Cisne Negro (Black Swan),
de Darren Aronofsky (EUA, 2010)

por Thiago Britto

Cisne NegroCalma, coração

Obcecados, vítimas, os protagonistas de Aronofsky não cessam de imolar-se continuamente até o fim de suas existências. Em um mundo frio, austero e claustrofóbico até dizer chega, estes personagens possuem apenas uma saída grandiosa: o cúmulo de sua força física; abdicar-se completamente de sua própria existência e achar na auto-destruição a possibilidade de sua própria redenção - sempre, e unicamente, perante a si mesmos. O filme termina como um testamento, como uma necessidade de auto-afirmação diante da platéia, mas não diante do mundo, que é sempre difícil demais, pesado demais. Talvez em algum momento devêssemos parar e tentar compreender o que é este estado atual de melancolia, este sentimento que parece espraiar por tantas e tantas obras, onde um ar tanto de cinismo quanto de franco desespero nada mais tentam do que achar seu espaço e lugar ao sol, onde a obra de arte se converte necessariamente em um espaço de auto-afirmação ou declaração de intenções.

Pois os cacoetes de Cisne Negro não se estendem apenas pela temática, mas está também no uso obcecado de uma câmera que persegue e procura identificar-se complacente com o personagem em voga, onde a idéia de cena se transforma na prerrogativa da captação de uma determinada força, guiada pelo contorcionismo de seus atores. A câmera na mão é, ao mesmo tempo, um aliado narrativo e uma capitulação, um estratagema que permite uma aproximação ao estado psicológico da personagem de Nina Sayers, ao mesmo tempo em que exime a própria narrativa de exigir de seus elementos uma busca real de embate e questionamento - elevando continuamente seu protagonista a um estado de auto-comiseração, desespero e vitimização.  Não seria exagero considerar que, de fato, nada nunca acontece em Cisne Negro a não ser no mundo idílico e fechado de Nina; nunca lhe é pedido que seja, mas que sonhe, alucine, e se perca no turbilhão de suas auto-projeções.

Cisne NegroO ato de se olhar no espelho talvez nunca tenha sido tão subjugado quanto no filme de Aronofsky. O dualismo que propulsiona toda a obra é estendido também ao próprio espelho, onde a idéia narcísica de auto-admiração e perfeccionismo é aliada a uma imagem fugidia de um outro oculto e sombrio, mas que termina sendo apenas um outro lado de uma mesma moeda. Em nenhum momento é colocada uma perspectiva que pudesse, minimamente, complexificar sua estrutura ou mesmo provocar uma reconfiguração de um ponto de vista: o filme, como sua personagem, é sempre o mesmo, fechado e embalado. A vida, o real, algo que perturbe consideravelmente a historinha bem contata é prontamente rechaçado, e nos encontramos diante de um filme que se engendra rapidamente a partir de simples estratégias dualísticas, ou jogos de imagens que reformulam e retificam as mesmas questões. E, no fundo da memória, a imagem de Orson Welles, como Kane, diante do espelho, onde o reflexo se transmuta em uma refração perpétua de imagens de vários Kanes, nos acode e acorda.
 
Pois, mesmo se considerássemos e validássemos que uma certa vontade de se manter indiscriminadamente fiel ao drama pessoal da personagem, e desejássemos, com muita paciência, aquiescer à idéia de que o diretor propõe um filme que descartasse uma instância moral superior a seus percalços, ainda assim terminaríamos com um sentimento claro de termos sido ludibriados. Afinal, o que mais deseja Aronofsky senão encontrar uma sensação ínfima de libertação? E lá estava Randy, "The Ram", capitulando da necessidade de se reencontrar com a vida que havia abandonado, largando filha, romances e driblando as problemáticas habituais que estão implicadas no ato de se viver em meio ao mundo, em prol de uma sensação falsa de adequação, percebendo em seu ofício e seu público sua verdadeira casa e finalidade de vida, procurando no auto-sacrifício a saída de seus problemas, senão a saída da própria vida. 

Cisne NegroAssim, Aronofsky jamais pode ser percebido como um cineasta do corpo, posto que este se surpreende apenas como uma via necessária, um estágio a ser combatido e arruinado na perseverança de que um tipo de sublimação seja equacionada. Cisne Negro é este perpétuo embate que nunca consegue modificar suas prerrogativas, um jogo em que seu início prescreve seu próprio fim. Esta tautologia já foi percebida nas obras anteriores do diretor, em que qualquer instância de mero prazer e felicidade é sempre acompanhado por um sistema de castração e solidão injustificados; onde a droga é sempre uma implicação de vício e perdição, nunca possibilidade de experiência; ou a velhice o desesperado fechamento de um ciclo, e não abertura à maturidade ou coisa que o valha. Pois o balé, a droga, a luta, são apenas elementos contingentes, nunca preocupações centrais. O que importa é esta dor, este cruciar de corpos e desilusões, a câmera em pânico e o estilhaçar do plano. Depois de tantos rodopios, de tanta montagem acelerada e cortes bruscos, a imagem que resta é sempre nula: é fade para branco, fade para preto. Seus filmes não podem fixar seus elementos porque eles restam longe, suas estratégias são simplesmente insuficientes para isso (ou talvez não seja uma questão de estratégia); só podem terminar em fade, em completo abstrato, em nada.

Março de 2011

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