in loco - cobertura do Festival do Rio

Conexão Hong Kong
por Eduardo Valente

Os Infiltrados (The Departed), de Martin Scorsese (EUA, 2006) - Panorama
Exiled (Fong Juk), de Johnnie To (Hong Kong, 2006) - Panorama

São realmente curiosas as coincidências que um festival de cinema nos proporciona. Já havia sido uma autêntica surpresa a programação de Os Infiltrados pelo Festival do Rio, porque é pouco comum as majors cederem seus “grandes filmes” do ano para exibições antecipadas. Depois, surgiu (como que “de brinde”) um filme que nunca tinha sido incluído na lista original dos filmes do Festival, e que acabou passando quase escondido na mini-sala do Estação Botafogo 2, mesmo sendo um dos grandes filmes (em todos os sentidos) do Festival: Exiled, de Johnnie To (foto acima).

Ora, que o novo filme de Scorsese (foto ao lado) é a refilmagem de um grande sucesso do cinema de gênero de Hong Kong (Infernal Affairs, que já frutificou em continuações, prequels, paródias, etc), não é segredo algum (com direito até a cena-homenagem com vilões chineses). Mas, talvez ainda seja pouco conhecido de alguns (a julgar pelo pouco interesse de público por esta pérola de última hora) o status de To como o grande autor surgido desta cinematografia asiática nos últimos anos, participando com freqüência das seleções oficiais de festivais como Cannes e Veneza (sendo que neste ano, teve a proeza de participar dos dois). Pois a coincidência da programação destes dois filmes em dias consecutivos no Festival permitiu ver um sob a luz do outro, num diálogo mais do que enriquecedor – onde se o filme de To parece um pouco mais preciso, talvez justamente pela sua familiaridade com o universo tratado, ainda assim ambos são experiências absolutamente fascinantes.

Scorsese tem três características que tornam sua conexão com a matriz de Hong Kong quase natural: 1) sua atração pelo cinema de gêneros, sempre propagada por ele mesmo, especialmente na relação com a Hollywood clássica; 2) sua capacidade de adequar e negociar seus interesses autorais com a relação com a filmagem dentro dos grandes estúdios; e 3) o caráter central que a violência ocupa na sua filmografia. Juntando estes três pontos, não é difícil perceber porque o cinema de ação/policial asiático dialoga com facilidade com o cinema do diretor ítalo-americano. Curiosamente, Scorsese parece, em Os Infiltrados, especialmente leve e à vontade, como se o exercício de um cinema quase puro na sua essência pudesse retomar um cinema mais fluido pelo cineasta, depois dos épicos Gangues de Nova Iorque e O Aviador.

Claro que para aqueles que se impressionam facilmente com a linguagem da violência, não é fácil entender a associação do cinema de Hong Kong com a noção de “pureza”. Mas, o fato é que, como a obra-prima que é Exiled nos deixa ver, há algo de incrivelmente juvenil neste cinema do corpo, da ação, da fisicalidade. Encantar-se por ele passa, necessariamente, pelo encanto pela apreensão de um mundo pelo cinema: reconhecer na disposição espacial de personagens (entre si e em sua relação com a câmera), nos ritmos atingidos pela junção de movimentos de câmera, cortes e música, nos grafismos quase abstratos dos enquadramentos um êxtase estético que só o cinema pode proporcionar. Complexo êxtase que só se atinge plenamente pela simplicidade absurda do que está em jogo.

