Cisne Negro (Black Swan),
de Darren Aronofsky (EUA, 2010)
por Fabian Cantieri
Lago
das ilusões
Há tempos Darren Aronofksy tinha em mente um filme sobre
um romance entre um lutador de wrestling e uma bailarina.
O filme se dividiu em dois, como todos sabem, mas no fundo a tentativa
de Cisne Negro se mostrou como um esforço para
repetir a dose de O Lutador. Tirando pequenas diferenças
narrativas (decadência de Randy "The Ram" e ascendência
de Nina Sayers), além das óbvias contextualizações
espaciais (mundo da luta X mundo do ballet), os dois filmes revelam
filosofias que se tangenciam, mas com rusgas conflitantes em sua
essência. Aqui, mais do que sinalizar as mesmas idéias
de um autor que perpassam sua filmografia (nesse caso, coerente
porém irregular), deve-se voltar a uma instância
mais básica - o trato para com suas personagens. Evite
pensar na discussão contemporânea de corpos no espaço
deambulando a esmo sem calço nem compasso. Pense num corpo,
de fato. Fisicamente sofrendo. Seja por uma dor de cabeça
levada à enésima potência (Pi), seja
por amputação de um braço (um dos casos de
Réquiem por um Sonho), um tumor (A Fonte da
Vida), ou o peso da idade carregado de lutas (sejam elas
dentro ou fora do ringue em O Lutador) - o cinema de
Aronofsky é permeado por essas agruras físicas;
dores lancinantes que se tornam obstáculos para o seguir
em frente de suas personagens.
Seu
cinema é rodeado também por alucinações
que transfiguram a realidade que contorna suas personagens. O
Lutador é sua exceção e, nesse sentido,
seu filme mais realista. Não por isso deveríamos
acreditar mais em Mickey Rourke do que em Natalie Portman. Os
problemas de Cisne Negro são outros. Não
estão na chave da representação, mas daí
surgem os primeiros erros. A certa altura do filme, a escalação
de Natalie Portman para o papel soa como um pacto entre obra e
espectador sem o aval de quem assiste. A personagem, com corpão
de quase trinta, recorrentemente vai sendo tratada - pela mãe,
pelo chefe da companhia e até por sua "nova amiga"
- como uma adolescente; logo, se enxerga e age como tal. É
quase o caso típico de casting de Malhação.
Ela ser uma adolescente, que fique claro, não seria um
problema a partir do momento que o filme assumisse isso para si
e lidasse com os elementos desse mundo a partir dessa perspectiva.
Quando percebemos que a instauração do conflito
se dá em tons quase de tragédia shakespeariana,
com misbehaviour inspirado em Hamlet só que mais
infantil que Peter Pan, em superfície tão rasa e
deslocada da realidade emulada, aí sim, isso vira um problemão.
Ou seja, ter problemas para encarar o crescimento é um
honesto argumento para o cinema, assim como foi para o teatro
há séculos, e seria ainda mais honesto caso fosse
mais um filme adolescente americano. Como não se trata
do que poderia ser e sim do que é, Nina Sayers parece simplesmente
uma mulher-menina conivente com a mãe que sempre a tratou
como uma criança delicada, ingênua com a amiga, enfrentando
os típicos problemas adolescentes da primeira droga, primeiras
saídas para noite, e submissa com o diretor artístico
que a controla como quer.
Todas
essas atitudes poderiam ser defendidas como erros ou fraquezas
que moldam a idiossincrasia de uma pessoa/personagem. É
nessa hora que vale o olhar crítico não como verdade,
mas como visão das coisas: ainda fico com os erros brutais
de um lutador sem perspectivas, mesmo que às vezes se auto-sabotando,
pois ele ao menos tem a coragem de abrir o peito e se jogar na
lona. Nina, na única vez que se joga, é para a morte.
E é nesse "se assumir para o mundo" que encontramos
a essencial diferença entre os dois filmes. Para Aronofsky,
o sublime, fora da arte, só existe na morte, e ela nem
sempre é um mau caminho a se escolher pois, seguindo a
lógica de seus últimos filmes, a morte pode servir
como ato de criação (nada mais é do que a
própria "fonte da vida"). Mas enquanto é
possível, ao menos, respeitar, mesmo que se discorde, da
decisão final de Randy "The Ram" em O Lutador,
não há perfeição convincente o suficiente
(tanto filosoficamente quanto em termos estéticos - a mise
en scène da dança final chega mais perto da
tontura que da catarse) para argumentar os passos de Nina rumo
à morte.
E é nesse passo retrógrado de um filme ao outro
que Darren Aronofski parece se conectar ao êmbolo de um
certo tipo de cinema contemporâneo: o que eleva a arte e
o cinema num altar fora da igreja da vida. O que configura cada
pequeno problema como uma descida quase sem retorno ao inferno
- uma unha quebrada como desencadeador ou reflexo de alucinações
esquizofrênicas e mutações metafóricas
- pois aparentemente a nova sensibilidade artística que
vem surgindo não dá conta da pressão natural
do mundo. Para tantas porradas de verdade, o homem parece talvez
precisar virar cisne e se voltar para a ilusão de seu próprio
lago.
Março de 2011
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