ensaios - retrospectiva 2008
O cinema é mulher por
Eduardo Valente Por
uma curiosa coincidência, Falsa Loura e Cleópatra nasceram para
o espectador brasileiro com dias de diferença no mesmo Festival de Brasília de
2007. No entanto, esta que poderia ser uma feliz circunstância resultou num problema,
sempre presente nas competições de festivais que trabalham com um número pequeno
de filmes: quando o júri optou por premiar o filme de Julio Bressane como o melhor
do evento, e ainda dar a Alessandra Negrini o prêmio de melhor atriz (numa derrota
particularmente dolorida para o filme de Carlos Reichenbach), criou-se uma certa
antipatia entre admiradores de um ou outro filme. Assim, não deixa de ser curioso
pensar que talvez o prêmio organizado pela Academia Brasileira de Cinema neste
começo de 2009 venha reconciliar a memória dos dois filmes, ao ignorar completamente
seus diretores, atrizes, diretores de arte, fotógrafos e músicos (para ficarmos
nos mais óbvios destaques dos filmes), lembrando que, neste prêmio que faz todo
jus ao que de pior a palavra “acadêmico” possui, não há lugar para os dois mais
fortes e desafiadores filmes brasileiros lançados ano passado. Numa era cada vez
mais marcada pelo domínio do middle brow (expressão algo equivalente ao
meio termo, ao senso comum, ao medíocre), não deixa de ser sintomática esta decisão
de ignorar os dois cineastas que, historicamente, mais apreciam lidar com as fronteiras
entre o popular e o erudito, mostrando através de suas obras que entre os dois
extremos da cultura existem mais pontes possíveis do que as fissuras que prefere
destacar a dita indústria cultural.
Não é por acaso
que hoje estes dois cineastas que, muito a contragosto deles mesmos, têm suas
origens unidas nos passos iniciais de um chamado cinema marginal brasileiro, encontram-se
de fato marginalizados. No caso de Reichenbach, que já teve filmes com mais de
um milhão de espectadores nos tempos em que trabalhou junto a produtores da Boca
do Lixo, simplesmente não houve encontro possível do seu cinema com o gosto do
atual público brasileiros das salas, formado eminentemente pelas classes altas,
educado pelo cinemão hollywoodiano de um lado e do outro por um circuitinho “de
arte” altamente conservador. Já Bressane, se deixou de lado bem mais cedo os sucessos
de público (nos tempos de Matou a Família e Foi ao Cinema, para ser mais
exato), curiosamente também não recebe no Brasil o reconhecimento recente que
recebeu lá fora (Filme de Amor passou em Cannes, depois ele teve retrospectiva
no Festival de Turim, e Cleópatra exibido em Veneza numa seção dedicada
aos “mestres” do cinema). Independente da ocasional premiação em lugares como
Brasília, continua sendo tratado com boa dose de ironia por seu cinema único e
idiossincrático.
Em meio a todas essas circunstâncias (começo próximo
na historiografia do cinema brasileiro, desencontro com o público
e mesmo com a intelligentzia mais oficial, lançamento no
mesmo festival), o mais interessante é que há de fato pontos muito
fortes de contato entre os dois filmes dos cineastas exibidos
em circuito no ano passado (Bressane já lançou um outro trabalho,
A Erva do Rato, exibido no Festival do Rio e em Veneza,
mas ainda inédito no circuito; já Reichenbach declarou seu desencanto
com o modelo de produção/exibição vigente no Brasil e afirmou
que vai se dedicar agora a filmes de baixíssimo orçamento sem
projeto de comunicação com um público que, alega ele, já não mais
existe). Não seria o menor destes pontos de contato aquele anunciado
já no nome dos dois trabalhos: Cleópatra e Falsa Loura,
como indicam seus títulos, são filmes que, em grande parte, dedicam-se
frontalmente a suas personagens principais femininas. E embora
Cleópatra, a rainha do Egito, e Silmara, a operária do ABC, não
pudessem estar mais distantes na sua origem, para os olhos e câmeras
de Bressane e Reichenbach elas ocupam posições bastante parecidas.
Mulher,
centro do universoNão
por acaso, em determinado momento os dois filmes realizam uma operação cinematográfica
bastante parecida em que, através de fusões no caso de Reichenbach e do posicionamento
de câmera no de Bressane, suas personagens acabam sendo aproximadas da imagem
do mar que bate forte em pedras. De fato, para os dois filmes e como encarnadas
por suas respectivas atrizes, Cleópatra e Silmara são verdadeiras forças da natureza.
Estamos falando aqui de estrelas dotadas de uma verdadeira potência gravitacional,
pois em torno das duas orbitam não só todos os outros personagens dos filmes,
como (e talvez principalmente) a câmera e, portanto, o olhar do espectador. Tudo
que aparece em cena nos filmes está lá por conta de sua relação com Cleópatra
e Silmara, e nesse sentido não deixa de ser curioso pensar os filmes dentro de
uma relação com os trabalhos mais próximos deles nas carreiras dos cineastas.
