in loco - 5o cineop
Imagens híbridas
de um país híbrido
por Paulo Santos Lima
Lábios sem Beijos, de Humberto
Mauro (Brasil, 1930)
Mulher, de Octavio Gabus Mendes (Brasil, 1931)
Ganga Bruta, de Humberto Mauro (Brasil, 1933)
Alô Alô Carnaval, de Adhemar Gonzaga (Brasil, 1936)
Bonequinha de Seda, de Oduvaldo Vianna (Brasil, 1936)
Década
bastante crucial ao nosso cinema, a de 30. Na verdade, à nossa
história do cinema, porque até o passo inicial de Adhemar Gonzaga,
em 1930, em finalmente criar um estúdio que viabilizasse uma produção
mais seqüencial, a cinematografia era um punhado esparso e aleatório
de filmes fomentados por ímpetos pessoais, ou ciclos, os tais
que marcaram o cinema da década anterior, e dentre os quais Cataguases/Humberto
Mauro foi o mais significativo. Ao engrenar uma “produção em série”,
é natural que os realizadores exercitem seus músculos criativos,
e acertos e erros arrebentem-se numa dialética interessante –
que são, propriamente, os filmes bons e ruins. A técnica, enfim,
chegava ao cinema nacional nessa década, como uma gramática que
possibilitasse escritas mais caligrafadas ou bem construídas.
Mas o papel, a caneta e o escritor, todos brasileiros, fizeram
brasilidades. Imagens brasileiras.
Se existe um traço em comum nos tantos filmes lançados entre o
gabarito do cinema mudo dos anos 20 e a falação sonora dos anos
30, ele está menos na imagem e mais nos pressupostos. As tais
imagens brasileiras, de um Brasil a ser visto, inclinação a ver
com o gosto do Governo Getúlio Vargas e com um certo ideal discriminatório
(de nem tudo mostrar, ou mostrar especificamente algo), podem
ter cunhado um pouco a forma, mas não merecem ser tão levados
em conta na (re)visão desses filmes. Em Ouro Preto, cinco das
obras produzidas pela Cinédia foram exibidas. As referências,
em 2010, parecem soltas, ou inúteis, mas de algum modo alguns
paradigmas fazem a métrica dessas imagens ora criativas, ora desengonçadas.
Ganga
Bruta, de Humberto Mauro, é o
que melhor dá conta do que foi seu momento histórico e o que ele
ainda responde hoje. É um trabalho certamente híbrido, tanto apoiado
na vanguarda dos anos 20 quanto a uma certa temática, a ver com
o que a Cinédia pretendia como cinema de estúdio. É, também, algo
entre o mudo e o sonoro – e cujo resultado é próximo de um tipo
de onomatopéia, além do uso de diálogos audíveis e outros ruídos
falados que ganham o auxílio da legenda. Alguns itens de qualidade,
como a trilha ser de Radamés Gnatalli, Mauro na direção e a fotografia
assinada por Edgar Brasil (e outros três fotógrafos) compõem o
quadro a ver com esse empenho em alinhar o cinema brasileiro nos
escalões mais elevados da produção mundial.
Importa
bastante a história do filme, sobre um marido (supostamente) traído
que mata a mulher e acaba se apaixonando por outra, não sem gerar
outras desgraças. A moral flutuante, senão invisível, tem sua
expressão na imagem, que apresenta elementos carregados de sentidos
análogos, como águas escorrendo e peças maquinais atritando-se
enquanto um casal transa na relva. Do cinema mudo europeu, o filme
pega emprestado a concisão, numa capacidade incrível de condensar
em poucos planos todo um acontecimento (como o assassinato da
esposa, do qual ouvimos um grito, um tiro e a seguir um movimento
de câmera que parte da arma caída à mão do marido soltando a aliança
do dedo e chegando, por fim, ao seu rosto). Há outros momentos
fortíssimos, como o corpo inerte de um homem caindo pelas cachoeiras
e os impressionantes planos do empreendimento na mata, arquiteturas
metálicas e cimentais que ostentam geometrias tecnológico-modernistas
dos primeiros decênios do século 20, muito a ver, aqui, com uma
idéia de ereção econômica que muito interessava ao ideário brasileiro
dos anos 30 getulistas. Uma ereção que visava mesmo uma penetração
– a do Brasil numa certa seara européia desenvolvida.
