in loco - 5o cineop
Imagem na rede
por Paulo Santos Lima
Bola remetendo à Terra ou ao
ventre materno... dispensam-se essas metáforas desgastadas para
ir ao que parece ser mais relevante sobre o futebol: é o esporte
no qual a mise-en-scène estabelece-se com mais potência,
graças ao largo espaço e número de atletas com o qual o jogo se
dá. Mise-en-scène que só se faz no plano-sequência quando
visto in loco, no estádio, pois, modo contrário, é a decupagem.
É como se, na TV, a narrativa do jogo se desenvolvesse através
da montagem, que muitas vezes deixa hiatos de clareza formidáveis.
Os planos longos são predominantes, evidentemente, e vale aqui
citar o comentário que o Cléber Eduardo fez em Ouro Preto, sobre os planos
estarem mais abertos nesta Copa, sem fechar em alguma jogada.
Outra pessoa, a quem me escapa o nome, disse na bacaníssima mesa
“Bola no Set, Cinema no Campo” que desafortunadamente as câmeras
têm atenção às jogadas ao gol, mas nunca aos dribles que rolam
no meio do campo ou em situação bastante anterior ao chute à rede,
sendo alguns deles fantásticos.
Mas aí vem a questão da mesa organizada pelo CineOP,
que lembrou que o mesmo ano que Adhemar Gonzaga deu o passo para
instalar uma produção cinematográfica mais perene neste país foi
também o da primeira Copa do Mundo: afinal, mesmo bastante coincidentes,
como rola a relação entre cinema e futebol? O crítico Inácio Araujo
fala sobre o futebol pressupor um certo descontrole da imagem
que é o oposto da TV. A espontaneidade do futebol tem mais a ver
com a representação documental, e na ficção fica estranho. Inácio
lembra que, nos filmes de esporte coletivo, o essencial se dá
fora do campo, o que não seria o caso do boxe, esporte individual
e a ver com elementos (gangsterismo, desgraça, vitória etc.) que
vão se depositar no corpo do lutador. Outra pessoa, na platéia,
fez uma pergunta pertinente: observar onde está o conflito, o
drama, e para quem olhar. A partir dessa pergunta, este redator,
que nada entende sobre futebol mas cujos olhos colam quando passam
por uma imagem de jogo, arrisca dizer que para o cinema de ficção
fica difícil encenar os feitos de um Maradona, Zico, Garrincha
ou Pelé, pois o espetáculo futebolístico estabelece-se no plano
sem corte. Como fazer de um ator um desses gênios do gramado?
Fiquemos, portanto, com os documentários, inclusive os que o CineOP
apresentou.
* * *
Fora de Campo, de Adirley Queirós (Brasil, DF, 2009)
Garrincha, Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade (Brasil,
1963)
Brasil Bom de Bola, de Carlos Niemeyer (Brasil, 1971)
O
plano final de Fora de Campo (filme na foto ao lado) só
não é mais forte que as imagens de Garrincha, Alegria do Povo.
Cléber Eduardo escreveu belo
texto sobre este documentário que registra a duríssima condição
dos jogadores da 2ª divisão, uma situação sempre posta no extracampo
dos interesses da mídia e as badalações dos escretes do primeiro
escalão. Na última imagem, vemos um dos personagens documentados
no média, o mais consciente deles, Maninho, em lágrimas poucas
mas significativas, após a derrota contra o Botafogo. Não é inválido
citar que a partida entre o time dele, Dom Pedro, e o carioca
Botafogo ganha uma narratividade assombrosa, num esquema de tensão
e desolação que aterrissa no tal último plano do filme, que é
mesmo uma dessas imagens-síntese inesquecíveis.
