
intelectual imensa, mesmo estando estranhamente acomodada, suas vidas em confronto
com a vida.” Trata-se, portanto, de pensar em
que medida tal confronto entre o particular, pertencente à esfera dos sujeitos,
suas memórias, suas vidas; e o geral, a vida por si mesma, a realidade tal qual
a percebemos, pode ser mais ou menos provocado pelas imagens e sons de um filme.
Em Akerman, essa questão permanece central. Na mesma entrevista da qual foi extraída
a epígrafe, a diretora irá afirmar: "Mas para
meu cinema, tenho antes a impressão de que a palavra que mais lhe convém é fenomenológico: trata-se sempre de uma sucessão de eventos,
de pequenas ações que são descritas de maneira precisa. E o que justamente me
interessa é esta relação com o olhar imediato, com o como tu vês essas pequenas
ações que se passam.” Uma
breve consulta a um dicionário de Filosofia oferece uma sucinta definição do método:
"fenomenológico é tudo aquilo que é inerente ao modo de demonstrar e explicitar
e tudo aquilo que exprime a conceituação implícita na presente investigação".
Essencialmente descritivo, o cinema de Akerman aposta na precisão e na duração
como formas de adentrar zonas mais insuspeitadas do pensamento, sem entretanto,
explorar qualquer "psicologismo" – o que há para ver é o que ocupa os
justos limites dos enquadramentos, o que há para ouvir são falas quase desprovidas
de qualquer emoção, monótonas e restritas, muitas vezes, ao relato de acontecimentos
aparentemente banais (a leitura das cartas de News From Home, a fala do
caminhoneiro em Je Tu Il Elle, as confissões que Anna escuta com paciência
em seus rendez-vous - foto acima, os depoimentos dos atores de Histoires
d'Amerique, para citar alguns poucos exemplos). Não
há tentativa de representar supostos universos psicológicos, seja através de falas
ou ações das personagens, ou mesmo de procedimentos formais, como variações na
iluminação ou na trilha sonora (a tão conhecida música dramática no momento de
tristeza, a luz sombria das cenas de pavor). Ao contrário, se o cinema de Akerman
propõe, como aqui se defende, uma articulação entre mundo exterior e universo
interior, entre a realidade que filma e os pensamentos que sucita, tal articulação
só se torna possível pelo engajamento do espectador com o filme, o que exige uma
postura ativa – não somos conduzidos por um enredo repletos de acontecimentos
e reviravoltas, somos, antes, induzidos a construir, sozinhos e por conta própria,
nossas próprias interpretações e sensações diante das imagens que seus filmes
nos apresentam.
O "quarto Akerman"
Akerman
explora a rarefação – poucas personagens, cenários esvaziados, tempos distendidos
– questionando a representação dramática ou naturalista da realidade justamente
por acatar obsessivamente seus preceitos (a acumulação do tempo que passa, a repetição
das ações cotidianas), tendo como resultado uma espécie de real hiperbolizado
(o hiperrealismo a que se refere Ivone Margulies em seu livro de referência sobre
a obra de Akerman). Isso a afasta claramente do cinema clássico e a aproxima do
cinema moderno: anti-ilusionista, o cinema de Akerman está mais próximo deste
que buscou explorar a linguagem cinematográfica ao extremo, através de recursos
formais que rompem com a coesão e a coerência narrativa, para com isso colocar
em evidência as potências da forma, a revalorização
de cada plano em si mesmo, da construção do plano em função de seus elementos
fundamentalmente cinematográficos. Se
devido ao seu permanente compromisso com a experimentação da linguagem cinematográfica,
Akerman se aproxima do cinema moderno – já é notória sua declaração de que começou
a fazer cinema após uma sessão de Pierrot le fou, de Godard – dele ela
também se afasta (não sem deixar de prestar
sua homenagem à nouvelle vague com Portrait d'une jeune fille, um
filme de balada, ainda que em versão renovada, sem dúvida). Segundo Margulies, Akerman "sugere uma alternativa
ao realismo analógico (como o neorrealismo, por exemplo) e também ao realismo
de ideias (como o projeto anti-ilusionista de Godard)." Se
o cinema de Akerman pode ser tomado como pós-godardiano, ainda de acordo com Margulies,
é devido à ênfase que ele confere à materialidade. Por matéria, entenda-se o tempo
e o espaço, as matérias do cinema por excelência; por ênfase, considere-se a predileção
pelo plano fixo e de longa duração, como forma de enfatizar o tempo; e a recorrência
dos quartos ou apartamentos como cenários, como forma de trabalhar o espaço. Saute
ma ville, La chambre, Je Tu Il Elle (foto), Jeanne Dielman,
A Prisioneira, Demain on Demenage, Noite e Dia, L'homme
à la valise, Lettre d'une cineaste – há,
em muitos filmes de Akerman, uma constante exploração do espaço fechado entre
quatro paredes (ou melhor, três paredes, sendo a quarta o lugar do espectador).