Ganga
Bruta seria uma bela broca, mas sua
absorção foi indigesta para a época, seu hibridismo maluco mais
complicado para o senso comum, que costuma exigir coerências e
uniformidades. Imaginemos o público e os críticos acomodados de
1933 percebendo o flashback no qual mergulha o protagonista,
Marcos (Durval Bellini), e que é dos mais sensuais momentos deste
sexual filme. De fato, o que mais impressiona em
Ganga Bruta, mais que a sexualidade, que
inclusive já tinha mostrado sua face (e coxas femininas) em dois
outros filmes da Cinédia, é certamente esse aspecto “frankenstein”,
uma costura maluca de elementos de vários cinemas e o abarcamento
de vários assuntos humanos e históricos. Até mesmo agora, em 2010,
as junções nos saltam aos olhos (ainda mais nesses tempos em que
se reza pelo “cinema de qualidade” brasileiro).
Há um desfile de rostos, algumas situações malucas
como a briga no bar entre o protagonista-galã-arruinado e os brutamontes
bizarros, ou mesmo a reunião de mundos bastante distintos (o lar
majestoso, os ambientes industriais, o submundo dos marginais,
o colosso urbano em avenidas e bondes coalhados de gente, a natureza).
Irônico o quanto as dificuldades para se realizar um filme no
Brasil foram sendo uma dura realidade aos nossos cineastas, ao
passo que alguns tantos projetos tumultuados (Apocalypse Now
é um clichê disso, mas é ainda um ilustrador exemplo), como Ganga
Bruta e a complexidade de outra de nossas obras-primas, A
Idade da Terra, trazem mais matérias do mundo no qual foram
realizados. Há um suor da época – e do cinema, num momento em
que as vanguardas, o expressionismo alemão, a linguagem cinematogrática
griffthiana, a a montagem analítica russa, tudo isso já havia
contaminado o ar respirado pelos homens dos anos 30. O tal aspecto
artesanal encontra a realização sólida de uma mão especializada
para o cinema, em
Ganga Bruta.
Se
este filme de Humberto Mauro fica ao nível artístico de Limite
(1931) – “artístico” como uma expressão que parte da técnica para,
sabe-se lá, encontrar um sentido outro sobre algo –, os outros
quatro filmes possuem seus momentos, mas pelo menos dois deles
são de caligrafia garranchada: Alô Alô Carnaval e Bonequinha
de Seda. Sobre esses dois últimos, vale dizer que o mesmo
Edgar Brasil de Limite e Ganga Bruta esteve na operação
de câmera ou fotografia desses dois filmes. Alô Alô Carnaval
é o protótipo da chanchada que tomaria conta do cinema comercial
brasileiro a partir dos anos 40. Em 1936, com o som já mais que
estabelecido, a melhor ponte com o starsystem radiofônico
estaria no próprio som do cinema, ou seja, o cinema dando a imagem
das vozes do rádio. Belo desfile de gente da música (Mario Reis,
irmãs Pagãs, Aurora e Carmen Miranda, Francisco Alves, Almirante,
Lamartine Babo etc), mas não existe corpo, e sim fragmentos reunidos
(há uma única cena em que Chico Alves
canta e percebemos uma contigüidade entre o palco da casa de show
e a platéia). Interessante em algumas gags ligeiras, mas sobretudo
pela empreitada de Adhemar Gonzaga, na direção aqui, refazendo
em solo pátrio experiências de Hollywood.
Se
há em Bonequinha de Seda uma construção que mereça
nossa memória, ela está no movimento de câmera que acompanha a
heroína romântica do filme quando sobe a escada que a coloca moralmente
acima do antagonista babaca – e de como essa escada terá forte
papel na expressão dramática no desfecho da história. Mas estamos
num filme de estúdio em que as cenas também parecem reunidas,
não casadas, e cuja impressão é a de que cada tomada foi rodada
em espaço e tempo distantes entre si. Interessante para demover
qualquer idéia autorista, no caso de Edgar Brasil. Pode ser errado,
mas alguma régua nosso olho tem de utilizar para ver esses filmes,
e, em 1936, Michael Curtiz fazia A Carga da Brigada Ligeira;
Jean Renoir, Um Dia no Campo; Alfred Hitchcock, Sabotagem;
e Julien Duvivier já estava a rodar seu O Demônio da Argélia.
Pelo menos o de Renoir era um filme barato (“possível”, termo
valioso por aqui).
Sobre
o ótimo Mulher, o que salta aos olhos são a beleza
de Carmem Violenta e uma seqüência formidável e orgiástica. Sobre
a atriz, vai-se à câmera tarada de Humberto Mauro (semelhante
à de Ganga Bruta, que expõe seu movimento ocular
para as pernas agitadas de uma safadinha ou reproduz o olhar scanner
do protagonista, que vai literalmente dos pés ao pescoço da moça).