Garrincha, Alegria do Povo
foi exibido numa belíssima cópia restaurada, com a filha de Joaquim
Pedro de Andrade contando que mantiveram as marcas da idade de
alguns planos, aqueles de outros jogos e Copas, que já eram bastante
marcados quando o diretor os pegou emprestados, em 1963. A comparação com o filme
de Queirós é bacana, pois ambos trabalham com um universo a ver
com o mito, mas sem ficar nele: Fora de Campo desmitica,
Garrincha utiliza-se da mitificação para alcançar um assunto
além de Garrincha, futebol e espetáculo (além mito): o país. O
filme de Joaquim Pedro faz algo ainda mais engenhoso. Avista o
craque Mané Garrincha
naquilo que era de sua inerência, algo muito a ver com o arquétipo
do brasileiro comum: um homem do povo, confundido entre os tantos
barbados, calvos, altos, baixos, banguelas, galãs e esfarrapados
que enchiam as arquibancadas. É este Garrincha, que preferia a
pelada e a cervejinha com os amigos aos políticos e paetês da
fama, que interessa ao filme. Um Garrincha portador de mitos,
mas somente se lido por olhos intencionados, os do poder. Mas
o diretor, ainda que trabalhe seu filme na corda bamba da chave
mítica, quer, na verdade, situar Garrincha naquele que seria seu
mais querido lugar: o espaço da vida, do povo e do prosaico. O
filme apresenta Garrincha como indivíduo, conecta-o a outros comuns
brasileiros (rostos, e que só o cinema brasileiro da virada dos
anos 1950-60, o Cinema Novo no caso, saberia bem filmar), para
introduzir uma idéia que tem a ver, também, com o ideário do CN,
sobre o valor do brasileiro – ou, melhor dizendo, do povo, do
povo brasileiro.
Simbolicamente, o que Garrincha faz genialmente
no campo seria idem ao que qualquer outro faria. Num desfile de
seres em miscigenação espacial, algo possível nos domínios das
arquibancadas e de um mesmo foco em comum, o estádio ganha a natureza
do mundo e, antes, da vida: em cenas vemos as massas partindo
ao término da partida para, logo depois, em outro jogo, novamente
preencher de vida os vazios concretos das arquibancas. Algo
possível no cinema, as tomadas aéreas que avistam o Maracanã não
deixam de fazer de seu colosso algo como o coração – um coração
que bombeia sangue, o público que entra e sai de seu espaço. O
Maracanã, belo e arredondado da tomada plongée das nuvens,
também é o mundo, o planeta Terra em movimento perpétuo, entra
e sai de vidas, histórias e dramas. Garrincha funde-se ao povo,
ao gramado, ao estádio, à própria imagem do filme. A obra faz
Garrincha ceder sua individualidade, sua persona, para todo um
projeto político renovador, o de reencontrar a mais verdadeira
essência do povo, que sempre esteve à margem. Uma imagem, a de
Garrincha, que não representa algo que não ele, mas sim remete,
por semelhança, por força da montagem cinematográfica, costura
de planos e escolhas que fazem o jogador ser absorvido e penetrar
invisível nas outras imagens do filme.
Por isso que talvez nem seja tão importante falar
do bacaníssimo Brasil Bom de Bola, que Carlos Niemeyer,
o homem por trás do Canal 100, rodou na onda do tricampeonato
brasileiro na Copa de 70: Garrincha, Alegria do Povo é
o melhor filme exibido nesta 5ª CineOP e o que, ironicamente,
abarca muitas das melhores intenções pretendidas pelo idealista
Adhemar Gonzaga. É um filme possível portentoso, de primeiríssima
qualidade técnica e estética, e completamente dentro das condições
materiais nacionais – ou seja, é um filme do Brasil, feito e que
fala muito bem sobre o país, na dança de imagens que mostram um
super-homem no campo e seus iguais na platéia. Se utilizável aos
interesses do poder, isso não é problema do filme: as imagens
estão por aí, livres em andanças pelos olhos no mundo, e Joaquim
Pedro de Andrade fez uma obra (sua melhor, junto com O Padre
e a Moça) vinculada ao renovador projeto estético-político
dos anos 60. De quebra, até pela ótima restauração, é mais outro
exemplo que endossa os propósitos da Mostra de Cinema de Ouro
Preto em sediar a formação de um corpo que empreenda a preservação
de nossa memória audiovisual. Imaginemo-nos privados de um filme
como Garrincha, Alegria do Povo.
Julho de 2010
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