O mundo em que transitam os gângsters de To é um mundo simples, porque regido por regras muito claras. E também é um mundo praticamente auto-suficiente: todas as tramas giram em torno das relações entre os mafiosos, assassinos e a polícia (nos filmes de To, quase sempre o lado mais fraco e sem regras), como se não houvesse um universo para aqueles personagens para além das suas intrigas de perseguição, traição, lealdade, corrupção. E, de fato não há: os personagens ali encenados só se justificam como tais com a arma na mão. Nada dos “psicologismos” do cinema “de arte” ou do clássico hollywoodiano: todas as potências ali são físicas, e os sentimentos os mais primais. Para isso funcionar, é essencial o trabalho com atores que são, também, potências físicas. Em Os Infiltrados, Scorsese explora ao máximo a persona de um verdadeiro dream team masculino do cinema, passando dos jovens Matt Damon e Leonardo DiCaprio, aos veteranos Jack Nicholson e Martin Sheen, e finalmente aos carismáticos Alec Baldwin, Ray Winstone e Mark Wahlberg – todos excepcionais, como também os menos conhecidos coadjuvantes. Já em To, seus rostos podem até ser menos conhecidos do espectador ocidental, mas quem já viu um ou mais filmes de Hong Kong (ou do próprio To), sabe que são caras (e corpos) marcantes – e mesmo quem nunca viu logo identificará a força e o carisma de cada um deles.

Trata-se de um cinema incrivelmente masculinizado, sem dúvida. As mulheres surgem na trama somente a partir de suas relações com os homens – mas, nos dois filmes, possuem papéis centrais. Em Os Infiltrados, a psicanalista (onde sua ocupação soa especialmente irônica pela “simplicidade” dos personagens, à prova de psicanálise, como é citado Freud ao falar dos irlandeses) que faz a ponte sentimental entre os dois lados do espelho (sem que ninguém saiba de seu “jogo duplo” – mais um entre tantos do filme). Em Exiled, o núcleo familiar (mãe/bebê) que é o motivador de toda a ação, com a decisão do personagem de Wo de sair da vida criminosa e viver em família – o que, como todos sabemos, é uma impossibilidade neste micro-universo.

Esta sensação claustrofóbica está mais do que presente no remake americano por Scorsese: desde o prólogo, em que a criança que depois será o personagem de Matt Damon é “aliciada” para o crime por Jack Nicholson, não há mundo fora daquele em que transitam os criminosos e os policiais. Suas explosões de violência e da dinâmica de relações se dá sempre dentro daquele mesmo conjunto de pessoas e instituições – e, aqui em Os Infiltrados, a polícia é também um ambiente essencial. Na verdade, um dos principais temas do filme de Scorsese é o do paralelismo entre a polícia e as organizações criminosas (uma personagem chega a dizer para o policial: “se eles não existissem, você não teria trabalho”). A partir dos personagens de Damon e Leonardo DiCaprio, Scorsese cria uma narrativa em espelho, que, no seu jogo de identidades constantemente reconstruídas, lembra muito o cinema de John Woo (um pirulito para quem lembrou o país de origem de Woo). Damon e DiCaprio são os dois lados da mesma moeda – como também Nicholson e Martin Sheen/Mark Wahlberg.

Lealdade é a palavra-chave que rege as relações: em Exiled, uma velha foto de infância é tudo que precisamos conhecer para saber porque os cinco personagens serão eternamente leais uns aos outros, formando o tipo de comunidade masculina que lembra muito o cinema de Howard Hawks ou de Takeshi Kitano (algumas das mais belas cenas são as da casa de Wo no começo, e a do passeio na praia, já perto do fim), e que se opõe radicalmente às constantes traições e mudanças de lado entre os outros criminosos. Já em Os Infiltrados, todas as relações são mediadas pela necessidade de saber quem é leal a quem, e é da constante desconfiança entre todas as partes que emergem os conflitos.

Na verdade, o verdadeiro caráter trágico deste micro-universo dos dois filmes é que não só uma vida fora dele é impossível para os personagens, como mesmo dentro dele todos sabem que seus dias de vida são contados. A morte ronda os personagens o tempo todo, e como indica o título original do filme de Scorsese, essa é uma história de personagens mortos. Ao final de um e de outro filme, não sobra quase nenhum deles para contar a história, somente as mulheres com seus filhos (que talvez irão começar a próxima geração de conflitos). A tranquilidade com que os personagens de To optam pela morte honrada no final, é similar daquela com que o filme de Scorsese se desfaz de seus protagonistas. Morrer não é uma fatalidade, mas sim uma contingência do trabalho – o que importa é poder escolher a hora da sua morte, um luxo que os heróis de To têm, mas os personagens de Scorsese não.


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