Neste filme de Octavio Gabus Mendes, fotografado por Mauro, a
atenção é sempre voltada à Carmem (também o nome da personagem),
e nesse caminho ao corpo e rosto, indesviavelmente se terá de
ir às lingeries, decotes, brincos, lençóis, camas etc.
O drama se estabelece junto aos dilemas morais da época, inclusive
simpático aos valores romanescos do século 19, mas o julgamento
fica à parte – o que passa Carmem, ao longo da história, que não
é brinquedo, ganha sua imagem na seqüência do clube de tênis,
quando a montagem cria um frenesi de conversas, fofocas, trocas
de olhares, maiôs, pernas femininas, olhares masculinos, que alude
a um grande bacanal. Carmem, corpo exposto desde o começo do filme,
meio flutuante em suas andanças perdidas no mundo, está à parte
isso – e aqui se estabelece uma moral interessante, porque tão
dúbia quanto favorável à moça, que era bem raramente discutida
na época. O filme, afinal, apesar de possuir um olhar bastante
masculino sobre a mulher, voraz em capturar as belíssimas geometrias
corporais de Carmem Violenta, parece quase “feminista” pelo modo
como apresenta a mulher de 1931, altiva na sua dura busca pelo
lugar seguro da vida.
Carinhoso
também é o modo como Lábios sem Beijos, de Humberto
Mauro, apresenta suas mulheres. Mas isso importa menos que as
evidências de mais outro filme coalhado de elementos de seu tempo.
Sob o ímpeto de mostrar um Brasil de natureza e identidade colossais,
todo o avanço romântico-dramático do filme tem o acompanhamento,
quase como um panô, da bela geografia carioca, do mar à serra
do Alto da Boa Vista. É um mineiro, Humberto Mauro, na metrópole,
Rio de Janeiro, mas o diretor, com sua irreverência, realizará
o desfecho numa situação exemplar: no interior, com boi chifrudo
invadindo o espaço e tumultuando jocosamente a lua-de-mel do casal.
Um filme com intenção cosmopolita e de “moral avant-garde” (o
longo plano do beijo, belíssimo e extremamente sexual, no que
alude à uma tomada física do homem sobre a mulher, e, bem sabemos,
línguas penetrando-se e tal) que carrega, ainda, em seus planos
e neste desfecho formidável de tão inusitado, pastelão e simbólico,
algo do Brasil arcaico, o Brasil em seu conturbado processo “civilizatório”.
* * *
Dessas cinco projeções do CineOP (a deste último
filme, aliás, cheia de pompa com sonorização in loco um
tanto livre e dispersante demais, além de um criminoso still
no momento do beijo, digressiva demais), algumas coisas são extraídas.
O tal luxo pretendido pela Cinédia, grosso modo, redundou em acabamentos
rústicos. Outros projetos da mesma produtora que procuraram outro
caminho para o que eu chamaria de “imagem cosmopolita”, que no
caso seria ainda algo a ver com uma influência vanguardista e
uma gramática mais livre e arrojada ao invés da ótima escrita
do cinema clássico, resultaram em obras mais instigantes, mais
escancaradas em seu hibridismo maluco, no encardido de seu momento
histórico. Com isso, enfeixando a proposta política da Mostra
de Cinema de Ouro Preto em militar pela preservação, recuperação
e atenção aos materiais produzidos por aqui desde sempre, a chance
de se assistir a cinco obras desiguais, entre o primoroso e o
tropeço, é uma maneira de se rever ou compreender concretamente
um momento histórico. No caso dos anos 30, os filmes, sem mostrar
a imagem literal de Getúlio Vargas, trazem para hoje a experiência
de seu governo, ou, além disso, do estado de coisas a ver com
os brasileiros daquele instante. São obras contaminadas pelo seu
momento, o da história do Brasil em largos passos de se alinhar
aos do alto, de realmente se inserir numa outra condição (e em
outro tempo, um novo tempo). Além disso, e é o que mais me interessa
desses filmes, sua existência garante, a eles e ao exercício crítico,
umas tantas revisões. O olhar de quem vê é o do seu tempo, e,
em 2010, algo mantém Ganga Bruta indispensável ao passo
que Bonequinha de Seda soa esdrúxulo – ou indispensável
de um outro e particular modo.
Julho de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|