in loco Plural
e singular por Cléber Eduardo
Debate 5: Estéticas e identidades mineiras. Mineiridade contemporânea:
entre o anedotário e o poético Existe uma estética
mineira, com características presentes em muitos filmes? Ou teríamos de falar
em estéticas de Minas, com variações de propostas de acordo com o diretor?
Para alguns críticos, um segmento da produção do Estado, capitaneada por Cao Guimarães,
criou uma escola – a do documentário poético mineiro, também já classificada,
não sem tom pejorativo, de “herdeiros da videorte”, “filhos de Eder Santos” ou
qualquer outro rótulo, que, independentemente de ser essa intenção, reduz tudo
a um “formalismo pão de queijo”, a um “esteticismo regional”, cuja única disposição
seria brincar com as imagens. Esses reducionismos generalizantes,
evidentemente, referem-se a um recorte específico, sem nem esbarrar em outros
segmentos da produção de Minas, como os filmes de Helvécio Ratton, Rafael Conde,
Patrícia Moran e Gisela Werneck, para citar três nomes com trabalhos em circulação
por mostras e festivais. Tais etiquetas também desviam da matriz principal dessas
experimentações audiovisuais, localizada um pouco atrás, nos anos 70-80, com o
fenômeno ainda codificado de Carlos Alberto Prates Correa, que, em um percurso
sintético e potente (o episódio Guilherme em Os Marginais, mais
Crioulo Doido, Cabaré Mineiro, Noites de Sertão e Minas
Texas), instalou uma poética de uma modernidade muito particular. Estamos
de acordo com a quase denúncia dos realizadores, que, carentes de uma crítica
mais reflexiva, mais analítica, mais argumentada e mais demonstrativa, recusam-se
a serem tratados como parte de um único time e despidos de singularidades, como
se um ou dois filmes pudessem responder por todos os outros, sem terem tido suas
particularidades problematizadas. Essa queixa dos realizadores, explicitada no
debate Estéticas e Identidades Mineiras, estende-se à crítica mineira
– talvez um termo impreciso, segundo os próprios realizadores, para se referir
a quem escreve sobre cinema em Minas. Rafael Conde acredita, por exemplo, que
os filmes mineiros, embora ofereçam material para a crítica refletir, não motivaram
essa atitude. Com exceção de um ou outro caso isolado, facilmente localizáveis
(Marcelo Miranda, Rafael Ciccarini e o pessoal do Filmes Polvo) , ainda segundo
Conde, o cinema mineiro não teve críticas à altura de suas propostas no próprio
Estado, e isso amplia os riscos de simplificações (dentro e fora de Minas). Helvécio
Marins, claramente irritado com as classificações generalizantes, ou com as caixinhas
que tendem a homogeneizar diferenças, exprimiu o descontentamento: “Estou de saco
cheio”, repetiu várias vezes. É preciso ter em mente a
perspectiva histórica do cinema no Brasil e no mundo antes de decretar a inutilidade
ou o efeito nocivo de categorias e comparações. Patrícia Moran abordou isso na
mesa do debate. Devemos lembrar de que a maioria dos rótulos (Neo-realismo, Nouvelle
Vague, Expressionismo, Cinema Novo, Cinema Marginal), se rigorosos formos com
as evidências audiovisuais, não se sustentam de pé como classificação unificadora.
Basta pegar um filme de Joaquim Pedro de Andrade, O Padre e a Moça, ou
de Paulo César Saraceni, Porto das Caixas, e tentar adequá-los ao ideário
cinemanovista mais dogmático. Basta ainda tentar encontrar os cruzamentos entre
Jean-Luc Godard e Jacques Rivette, ou entre Alain Resnais e Claude Chabrol, no
universo francês dos anos 60, ou ainda entre Roberto Rossellini e Giuseppe de
Santis, esses no campo do cinema italiano dos anos 40-50. No entanto, em vez de
lutarem para evitar as categorias e os agrupamentos, esses cineastas, com maior
ou menor proximidade entre uns e outros, criaram uma “movimentação”, mais que
movimentos, pelas quais foram beneficiados por alguns anos. Portanto, tais “caixinhas”,
se tiverem um discurso crítico a acompanhar o apelo de marketing, podem ser saudáveis
– ao menos por algum tempo. E há outro aspecto, esse de caráter
crítico, desvinculado de marketing estético. Se é verdade que cada unidade é (por
definição) única, filmes e diretores inclusive, também é verdade que há relações
entre unidades, que, com todas as distinções, parecem colocar algo para além delas.
Não há como ignorar, por exemplo, a coincidência de três filmes mineiros, todos
exibidos no II Cineop, terem títulos referentes a mobilidade e percurso: Andarilho,
de Cao Guimarães, Descaminhos, da Camisa Listrada, e O Caminho do Homem,
de Chico de Paula, complementados por Trecho, de Helvécio Marins e Clarissa
Campolina. São trabalhos unidos pela opção por narrativas de deslocamento, pelas
viagens pelo interior, pela observação afetiva dos homens simples e dos lugares
pequenos, sempre procurando exibir os artifícios de construção, como se fizessem
questão de escancarar a mediação do realizador. É a esse
traço construtivista, presente nas vanguardas européias dos anos 20, em trabalhos
de Joris Ivens, por exemplo, que é chamado de poético. A aproximação não se dá
em relação direta e sem filtros, em busca de informação sobre pessoas ou lugares
– embora, em linhas gerais, isso esteja presente em O Caminho do Homem,
de Chico de Paula, que, reunindo fragmentos de imagens e entrevistas/depoimentos
de moradores da rota do Ouro, procura encontrar os laços conectando as particularidades
de cada um, como se cada pedaço estivesse dentro de uma lógica mais ampla da região.