Ivone Margulies chega a cunhar um termo para este
elemento caro à obra da diretora: “La chambre Akerman”. Os quartos de
Akerman não são apenas cenários para o desenrolar das ações, eles são determinantes
na diegese, suas portas, paredes, corredores compõem uma geometria de linhas,
retângulos, quadros dentro do quadro. A personagem já não ocupa mais o centro
das atenções, torna-se mais um de seus elementos, ao lado dos objetos da casa:
o colchão em Je Tu Il Elle, a escova de engraxar, a chaleira, o fogão de
Saute ma ville, a escova de engraxar, a chaleira, o fogão novamente em
Jeanne Dielman, as janelas de Lá-bas. Mesmo
quando decide sair do confinamento e filmar o exterior, em especial em seus filmes
considerados documentários (ela mesma se recusa a fazer diferenciação), como D'est,
Do Outro Lado, Sud e News from Home (foto), permanece
a ênfase temporal, pela duração; e espacial, pela relação com os lugares agora
públicos, sempre vistos pelo olhar singular da diretora, um olhar estrangeiro,
distante, paciente e nômade. A câmera irá passear pelos lugares sempre à média
distância, em lentos travellings ou planos fixos, com raros closes ou panorâmicas,
e sem qualquer voyeurismo. O confinamento dará lugar ao nomadismo, mas
em ambos permanecem os efeitos de acumulação das horas – o tempo da espera em
que nada acontece – e a sensação de um não-pertencimento, de um isolamento radical.
Se em Godard tal radicalização era obtida pelos efeitos de justaposição e questionamentos
da própria linguagem cinematográfica, além das abordagens diretas ao espectador,
em Akerman há distanciamento, elipses e um modo de ação sobre o espectador que
se dá através da duração e da acumulação de repetições. Errante,
o trabalho de Akerman atravessa décadas e continentes e a cada travessia, sofre
uma transformação. Nos anos 70, quando sai da Europa com destino à Nova York (obedecendo
a um movimento migratório tipicamente judeu), Akerman conhece o cinema estruturalista
de Andy Warhol e Michael Snow, influências decisivas em seu trabalho. Segundo
Ivone Margulies, os filmes que Akerman realizou nessa década se aproximam sobretudo
de duas estéticas ou dois cinemas: na Europa, o antinaturalismo do cinema textualizado
de Bresson (Diário de um Pároco de Campanha), Dreyer (Gertrud),
Rossellini (A Tomada do Poder por Louis XIV) e Eric Rohmer (A Marquesa
d'O), encontra correspondência nos monólogos monótonos de Les rendez-vous
d'Anna e Jeanne Dielman; nos Estados Unidos, a câmera fixa e esquecida
do cinema estrutural e do minimalismo serve de inspiração para Hotel Monterey
e News from home. Por cinema textualizado, ainda segundo Margulies, entenda-se
o modo como Bresson, Dreyer, Rohmer e outros cineastas como Jean Marie Straub
e Danièlle Huillet (Chronicle of Anna Magdalena Bach) se apropriam dos
textos literários de forma a fazer deles "uma camada material extra",
um texto que não se adapta pela estranheza de sua apresentação, pelo tom recitado
e artificial da voz que o profere. Por cinema estrutural, considere-se as experiências
de Andy Warhol (Eat; Sleep; Empire) mas também de Michael
Snow (Wavelenght; Back and forth) e James Benning (11x14) e mesmo
de Yasujiro Ozu, das quais a serialidade, a duração, a acumulação, a homogeneidade
e a sobriedade são as principais ferramentas. Tanto em um quanto em outro, persiste
a ênfase na materialidade e na descrição, um formalismo que não permite afrouxamento.
