história(s) do cinema brasileiro
O cinema popular brasileiro do século 21
- Parte 2 por Leonardo Mecchi
Como
não poderia deixar de ser, ao terminar a primeira
parte deste texto falando das franquias modernas, falamos na Globo. De fato,
não podemos deixar de ressaltar essa que é uma das principais características
que definem o cinema popular dos anos 2000: a presença maciça da Globo Filmes.
Fundada ainda em 1997, o braço cinematográfico da Rede Globo só começou a atuar
mais fortemente na co-produção de filmes brasileiro com O Auto da Compadecida
(2000, 2.2 milhões), filme que, embora baseado num clássico do nosso teatro, pode
ser visto no contexto como um filme-franquia, já que foi derivado diretamente
de uma minisérie exibida previamente na emissora. De lá para cá, a Globo Filmes
só fez aumentar sua ação na produção cinematográfica nacional. Sua forma de atuação,
entretanto, na maior parte das vezes não se deu através de investimento direto
numa produção, mas sim através de co-produções onde sua participação se dá na
cessão de espaço, dentro de sua grade de programação, para a divulgação do filme. O
que à primeira vista pode parecer pouco, tem sua importância comprovada quando
pensamos que a divulgação sempre foi umas das principais deficiências do cinema
brasileiro diante dos orçamentos milionários de lançamento dos filmes norte-americanos.
Assim, aproveitando-se de sua imensa penetração em todo o território nacional
e em todas as camadas da população, a Rede Globo acaba sendo a principal arma
de alguns filmes brasileiros para chegar até o grande público. Apenas para se
ter idéia do poder da Globo Filmes, todas as 25 maiores bilheterias dos anos 2000
são co-produções suas. Claro que isso não significa que o selo Globo Filmes é
garantia imediata de sucesso – basta lembrar de alguns de seus fracassos, como
A Máquina (2006, 56 mil espectadores) e Querido Estranho (2004,
18 mil) –, mas tornou-se sim condição praticamente imprescindível para uma bilheteria
de destaque. Essa
aproximação com a TV reforça também outro atributo muito forte do cinema popular
brasileiro não apenas dos anos 2000, mas também das décadas anteriores, que é
a ausência quase total de filmes baseados inteiramente em material inédito. Salvo
raríssimas exceções – Se Eu Fosse Você nos anos 2000 (embora pautado numa
fórmula já consagrada nos EUA dos filmes de troca-de-corpo), Central do Brasil
na década de 90 e alguns filmes da Boca nos anos 70/80 –, todos os demais filmes
que figuram entre as maiores bilheterias desses períodos foram baseados em material
já existente, seja na forma de biografias (Dois Filhos de Francisco, Cazuza),
livros (Carandiru, Cidade de Deus, Olga), teatro (Lisbela
e o Prisioneiro - acima, O Auto da Compadecida, A Partilha)
ou televisão (Os Normais, A Grande Família e Xuxa). Outra
característica comum aos filmes de grande público deste início de século é sua
parceria com as chamadas majors. À exceção de Cidade de Deus, Olga
e Os Normais (todos distribuídos pela Lumière), os demais filmes no ranking
das 10 maiores bilheterias do período tiveram distribuição das majors.
Essa reaproximação entre as distribuidoras internacionais e o produto brasileiro
se deve também às leis de incentivo. O artigo 3º da Lei do Audiovisual permite
às distribuidoras estrangeiras que deduzam até 70% dos imposto devido sobre o
envio de rendimentos ao exterior, desde que apliquem esse montante na produção
brasileira. Esse benefício permitiu um novo e considerável aporte de recursos
à produção cinematográfica nacional, a ponto de hoje o Artigo 3º já ser o maior
mecanismo de incentivo à produção, respondendo em 2006 por 40% de todo investimento
realizado através de leis no cinema brasileiro. Entre as 10 maiores bilheterias
dos anos 2000, essa participação é ainda maior (na média, 53% do orçamento captado),
chegando a mais de 80% nos filmes-franquia como Os Normais, Xuxa e os
Duendes (2001, 2.7 milhões) e Xuxa Popstar (2000, 2.4 milhões). Tal
situação, entretanto, deixa a produção brasileira em uma posição bastante perigosa,
por mais contraditório que isso possa parecer. Por ter uma parte tão grande de
sua produção vinculada aos investimentos das majors, ficamos de certa forma
refém dessas empresas. Isso pode explicar em parte, por exemplo, porque ainda
não foram criados mecanismos que evitem, ou ao menos minimizem, situações como
a que vivemos no final de junho último, quando 98% das salas de cinema do país
estavam ocupadas por produções norte-americanas. Com o poder de barganha totalmente
nas mãos das majors, o risco de limitar algumas ações mais predatórias
no mercado nacional passa a ser grande demais. Aonde foi
o nosso sexo? Voltando
aos filmes, a grande ausência nos anos 2000 fica por conta do “filme-sexo” – aquele
que, sem extrapolar para o explícito, busca seu apelo popular através da exacerbação