Do
lado de Reichenbach, mal é preciso lembrar que Falsa Loura
é uma espécie de segunda parte absolutamente independente de Garotas
do ABC, filme lançado pelo diretor em 2005 e que já se centrava
no ambiente das operárias de fábricas da região paulista. De fato,
os filmes seriam parte de um projeto mais ambicioso em cinco partes,
mas que parece que se encerrará mesmo por aqui. Se pode-se dizer
que, desde suas origens (não custa lembrar que o primeiro longa
do cineasta atende pelo nome de Lilian M.), Reichenbach
tem dedicado em inúmeros de seus filmes um olhar mais do que atento
para a figura da mulher, é nestes dois filmes que ele afirma de
vez esta opção de maneira radical (assim como, ainda que de maneira
distinta, no filme que realizou quase simultaneamente a Garotas
do ABC, Bens Confiscados). No caso especifico de Falsa
Loura, o diretor tenta entrar no imaginário de sua personagem
principal, encenando não só o seu cotidiano, mas principalmente
dando espaço para as fantasias de sua personagem (não custa lembrar
uma das cenas mais poéticas – e ousadas – do filme, em que a tela
do cinema se transforma repentinamente numa mistura de sonho com
imagem de videokê).
Já Bressane,
depois de uma fase voltada para diálogos diretos com ícones importantes da cultura
nacional e internacional, tem Cleópatra um pouco como o ponto central de
um mergulho nos impulsos sexuais humanos em suas diferentes formas. Não custa
lembrar que os três filmes têm em comum planos frontais de closes em um sexo feminino,
ocupando a enormidade das telas dos cinemas. Mas se em Filme de Amor havia
um triângulo em cena (um homem, duas mulheres) tentando explorar limites de sexualidade
e sensualidade entre si e com a câmera/espectador, Cleópatra forma de maneira
bem forte um díptico com o posterior A Erva do Rato: nos dois, a presença
magnética de Alessandra Negrini como a mulher que desafia e enlouquece os homens
em torno dela. Nos dois casos, a partir do sexo (mas não só) estabelecem-se radicais
jogos de poder – ainda que em arenas bastante distintas: na da grande política
do Império Romano, ou enclausurado entre as paredes de uma casa. Curiosamente,
não há tanta diferença assim entre reis e plebeus, como logo perceberemos. Se
tanto em Cleópatra quanto em Falsa Loura as mulheres são o centro
nervoso, o olhar para elas lançados pelos diretores não são simplificados por
uma adoração fetichista nem por um temor do macho assustado. Se ambas surgem em
na tela como estas figuras magnéticas que atraem e repelem constantemente os personagens,
elas têm direito tanto a momentos de poder absoluto como de fragilidade total.
Do lado de Silmara, além de conseguir de fato consumar suas relações com os seus
dois objetos de desejo, ela conta com toda a admiração do grupo de amigas que
gravita em torno dela (são lindas as cenas no refeitório em que ela as “enfeitiça”
com relatos bastante
fantasiosos de suas conquistas sexuais). No entanto, de ambas as relações com
os homens-objetos, Silmara sai machucada (uma “contratada avulsa”, ela se descobre
depois do aparente idílio), sentindo ainda mais solidão pela necessidade de manter
a imagem que tem (menos por vaidade, talvez, que por necessidade recíproca de
crença nesta imagem que ela e as amigas têm).
Cleópatra também vive duas
histórias de amor que terminam tragicamente: depois de exercer sobre César todo
o domínio de sua sexualidade e cultura fêmeas, que desconcertam um império masculino
(fascinante notar como Bressane enquadra e encena os romanos como estátuas no
começo, apenas para derruba-los junto com César no encontro com Cleópatra), ela
sofre a perda do imperador assassinado. Em seguida, na relação com Marco Antônio
as coisas se tornam ainda mais trágicas, pois nele a perda dos sentidos não atinge
só o romano, mas também a rainha (“sou uma mulher comum”, diz ela), levando, ao
final, à morte de ambos. Sensualidade de cinema Se
as presenças de Cleópatra e Silmara são o centros nervosos dos dois filmes, impondo-se
por uma capacidade de sedução que ultrapassa em muito a simples questão da beleza
física, tanto Cleópatra quanto Falsa Loura só se afirmam como projetos
de cinema plenamente realizados porque conseguem, igualmente, travar com o espectador
uma relação de igual sensualidade. Ambos estão longe de serem filmes que prendam
por esta ou aquela capacidade de contar uma história (embora em nenhum deles esta
dimensão esteja desprezada), mas principalmente por conseguirem construir-se como
objetos cinematográficos onde a soma das partes vai, pouco a pouco, sugando o
espectador para dentro de seus jogos. Em Falsa Loura,
os primeiros planos já são reveladores, na medida em que Silmara dança com a amiga
num plano acompanhando num suave travelling que baila junto com elas, numa
ida e vinda que eventualmente perde de vista as personagens para reencontrá-las
mais adiante. Como se fosse pouco o efeito sensorial deste plano, Reichenbach
ainda usa da fusão para combinar este plano com uma panorâmica sobre a paisagem