Na
década de 80, um curioso desvio vem mais uma vez fadar qualquer tentativa de generalização
ou categorização do cinema de Akerman ao fracasso. Com Toda Uma Noite,
Golden Eighties, Les annes 80, Lettre d'une cineaste e L'homme
a la valise, não há apenas uma mudança de gênero ou estilo, mas de ritmo e
de humor. As falas recitadas e monótonas dos filmes anteriores dão lugar à palavra
cantada e à vibração em Golden Eighties (foto), ao auto-retrato
bem humorado de Lettre d'une cineaste, ao balé indeciso dos casais de Toda
Uma Noite. Numa década em que o cinema americano consolidou seu domínio sobre
a cena cinematográfica, Akerman parece reagir a tal supremacia ao tomar dois gêneros
tipicamente hollywoodianos – a comédia romântica e o musical – apenas para num
segundo momento fazê-los implodir, seja pela fragmentação da história linear,
seja pela caracterização excessiva e burlesca de seus clichês. Nos
últimas duas décadas, os anos 90 e 2000, Akerman toma proveito das novas câmeras
digitais e viaja com equipes reduzidas para fazer seus documentários. Akerman
irá percorrer terras estranhas, países de língua desconhecida, onde encontrará
pessoas aprisionadas em seu próprio território (os mexicanos de Do Outro Lado,
os habitantes do leste-europeu após a queda do muro de Berlim em D'est,
os negros vítimas de preconceito em Sud, e mesmo ela própria, que não consegue
sair do apartamento em Tel-Aviv, de onde observa seus vizinhos, igualmente trancados
em suas casas, em Lá-bas). Confinamento e nomadismo afetam-se mutuamente.
A influência do cinema estrutural novamente se faz sentir, através da duração
e da acumulação, porém, dessa vez, parece haver uma sutil mudança de foco – não
mais apenas passantes ou parte da paisagem, as pessoas filmadas passam a falar
para câmera, nas entrevistas em Do Outro Lado e Sud, ou são filmadas
dentro de suas casas, como em D'est. Questão forte
do documentário – dirigir-se ao outro, buscar a alteridade. O traço distintivo
de Akerman é fazer desse encontro com a alteridade um exercício auto-reflexivo
– frente ao outro, é sua própria alteridade que termina por tomar evidência. Distante
dos inúmeros documentários desse período que buscaram dirigir-se ao outro para
revelar seus segredos em depoimentos marcantes, os documentários da diretora parecem
reafirmar, a cada vez, o impossível pertencimento. Não há tentativa de identificação
ou aproximação – as personagens, mesmo quando entrevistadas, permanecem desconhecidas
e inacessíveis. Formalmente, a câmera permanece à média-distância, fixa, sempre
se revelando como um terceiro termo que influi decisivamente na relação entre
quem filma e quem é filmado. Tal recurso encontra correspondentes no cinema contemporâneo:
nos filmes de Pedro Costa (No quarto de Vanda, sobretudo) e Wang Bing,
encontramos semelhante interesse em revelar a câmera como presença ao mesmo tempo
discreta e determinante. Pela maneira como se atualiza em
cada década - ele se deixa afetar pelo formalismo e o experimentalismo dos anos
70, assume os ares burlescos dos anos 80, incorpora as novas técnicas de produção
digital nos documentários dos anos 90 e 2000 (com exceções, sem dúvida, em grandes
produções como A Prisioneira) – o cinema de Akerman responde a importantes
questões de seu tempo. Entretanto, a diretora permanece como um corpo estranho
entre seus contemporâneos. O próprio Godard afirma, em seu filme Roteiro do
filme Passion, que Chantal é uma entre os poucos "estrangeiros do cinema".
Avessa às filiações, ao ativismo (não gosta quando rotulam seus filmes dos anos
70 como feministas, por exemplo), e resistente a qualquer tentativa de aproximação
ou comparação com o trabalho de outros cineastas (ela prefere deixar as comparações
para os que vêem seus filmes) e mesmo a declarar suas preferências, Akerman é
uma cineasta que permanece à margem e um tanto quanto reclusa, isolada de seus
contemporâneos. Maio de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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