Cópia
Fiel (Copie Conforme),
de Abbas Kiarostami (França/Itália, 2010)
por Pedro Henrique Ferreira
Revisitando
a Itália, tarde demais
Desde o renascentismo tardio, com Michelangelo,
a função clássica da representação da natureza é confrontada com
a função da arte como um processo mental individual, conceptualista,
que busca gerar uma ascese, um encontro direto com Deus não-mediado
pela realidade. Pela primeira vez na arte, a cópia fidedigna do
original era interpelada pela distorção da “mão” do artista. Desde
os primeiros instantes, Cópia Fiel não esconde os valores
que exercerão força em seu princípio narrativo. Junto à platéia,
aguarda-se um discurso; nossa atenção é interrompida continuamente
por interferências, tal qual a ligação de celular que o palestrante
recebe ou cochichos na platéia. Assim, Kiarostami faz do cruzamento
entre uma tendência conceptualista a reger, organizar, desdobrar
a narrativa, e uma tendência naturalista que a confronta a todo
instante, a atualização da crise entre representação da realidade
e criação artística.
Nos ecos deste embate (ou amor), Cópia Fiel
repõe o problema do modelo e de sua execução, da originalidade
artística como expressão de uma ruína histórica e dela como a
relação do homem com o mundo mais imediato, nas palavras de James
Miller (William Shimell), mais pragmático. Não seria este, de
certa maneira, o problema do qual Kiarostami sempre se ocupou
em seus mecanismos radicais de armação cênica e composição do
quadro? Ou também o Rossellini de Viagem à Itália, o modelo
original, de onde ainda ecoa: “não mais corpos. Apenas imagens
ascéticas”? Não seria a cinematografia de ambos resultado ou desdobramento
de experiências cinematográficas realistas? Desde Dez,
Kiarostami adentrou uma fase de experimentos radicais, voltados
à investigação estética e exploração das diversas possibilidades
de se armar uma misè-en-scene. Apesar da narrativa que
Cópia Fiel instaura, não ocorre nisto uma mudança de cunho
intelectual, pois esta narrativa, sempre evanescente, se instaura
sob medidas que servem a um discurso estético-filosófico, a um
processo de elaboração antes mental do que natural.
Mas
se este conceptualismo é força-motriz, a realidade rosseliniana
ainda há de se lançar em direção ao quadro. Este entendimento
contraditório resulta em composições onde, apesar de ressaltar
o objeto central e propulsor, e organizar a perspectiva a partir
dele, a realidade caça suas brechas para lhe invadir. Alguns aspectos
ilustram a primeira tendência: o objeto de atenção do plano é
freqüentemente exposto como o único em foco, frontalizado; quando
sai do quadro, o fundo permanece desfocado, desinteressante. No
sentido contrário deste esquematismo, a realidade empírica adentra
como uma contra-força, seja pelas janelas dos carros ou estabelecimentos,
os reflexos em vidros ou espelhos, o espaço populado no fora-de-foco
ao fundo ou nos sons perturbadores da cidade. A junção destas
duas tendências sobre as quais variaram tantas composições pictóricas
da arte moderna não é algo de lá tão novo no repertório do diretor
iraniano que, desde sempre, aceitou sua herança cultural. Porém,
não sem problematizá-la.
Assim,
o desmoronamento da narrativa é precioso. Em determinado momento,
ela verte totalmente, e a história de um primeiro encontro amoroso
se transforma no divórcio deste mesmo relacionamento. Além de
demonstrar o quão cambiante pode ser uma linha narrativa sob estes
moldes, esta mudança abrupta na estória do relacionamento entre
James e Elle (Juliete Binoche) também nos aproxima de um sentimento
que pauta praticamente toda a sua obra: o de haver adentrado a
tradição moderna tarde demais, quando esta já se dilacerava e
tudo que dela poderia render frutos já se encontra exaurido. Literalmente,
trata-se de um relacionamento amoroso que já se principia cansado,
prestes ao divórcio. A necessidade visceral de abandonar os conceitos
e tendências que armaram a tradição moderna encontra como obstáculo
a carga histórica do desenvolvimento da arte e do conhecimento
humano. O homem se tornou complexo demais (talvez para seu bem)
para enxergar o Belo como um fenômeno cotidiano e mundano – como,
por exemplo, uma simples gagueira.
Estas investigações se armam entre as brigas do
americano que busca elaborar um belo “atual, exterior e sem memórias”,
e uma francesa que tem para com a história da arte uma relação
um tanto quanto erótica – sublimada, afetiva e de interiores escuros,
sonolentos. Um relacionamento que chega ao fim ao mesmo tempo
em que busca uma redenção, uma reconciliação, nos transmite o
exato sentimento de se chegar atrasado em uma tradição que definha.
Assim, o diretor iraniano termina por remeter àquele espaço fronteiriço
que sempre interessou mais em sua cinematografia. Localiza-se
no limiar entre a morte e a transformação, o perecer e a mudança,
o sucumbir e o remodular; num espaço onde a morte quase faz sentido,
dada a exaustão absurda de um conjunto de procedimentos artísticos.
Renovar suas bases, se é que isto é possível – eis a grande tarefa.
De
poucas assertivas, o cinema de Kiarostami sempre nos fez interpelações.
Enquanto Rossellini via na intromissão da realidade um fator absolutamente
benéfico, epifânico e religioso, Kiarostami é mais cético e mais
desesperado. Na sequência final, Ellen pede para que Miller fique
em Toscana, mas ele diz já ter a passagem de trem marcada. Apesar
da frontalidade, o último plano não é um discurso. É um olhar
silencioso lançado a nós, espectadores. Após a saída de quadro
de Miller, pela única vez em Cópia Fiel,
ocorre uma passagem de foco do elemento central ao fundo: vemos,
por uma janela, uma igreja de onde ecoam os repetidos baques de
um sino. Neste drama, qual é exatamente o estatuto da imagem e
onde ela pode executar milagres? Sobre este aspecto fúnebre e
frágil da criação artística, Kiarostami sabe que o artista contemporâneo
não tem o poder de entregar a fórmula pronta. Isto, pois a arte
se encerra em seu espectador. O homem como demiurgo, e a realidade
como apreensão do divino são dois lados da mesma moeda, mas nada
sem este terceiro elemento. E quanto ao caráter de verdade e milagre
na imagem artística, só a ele cabe a palavra final.
Março de 2011
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