in loco - cine pe 2009 Dia
2: Que porra é essa, Tião? por Cléber
Eduardo
Anotações
sobre Muro: platéia, sapatos, cinema. Corpos se movem, um corpo com a cabeça
enterrada no chão, pernas se mexem. Esqueça a tradicional relação de encadeamento
entre os planos. Esqueça a tão estudada dinâmica do choque de Eisenstein. Efeito
cinético. Formas em mobilidade, em mobilização, em desmobilização de códigos.
Esqueça tudo. Alguém compara com O Cão Andaluz, de Luis Buñuel e Salvador
Dalí. Esqueça. A tela está toda ocupada pelas imagens, pelo som, pelo silêncio,
pela expansão da visualidade. Cabeça na areia, vestido de noiva, brincadeira de
crianças, um aparente ritual, adulto e infantil, em dois tempos ou em um só tempo,
que, como convém lembrar, não é duração em continuidade e sim acúmulos paralelos,
com passado e presente conectados. Uma imagem não chama a outra, mas uma imagem
se relaciona com a outra. Esqueça tudo. Ou o espectador abre-se para o transe
ritualístico ou vai procurar sentido onde o sentido não está. Imagens de astronauta
e uma retomada aos evangelhos (primeira pedra), o tal futuro e presente da humanidade,
em conexão com futuro e presente daqueles corpos expandidos por todos os fluxos,
organizado em blocos que, se não somam A com B, também não implodem a noção de
“circuito visual”. Em curto, mas não sem controle sobre as imagens, como nos mostra
o plano final, congelado – um dos mais impactantes, para não dizer o mais, desse
Cine PE, e talvez para além dele.
Muro
é um planeta à parte. Estamos na lua sem capacete, sem macacão, sem foguete de
ida ou volta, sem gravidade. Invenção de um mundo, de um esquema sem esquematismo,
de experimentação sem vanguardismo, de formas em mutação sem formalismo. Abra
os olhos, abra a mente, abra a percepção. Ou saia. Não é para qualquer um, mas
para quem deseja o único, que se afunda a fundo, que se funde consigo mesmo, que
se eleva em relação a si próprio sem se abandonar. Muro é retro-alimentação
sem alimentação retro, jogo de imagens sem trocadilhos visuais (ao contrário do
texto em andamento). Cineácido lisérgico. A roda não é redonda, portanto, é preciso
recomeçar, ou romper para zerar. Uma voz fala em falta de lugar e de possibilidade
de respiração. A asfixia dos sem vagas. Palavra-imagem. O mundo não é o mundo
ali, mas está lá na tela. Não se trata do melhor ou maior curta do ano, dos anos
2000 ou somente de um festival em desenvolvimento. Trata-se de uma outra coisa.
Uma coisa única. Estratosfera. Há um Tião no meio do cinema, há um cinema no meio
de Tião. Fundação, fundar ação, fundamental, fundar a mente. Não sejamos tão racionalistas.
Seria encurtar a extensão do salto. Em um filme de corpos enterrados, Muro,
esse sinônimo de limites e apartes, quebra todas as delimitações, lógicas e sensoriais.
Nem todos o sentem com essa adesão. Fazer o quê? Filmes únicos não são universais.
Somente os ditadores, nos lembra Godard, comunicam-se com multidões. Resistências
são no singular, não no plural – algo aliás ignorado por Costa-Gavras, o homenageado
do Cine PE. Resistências têm seu preço, seu custo, a incompreensão dos sedentos
por satisfação, dos famintos por compreensão, dos submissos às convenções, dos
escravos das formatações.
Muro
é o fim da crítica caso a crítica não seja humilde suficiente para decretar sua
derrota e seu limite. Não o limite da percepção, mas das palavras, da linguagem,
dos parágrafos. Há uma grande arte ali e, se não sabemos chegar a ela pelo caminho
intelectual, é porque ela explode em nós. Jean Douchet falava disso em seu artigo
“A Arte de Amar”. Que porra é essa, Tião? Nem responda. É outra coisa. Que coisa?
Quem saberá? A única crítica possível a Muro teria de ser feita por mímica.
Qualquer outra será enterrada com as pernas para o ar. O ar que falta. E que na
falta – sejamos minimamente claros nessa confusão de sentimentos – amplia o oxigênio.
Filmografia longa a Tião. Abril de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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