da sexualidade. Responsável por grandes sucessos na década de 70 – seja buscando
um certo verniz de respeitabilidade, como A Dama da Lotação (1978, 6.5
milhões), ou enveredando para um humor mais irresponsável, caso de Dona Flor
e Seus Dois Maridos (1976, 10.7 milhões), A Viúva Virgem (1972, 2.6
milhões) e Amada Amante (1978, 2.6 milhões) – o filme-sexo atingiu seu
ápice na década de 80: numa lista que desconsiderasse os Trapalhões, possuiria
oito representantes entre as 10 maiores bilheterias do período. Essa
explosão do filme-sexo no início da década de 80 se deve, em parte, por um reflexo
tardio da vasta produção da Boca do Lixo – representada na lista das maiores bilheterias
por A Noite das Taras (1980, 2.1 milhões), Mulher Objeto (1981,
2 milhões) e Convite ao Prazer (1980, 2 milhões) – que já fazia muito sucesso
na década de 70 e acabou por “contaminar” um espectro mais amplo da produção na
década de 80. Sobre isso, vale a leitura do artigo de Cléber
Eduardo aqui na revista sobre A Menina e o Estuprador (1982). Após
os anos Collor, entretanto, o sexo se fez ausente não apenas nos grandes sucessos
de bilheteria, mas em praticamente toda a produção contemporânea. Quase a totalidade
dos (poucos) filmes que retratam o sexo, o fazem não de uma maneira sedutora ao
espectador, como o era nas décadas de 70/80, mas “naturalizada” (Karim Aïnouz)
ou mesmo repulsiva (Cláudio Assis). Arrisco pensar que isso se deva, em grande
parte, ao binômio “leis de incentivo” (que de uma hora para outra delegou a decisão
de quais filmes deveriam ser realizados ao departamento de marketing das empresas)
e “elitização do cinema” (que, com o aumento dos ingressos e fechamento das salas
de rua e do interior, concentrou o público do cinema brasileiro em uma parcela
da população que o estigmatizava como uma produção precária, de atuações ruins
e péssimos roteiros). Isso levou à extirpação, na produção
do período, de quaisquer características que pudessem soar “desagradáveis” ao
suposto gosto da classe média consumidora (em especial justamente as características
que levavam o cinema brasileiro ao sucesso popular das décadas anteriores, como
o sexo, o humor escrachado, o deboche etc). O mesmo cinema que antes atraia milhões,
agora era motivo de vergonha, e o cinema brasileiro a partir da segunda metade
da década de 90 teve que se confrontar com esse preconceito que rapidamente se
arraigou nos espectadores, e grande parte de seus esforços era desprendida na
busca por reconquistar sua confiança. Tal cenário foi responsável
não apenas pela extinção do filme-sexo, mas também pelos filtros na realidade
dos filmes-verismo discutidos na primeira parte dessa discussão. Quebrado o tripé
no qual sempre se sustentou o cinema popular brasileiro das últimas quatro décadas
(filme-verismo, filme-franquia e filme-sexo), a produção contemporânea brasileira
teve que encontrar um outro caminho para atingir o equilíbrio junto ao grande
público. Esse caminho começa a se delinear nesse período
em um conjunto de filmes que retorna ao espaço mítico do cinema brasileiro – o
nordeste –, porém por um viés de humor impregnado pelo imaginário construído sobre
aquele espaço pela Rede Globo. Embora entre as 10 maiores bilheterias do período
tal tendência só esteja representada por Lisbela e o Prisioneiro (2003,
3.2 milhões), podemos encontrá-la em outros filmes que, embora não tenham chegado
ao top 10, atingiram um grande sucesso de público, como O Auto da Compadecida
(2000, 2.2 milhões) e Deus é Brasileiro (2003, 1.6 milhão). Essa
tendência, na realidade, é o reflexo de outra ainda mais forte, de características
autorais. Pois mais do que afirmar que existe um cinema popular brasileiro neste
século XXI, mais correto seria afirmar que existem Daniel Filho e Guel Arraes.
Excetuando-se os filmes da Xuxa e dos Trapalhões, a dupla é responsável, seja
como diretores ou produtores, por 11 das 15 maiores bilheterias do cinema brasileiro.
Essa concentração das grandes bilheterias nas mãos de Daniel Filho e Guel Arraes
é algo que merece um estudo específico e mais aprofundado, não apenas para se
determinar quais as características específicas de suas produções que tanto agradam
ao público, mas também pelo fato dessa produção abafar, ou mesmo inviabilizar,
outras possibilidades de cinema popular. Temos, portanto,
neste novo século, um cinema popular que permanece fiel a certas fórmulas consagradas
ao longo das últimas décadas (o filme-franquia e o filme-verismo), que abandonou
outras (o filme-sexo) em nome de um novo “padrão de qualidade” e que, em suas
filiações a majors e Globo Filmes, abriu mão de parte de sua independência
para tentar reconquistar um público a muito perdido. Sem grandes mudanças à
vista num futuro próximo, resta saber para onde esse caminho levará o cinema popular
brasileiro. editoria@revistacinetica.com.br
|