in loco - 5o cineop
As Cartas Psicografadas
por Chico Xavier,
de Cristiana Grumbach (Brasil, 2010)
por Paulo Santos Lima
Olhar
com o devido “distanciamento afetivo”
Em outro texto
eu falo dos filmes autobiográficos, e este As Cartas Psicografadas
por Chico Xavier, forte longa de Cristiana Grumbach, bem poderia
estar entre eles. Mas essa inclusão seria resultante de uma constatação
aérea, entre o que o filme mostra e minha apreensão, tendo ainda
a imagem da diretora apresentando seu trabalho no Cine Vila Rica
acompanhada de seu marido e filhos – uma postura de mãe e de esposa,
mas, antes, de mulher. É essa mulher cineasta quem saiu em busca
de algo. “Um sentido da vida”, talvez, pelo que uma das entrevistadas
lhe pergunta em certo momento. Ou descobrir, descortinar algo,
algo bastante duro, aliás, que é a perda de uma mãe que enfrenta
a morte inesperada de um filho. Qual imagem dá e pode dar conta
disso? Na ficção, isso é mais fácil, e mais livre para cometer
canalhices visuais sem que muitos as percebam assim. Ou mesmo
na televisão, seja na teledramaturgia, seja bizarramente na cobertura
das tragédias individuais diárias que a mídia industrializa em
sua linha de montagem cínica e infernal.
O documentário de cinema também pode caminhar
por esses trilhos, mas aí existe o livre arbítrio para que o cineasta
não tripudie sobre seu objeto. Grumbach, como uma penca de cineastas
(documentaristas ou ficcionistas, tanto faz, porque ambos procuram
algo, buscam por uma imagem do mundo, anterior a ele ou de idealismo
junto à realização cinematográfica), procura algo. Para tal, vai
ao encontro das pessoas e às tais cartas do título. Seu filme
organiza-se em depoimentos das mães, às vezes acompanhadas de
seus maridos, relatando a perda, informando detalhes a ver com
essas perdas, nunca indo ao passado anterior à morte ou dando
conteúdos psicológicos de seus filhos – e, antes ou depois de
suas vozes, a respectiva carta psicografada é ouvida. São relatos
afetivos, doídos, cuja conclusão vai se construindo ao longo das
entrevistas: mesmo com o alento das cartas, com as quais essas
mães e pais aceitam melhor a perda, a dor e tristeza jamais somem.
É uma conclusão duríssima, e o que é levado em
conta, aqui, é justamente o processo pelo qual o filme avança
para o encontro de seu corpo, de sua imagem. Um processo estóico,
e o filme não entra no mérito da psicografia existir ou não, até
porque suas imagens são neutras, mantendo um mesmo registro para
captar as depoentes e seus relatos diversos. E, sobretudo, porque
a cineasta acredita naquilo que pode servir ao cinema – como as
imagens possíveis de coisas que ainda existem, como os vivos e
os objetos de uma sala, por exemplo, e as narrativas orais e lidas.
O que parece interessar mais é mesmo a busca por algo infilmável,
como a dor, a perda e a tristeza – ou seja, é capturar o vazio.
Vale lembrar Os Anjos Exterminadores, de Jean-Claude Brisseau,
quando este põe em discussão a impossibilidade de se filmar uma
invisibilidade (no caso, ali, o orgasmo feminino). Em
As Cartas..., Grumbach filma
o que vem dessas ausências: nem tanto a reação a essas ausências,
e mais quem fala sobre essas reações provocadas pelas ausências.
É um procedimento que gera uma complexidade, ainda que o filme
seja bastante direto em como registra seu assunto. As tomadas
mais alongadas de uma sala vazia, uma poltrona vazia, logo a seguir
preenchidas pela presença da mãe, são uma solução formidável,
pela essencialidade do visível, do tempo e espaço. O vazio só
transmite ausência se ele foi ou será preenchido, e as mães e
suas interioridades expressadas acabam por dar “visibilidade”
desse vácuo, fazerem, elas mesmas, a imagem de sua tristeza, e
não deixar com que seus corpos, faces e falas sirvam à dramaturgia
da máquina operada pelo outro.
Grumbach
procura algo, talvez alimentar sua curiosidade sobre como é uma
mãe se deparar com o avesso da linha temporal natural, que é a
juventude pegar o lugar deixado pelos idosos, talvez saber mais
sobre essas cartas sem se preocupar se a psicografia de Chico
Xavier existe ou não, mas sim como esses escritos alteram o estado
das mães e pais. Hoje é até comum o documentarista dar as caras
no seu filme, mas o que a diretora se permite, aqui, é algo bastante
mais sutil. É sua voz quem lê, em off, as cartas – e, mais
à frente, veremos a mesma pegando e lendo alguma delas, como uma
pesquisadora faria em sua determinada busca. Mas Grumbach também
corresponde às mães, pois, após o insucesso de uma delas em ler
a carta, cujo talhe de letra estava mais cifrado, é a cineasta
quem conseguirá transmitir seu conteúdo, tanto para a mãe quanto
para nós. Não estamos diante de uma jornalista da TV passando
algum conteúdo ao espectador, mas sim uma mulher – e é sempre
bom, neste filme, levarmos em conta que é uma mulher interagindo
com outras mulheres sobre algo a ver com a vida, com algo terrivelmente
prosaico, a morte (ainda que a mídia teime em espetacularizar
e dramatizá-la) – levando sua câmera sem deixar de, antes, pedir
licença. Esse cuidado está na própria organização do filme, que,
reiterando o que Cléber Eduardo disse após a sessão, é sobre o
luto. Sendo sobre o luto, a montagem e a forma não poderiam ser
extrovertidas, exibicionistas. Fazer malabarismos estilísticos
é coisa de quem tripudia sobre o material que lhe serve.
Assistir a As Cartas Psicografadas por Chico
Xavier pode ser uma experiência árdua em seus 107 min, porém
isso não deixa de ser bastante adequado: a morte só é bom acontecimento
quando vertida (e traída) em estética, em vermelho em vez de sangue,
em reprodução em vez de dado. É muito determinante o modo como
Cristiana Grumbach se aproxima dos seus objetos e avança com seu
filme. Ao ler uma carta, por exemplo, a cineasta não se coloca
sobre a respectiva mãe, mas sim ao seu lado, emprestando sua voz.
Uma troca justa, essa da voz pela imagem. Imagem que, antes da
cena, é parida por uma câmera que mantém o devido respeito espacial,
que é algo que poderia se chamar de “distanciamento afetivo”,
ou bons modos, ou, melhor, respeito. Esse respeito, efetivamente,
está nos tais planos de salas vazias, naquilo que transmite sobre
a ausência com o mínimo de manipulação (plano médio fixo enquadrando
um determinado espaço dentro do qual não ocorre ação humana).
É um filme que evidencia as limitações do cinema, de suas imagens,
quando, por exemplo, se depara com uma situação invisível que
só se torna presente na tela por algo que nós damos: o drama,
o plano anterior ou posterior, o sentido. Grumbach não faz do
documentário um espelho de carne de outrem para que ela encontre
o reflexo que procura – o que desafortunadamente é algo corrente
em boa parte da produção documental. A diretora, com sua câmera,
aproxima-se de um invisível a ver com os seres, nas suas sensações
de ausência, tristezas e lembranças... o que, de pronto, é o que
chamamos de vida.
Julho de 2010
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