in loco Um
oceano de questões a navegar por Paulo Santos Lima
Debate 1: Anos 50 – Transição para o moderno: da Vera
Cruz ao Rio 40 Graus O termo “primeiro”
foi honrado neste primeiro debate do festival, uma vez que os integrantes sobretudo
situaram historicamente os filmes e o pensamento crítico nos anos 50. Acredito
que, ao se historicizar, evita-se justamente os lugares-comuns e generalizações.
Seria medonho, assim, que as cinco mesas de Ouro Preto resultassem em sólidas
cristalizações. E o grande número de convidados na mesa – cinco e meio, pois Nelson
Pereira não pôde comparecer e Rodolfo Nanni, em seu lugar, só conseguiria chegar
ao final – serviu justamente como um recurso, involuntário ou não, para se fazer
uma contextualização, claro, mas também uma leitura contemporânea e refrigerada
do tema, deixando questões em aberto. Em aberto para as outras mesas e para além
de Ouro Preto. Esse clima anos 50 resgatado para o simpósio
serviu, portanto, como base de lançamento para assuntos referentes ao nosso momento,
como, por exemplo, a fala do professor da UFF e crítico da Contracampo Daniel
Caetano. Ele lembra que no cinema de Nelson Pereira havia uma idéia de entrar
no mundo do outro, em chave distinta da do Cinema Novo, o que resultou em experiências
como a de filmar O Amuleto de Ogum porque sua esposa fazia pesquisa em
Duque de Caxias; ou, ainda mais profundamente, morar com Zé Kéti e mergulhar naquele
universo, para fazer seu Rio Zona Norte em 1957. Daniel parte então para
o recente Brasília 18%, onde Nelson Pereira “observa um mundo no qual ele
não deseja participar, um olhar que não consegue entrar nem compreender aquele
espaço político de Brasília”. O crítico Inácio Araújo também
afirmou NPS como um grande exemplo desse traço de observação direta das coisas,
num momento histórico decisivo na modernização do nosso cinema, de liberação do
olhar: um processo de abertura do olhar, de mostrar as coisas, que foi difícil,
penoso, segundo Inácio. Ele retomou Brasília 18%, filme de que gosta muito,
para criticar um certo tecnicismo do cinema atual, que afirma viver um momento
de formalismo num sentido oco. Até por isso, por sua “precariedade artesanal,
de um cinema feito às pressas, mas trazendo uma leveza”, Inácio Araújo vê na chanchada
uma experiência que nos ensina muito. Entre chanchada e cinema
da retomada, entre o debate crítico dos anos 50 e as várias fraturas e incomunicabilidades
do pensamento analítico de agora, uma ponte certa é a da produção de Alex Viany,
Paulo Emilio, Antônio Moniz Vianna e outros. Um deles, menos lembrado pela convenção,
é Alinor Azevedo, jornalista, crítico de cinema e roteirista que atuou entre os
anos 40 e 60, e foi também um dos fundadores da Atlântida – tendo como último
trabalho uma consultoria em Assalto ao Trem Pagador (1962). Ele é tema
dos estudos do professor e doutorando da UFF Luís Alberto Rocha Melo, que ao trazer
ao conhecimento a trajetória do atuante Azevedo (no seu trabalho, Argumento
e Roteiro: O Escritor de Cinema Alinor Azevedo, e nessa mesa de Ouro Preto),
ajuda a quebrar parte da casca que padronizou o avesso e o direito de toda uma
década de discussões, buscas e contaminações arejadas. Melo
destacou Também Somos Irmãos (1949), de José Carlos Burle, filme jamais
reconhecido pela historiografia como um exemplo de filme independente, fora do
sistema industrial, ainda que trave diálogo claro com o neo-realismo – inclusive
com o release da Atlântida dizendo, na época, que esse era “um filme estruturado
como na escola italiana”. Se é fato que a estrutura do filme passeia mais pelo
melodrama do que pelo neo-realismo (que surge mais nas ambiências, no filmar na
favela e preocupação com a questão social), ainda assim causa estranhamento que
nem mesmo “Introdução ao Cinema Brasileiro” do Alex Viany, “Revisão Crítica do
Cinema Brasileiro” de Glauber Rocha ou os textos de Paulo Emilio Salles Gomes
tenham dado o devido valor filmes como este, que continham elementos do que viria
a ser o cinema independente bem representado pelo NPS de Rio 40 Graus e
Rio Zona Norte. Em sua fala, o professor da UFSCar
e pesquisador Arthur Autran limpou um pouco o nevoeiro a respeito do que foi exatamente
o debate dos anos 50 em suas várias correntes críticas – todas querendo definir
qual seria a verdadeira crítica cinematográfica. Lembrou-nos que a cultura cinematográfica
enfraqueceu com o fim do Chaplin Club, nos anos 30, e no pós-guerra surgiram os
críticos atuantes em jornais, como Viany, Moniz Vianna e os grupos de Minas Gerais,
o que revigorou a discussão sobre cinema no país, em conjunto com a experiência
neo-realista de Rossellini na Europa. Já indo para a década de 50, Autran distingue
dois grupos deste oceano: os críticos históricos (Viany, Carlos Ortiz, Walter
da Silveira etc), que preocupavam-se com a questão do conteúdo – ou seja, de um
conteúdo brasileiro (time que foi importante para a formação do jovem NPS); e
o grupo esteticista (Almeida Salles, Moniz Vianna, Ciro Siqueira, etc), cosmopolita,
universalista, resistente ao neo-realismo e mais preocupado com uma estética universal.