de um bairro popular paulista. A fusão entre essas duas imagens não tem nenhuma
função efetivamente narrativa nem metafórica (não se apreende nada de racional
ali para além do fato de que Silmara pertence de alguma maneira àquela paisagem),
apenas permite que penetremos no mundo de Falsa Loura seduzidos tanto por
Silmara/Rosane Mulholland como pela música de Nelson Ayres e pelo balanço da câmera. Câmera
que, aliás, é um capítulo à parte, porque Falsa Loura marca o ápice da
relação de Reichenbach com Jacob Solitrenick, numa parceria que já vinha dos dois
filmes anteriores do diretor, e amadurece uma linguagem elegante e fluida que
ambos desenvolveram nos três filmes, marcados justamente por travellings
no geral discretos, mas que sempre dão o tom dos filmes. Solitrenick trabalha
aqui no filme com uma iluminação que permite que mesmo o ambiente da fábrica possua
uma beleza que nunca se torna apenas plástica, e sim empresta uma dignidade inesperada
aos ambientes por onde circulam as personagens (como se dissesse que a vida delas
também merece uma luz bem localizada, os tons devidamente marcados e enquadrados
com suavidade). Nos momentos em que o filme “voa”, a câmera e a luz se sentem
ainda mais à vontade para ir junto, como é o caso do drink verde que espalha sua
luz pelo rosto de Silmara ou principalmente na seqüência da fazenda, já quase
no final. Esta
seqüência, aliás, é um assombro em si mesma, pela capacidade que Reichenbach demonstra
de abraçar o universo “brega” que povoa os sonhos de sua personagem sem perder
em nenhum segundo a sua elegância. Ali temos talvez o grande momento de trabalho
coletivo do filme, entre as presenças de Mulholland e Mauricio Mattar, a câmera
de Solitrenick, a música de Nelson Ayres e, não menos destacada, a montagem de
Cristina Amaral que trabalha tanto com alguns cortes abruptos muito bem estudados
como com algumas microfusões entre planos (algo constante no filme, aliás), que
criam uma sensação de narrativa quase mágica, que fecha com precisão este pequeno
conto sobre uma mulher que sonha muito, deseja mais ainda, mas que não encontra
nada fácil. Se no filme de Reichenbach o diálogo de igual
para o igual com o brega, sem nenhum olhar de cima para baixo, acabou criando
para uma parte do público um distanciamento esnobe, no caso do filme de Bressane
o grande choque vem da sua mistura de uma teatralidade absolutamente assumida
com uma total ausência de pudores em ir às últimas conseqüências no processo por
que passam os personagens. Em Cleópatra, o homem está tão perto do sublime
(são rainhas, reis, imperadores, “deuses na Terra”) quando do mais animalesco,
pois nunca deixam de ser feitos de carne, de pulsões. O patético está logo ali
na esquina, seja ele uma dança-gestual em que Cleópatra e Marco Antônio atravessam
a tela grudados pela cintura numa pose de kamasutra animalesco, seja o ataque
epilético de César que apresenta para Cleópatra uma fragilidade que a fascina
naquele homem todo-poderoso. Bressane
encara ambas as características (a teatralidade e o abraço ao exagero do grotesco)
com uma frontalidade impressionante, amplificada pela fotografia em um magnífico
scope de Walter Carvalho que, ao mesmo tempo que amplia uma idéia de palco
para o que assistimos, também pinta com o uso das luzes coloridas uma série de
painéis em conjunto com uma direção de arte de Moa Batsow que consegue ser exuberante
ao mesmo tempo em que é simples. No trabalho conjunto destes dois elementos, o
espectador é convidado a partilhar de um tal efeito estético que Cleópatra
acaba ganhando a força de um mantra, no que colabora muito o trabalho de declamação
e de prosódia dos atores, que vai criando uma estranheza que retira o português
de um lugar de conforto sonoro para o espectador, ampliando a sensação de se estar
olhando, de fato, para um outro mundo nunca visto antes. Bressane completa a operação
de deslocamento com a trilha sonora que combina ópera, música clássica e sambas
nas vozes de Dalva de Oliveira e Noel Rosa, cujo efeito de aproximação daquilo
que era tão distante cria mais um curto-circuito perceptivo. Ao
fim e ao cabo reside aí toda a força de ambos os filmes: como em quase nenhum
outro filme brasileiro neste ano (exceção possível ao filme de Mojica), tanto
em Falsa Loura como em Cleópatra são propostas entradas em mundos
únicos, cujas regras de funcionamento só valem para cada um deles, naquela duração
– e que seus realizadores, neste momento de maturidade em sua carreira, dominam
à perfeição. Ao espectador caberá comprar estes mundos de olhos e coração aberto,
ou recusá-los de saída. Que a maioria opte pela segunda opção, seja nas bilheterias
ou nas fileiras da Academia Brasileira de Cinema, só será um azar para eles mesmos,
porque o fascínio e o prazer são o que se oferece em troca para quem se dispuser
ao contato com estes filmes-mulher. Abril
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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