Mesmo nesse caso, porém, se a imagem é menos “manipulada” em texturas e cromatismos,
a montagem sinaliza sua construção, sua intervenção, seu processo de retirada
de qualquer efeito de transparência ou neutralidade. O poético
lida com a própria linguagem. Não se encarrega de transmitir significados e sentidos,
embora possa fazê-lo por dentro da linguagem. O poético nos dá a ver o processo
de sua construção dentro da construção. Tem um percentual variado de reflexividade,
colocando o espectador na experiência, mas também tirando-o de lá para enxergar
o filme, não somente a experiência mostrada ou narrada no filme. Nesse sentido,
com dinâmicas distintas, Andarilho, Descaminhos e Trecho
têm essa dinâmica poética e, como são registros de espaços e pessoas, carregam
esse dado de “documento” – embora, convenhamos, é um documento cheio de hibridismos
e contaminações, sem filiação ao observacional puro e sem compromisso com o interativo
sustentado por perguntas e respostas. Se podemos ver apenas
diferenças entre eles, caso essa fosse nossa disposição, isso seria facilmente
detectável nas imagens. Descaminhos muda de dinâmica de acordo com a mudança
de diretor em cada trecho do percurso de trem, mostrando, no próprio estilo multifacetado,
as diversas aproximações com o próprio processo e a afirmação de múltiplas viagens
em um deslocamento. Sua câmera passa pelos lugares, os lugares ficam e a câmera
continua em frente. Trecho também se desloca, agora a pé, na estrada, mas
caminha com um personagem, por conta dele, colado nele, em busca da exposição
do olhar do filme, mas também do olhar de seu personagem. Andarilho parece
ser complemento de Trecho, também centrado em andarilhos (no plural), mas
quem caminha agora são os personagens, não o filme, e será preciso parar e sentar
para vê-los e ouvi-los. Parece claro que, nesse encaminhamento de Descaminhos
até Andarilho, com Trecho entre eles, há um deslocamento. Há o filme
que se move por lugares, sem sair do lugar (o trem), até o filme que pára para
ver-olhar, deixando os personagens se moverem, passando pelo filme que se move
com o personagem. Para além de mineiros, contexto a não ser
jamais ignorado, esses filmes são contemporâneos, com uma lógica de seu momento
histórico. Percebe-se um empenho em não procurar significados, sentidos, conotações
que possam ver sintomas nos personagens, transformando-os em ilustrações de casos.
Há uma busca por uma lógica da experiência em si mesmo, pela lógica de uma subjetividade
menos convencional, pelo fenômeno que recusa leituras, de modo que cada momento,
cada experiência e cada imagem sejam únicas, inigualáveis e vacinadas contra legendas
interpretativas. Esse é o zeitgeist dos filmes mineiros, o espírito do
tempo, mas não só em Minas, e, sim, de uma geração de parte dos realizadores e
dos críticos, que parecem alérgicos à construção de sentido para os filmes, ou
à construção de sentidos no filme, valorizando a potência significante dos próprios
encontros com os temas e universos. O encontro é mais importante que o que se
possa extrair dele. Podemos ver isso na ficção também, sobretudo em momentos de
Cão sem Dono, de Beto Brant, e O Céu de Suely, de Karim Ainouz,
embora ambos possam dar margem a várias significações. No
entanto, quando esse encontro se dá nesses três filmes mineiros especificamente
(O Caminho do Homem difere um pouco, de novo), não há uma das partes: a
equipe, o autor. Vemos apenas o “objeto”, o personagem, o entrevistado, mas não
há a entrevista. Não se ouve a voz de quem provoca, tampouco a imagem, e o encontro
fica pela metade com isso, porque metade dele está no extracampo, porque uma parte
dele foi deixada fora do filme, desde a aproximação da equipe com quem vai falar
até a negociação da palavra e da imagem, passando pelos momentos de provocação
verbal. Há um encontro que, na imagem, não se traduz como tal. Uma das partes
tenta sempre ficar de fora. Isso é mais evidente em Andarilho, como já
era na primeira parte de A Alma do Osso, também de Cao Guimarães, o que
faz desse diretor tão específico e especial um tributário do silêncio, do ritual
de ser olhos e ouvidos próximos e distantes, procurando evidenciar sua presença
justamente pela ausência, ou seja, pela colocação de seu lugar no extracampo da
câmera. Talvez seja sobre essa dinâmica, motivo de potência e estranhamento, presente
também em outros filmes, inclusive fora de Minas (como se vê em Vilas Volantes,
de Alexandre Veras, e Uma Encruzilhada Aprazível, de Ruy Nascimento, ambos
da produtora cearense Alpendre), que se tenha de pensar criticamente: o culto
do fluxo e do olhar que recusa significar demais. editoria@revistacinetica.com.br
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