Os críticos históricos (sobretudo Alex Viany) eram mais
ligados ao cinema independente, moderno, que tinha como questão fundamental verter
o neo-realismo para o Brasil. Não bastasse Zavattini como bússola indicadora do
caminho certo, na sua crença de que o cinema necessitava de uma história para
se introjetar na realidade, outro porto a ser atracado era Humberto Mauro, que
inclusive foi um dos grandes gurus dos cinemanovistas, ao lado de Rossellini.
Para pensar num cinema que não fosse Vera Cruz, que fosse nacionalista e realista,
um cinema nacionalista e popular, Mauro foi central para Viany. E Autran lembrou
que, dos filmes de HM, o que mais interessa a Viany é Favela dos Meus Amores
(1935), que muitos consideram um antecessor do neo-realismo do pós-guerra, uma
vez que olha para a “realidade” do morro, da favela e do samba. Humberto Mauro
teria falado aos italianos, em 1937, “por que vocês não fazem um filme sobre o
cotidiano italiano?”. Aliás, o que Inácio Araujo acha da chanchada, Viany também
percebia naqueles tempos, sendo ele o primeiro a reconhecer que a chanchada, até
então vista como “vulgar, comercialista”, era um modo de falar do brasileiro,
de mostrar o jeito brasileiro. Antes de situar ou historicizar a modernização
do olhar brasileiro via neo-realismo, o crítico de cinema e teórico José Carlos
Avellar comenta a fonte: a guerra e as ditaduras na Europa fizeram com que as
pessoas não quisessem outra imagem que não fosse adulta, mais direta com a realidade
(ou seja, temos aqui um conceito histórico criando uma necessidade que resulta
numa mudança estética). O estudioso lembrou Zavattini, quando disse “as coisas
estão lá, por que modificá-las? E a realidade contendo tantas histórias, por que
inventar outras?”. Era difícil, segundo Avellar, registrar um ato dramático na
guerra, filmar uma bomba explodindo etc, e daí a dramaticidade estaria então no
gesto banal. Luís Rocha Melo reiterou essa idéia, lembrando o texto “Rascunhos
e Exercícios”, em que Paulo Emilio cita como grande exemplo de realismo a imagem
de Grande Otelo penteando os cabelos em Rio Zona Norte, ou seja, o que
o Zavattini queria dizer sobre o “espetáculo do banal”. Mas
Avellar nos lembrou que não havia apenas o modelo italiano nos anos 50. Nossos
cinemas recebiam de assalto toda a sorte de cinemas e estilos, dos melodramas
mexicanos ao realismo do Mizoguchi dos anos 30. Claro que o projeto não era uma
fotocópia do neo-realismo, pois o próprio Glauber diria que era “preciso misturar
Zavattini e Eisenstein”. E, para Avellar, essa mistura possibilitou um cinema
de autor no Brasil. Bem rica foi a participação ligeira do
cineasta Rodolfo Nanni, que rodou O Saci e foi contemporâneo de Nelson
Pereira. Se a filmagem na rua, para todos nós, para Rohmer, Godard, Rossellini,
Glauber e tantos outros, era sinônimo de liberdade (por estar fora dos estúdios,
dos olhos feitores da equipe de produção), para Nanni, filmar em estúdio é o que
lhe dava uma certa liberdade, porque “você não tem interferência, isola-se do
público, ganha privacidade”. Eis outra dose a ser misturada no vitaminado coquetel
da produção cinematográfica e crítico-cinematográfica daqueles tempos. editoria@revistacinetica.com.br
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