Coraline
e o Mundo Secreto (Coraline), de Henry Selick (EUA, 2008) por
Fábio Andrade Os
vivos e os mortos
Coraline
e o Mundo Secreto é uma adaptação
da graphic novel homônima de Neil Gaiman. Se pensarmos, porém, estritamente
no universo cinematográfico, é, ao menos, o quarto filme em animação dessa década
construído a partir de uma narrativa fundamental para o pensamento ocidental e,
consequentemente, o cinema: assim como em A Viagem de Chihiro, de Hayao
Miyazaki; A Noiva Cadáver, de Tim Burton; e Wall-E, de Andrew Stanton,
estamos diante de uma adaptação livre do mito de Orfeu. Nos três filmes, a personagem
precisa ir ao mundo dos mortos para resgatar o amor (seja ele romântico ou existencial),
e restaurar valores que foram deturpados em seu mundo natural. Em todos eles,
há a vontade de colorir esse mundo dos mortos com encantos extremamente sedutores
aos personagens e espectadores, produzindo uma indefinição, não entre os limites
desses mundos, mas sim em seus papéis representativos (operação que também norteia
O Mundo de Sofia, hit adolescente de Jostein Gaarder), nublando os signos
que definiriam um deles como o dos vivos, e outro como o dos mortos (sempre aparentemente
mais sedutores). Existe, porém, uma distinção importante
que mais aproxima Coraline de um outro conjunto de filmes, pois se em Chihiro,
A Noiva Cadáver e Wall-E o mundo dos mortos é a exacerbação das
fraturas da vida adulta contemporânea, em Coraline o alvo principal é outro:
a ficção. Saímos, portanto, das questões de Orfeu e, como em Ratatouille,
de Brad Bird, nos aproximamos das reflexões sobre arte de Jean-Jacques Rousseau.
Mas enquanto Ratatouille se concentrava nas bases do pensamento de Rousseau
sobre a presença da arte no corpo social, em Coraline interessam mais os
efeitos sobre o indivíduo (no caso, muito apropriadamente uma criança). Daí a
condução para o mundo dos mortos ser feita pelos ratinhos acrobatas, artistas
do impossível que tem um lado simpático e inofensivo, mas que também podem se
revelar ratazanas sujas e assustadoras – movimento inverso à apresentação de Remy,
em Ratatouille, onde a sombra de um rato asqueroso é desconstruída com
o aparecimento do simpático protagonista. Coraline
é permeado por uma questão central para Rousseau: como evitar que o
retorno do mundo idealizado pela arte para a vida concreta não seja frustrante?
Nesse sentido, há um parentesco imediato ao Labirinto do Fauno, de Guillermo
Del Toro (sem o fatalismo), e à Dama na Água, de M. Night Shyamalan, pois
Coraline percebe um problema interno à ficção que traz consequências nefastas
para a vida cotidiana. Lembremos, aqui, dos scrunts, criaturas maléficas
de A Dama na Água que eram ainda mais perigosas porque imitavam o mundo
real, transformando-se em imagem de grama. Em Coraline, a ficção sofre
de mal semelhante, pois o mundo dos mortos é uma versão mais atraente, porém limitada,
do mundo real. Mas, novamente como em A Dama na Água, a questão é de visibilidade:
se lá era preciso de um espelho para se enxergar os scrunts, aqui a morte
é a troca voluntária dos olhos por um par de botões. O mundo ideal permitido pela
ficção é, também, a aniquilação das diferenças, a possibilidade de calar a voz
da individualidade que confronta o sujeito (pensemos na versão muda de Wybie,
no mundo dos mortos). Esse
caminho de aproximações é importante, pois influirá não só no discurso do filme,
mas também em sua construção visual. Pois tanto a técnica do stop motion
quanto a do 3D (ambas empregadas por Henry Selick) chamam atenção para sua própria
existência, atravancando a idéia de continuum que é essencial para a produção
hegemônica de animação contemporânea. Existe um interesse um tanto supérfluo,
mas inegavelmente presente na produção da Pixar, por exemplo, de aprimorar a carpintaria
a níveis tão extraordinários (pensemos nos fios de cabelo das personagens de Os
Incríveis) que acaba logrando sua própria transparência. Daí, portanto, a
necessidade de realizadores mais atentos, como Brad Bird, mediarem o contato com
esse mundo se apropriando de deformações óticas do aparato cinematográfico (passagens
de foco; características das lentes; curva sensitométrica). O uso do stop motion
em Coraline é essencial, pois descarta o falso caráter realista propagandeado
em cima do 3D, e reforça a importância da distinção visual entre a arte e o mundo,
pois imitá-lo é, ao fim e ao cabo, reduzi-lo. Daí um dos momentos mais fortes
do filme ser justamente a ruína dessa imitação de mundo – superfícies de pixels
que se dissolvem para uma gigantesca página em branco. Assim,
o universo de Coraline se distancia da generosidade marginal do olhar de
Tim Burton, tão associado a Selick por parcerias anteriores, e busca ambiguidade
visual semelhante à de artistas plásticos como Marion Peck, Michael Hussar e,
principalmente, Mark Ryden – filhos bastardos de Lewis Caroll oriundos da indústria
do entretenimento, populares entre os jovens, e que só recentemente alcançaram
algum reconhecimento nas esferas mais tradicionais do mundo da arte. É preciso
criar um mundo ficcional belo e fascinante, mas sempre sublinhado com algumas
gotas de sangue e vazio. Por isso mesmo o 3D é tão mais forte quanto mais discreto,
pois se as composições em perspectiva tradicionalmente saltam da tela, os planos
frontais ganham uma flutuação interna tão mágica quanto desconcertante, pois ressalta
as lacunas de profundidade em um ponto de vista que está acostumado a chapá-las,
a simplificá-las – efeito semelhante ao das camadas que entrecortam a composição
frontal em Hou Hsiao-hsien. É bastante sintomático,
porém, que o contato com Coraline se dê por um número galopante de referências,
pois, para além da ressonância atenta às questões de seu tempo, o filme de Henry
Selick frequentemente parece consciente demais. Pois se suas operações
amplificam questões de seus pares, o excesso de cálculo e segurança denuncia a
falta de vigor para sobreviver para além de adjetivos carinhosos no diminutivo.
Embora Selick seja extremamente bem sucedido em fazer um filme que responda às
sensibilidades de seu momento com precisão e correção, falta-lhe perceber que
as grandes obras sobre (e, até certo ponto, para) o universo infantil trazem,
ao menos, um forte traço de uma atitude que é muito particular à idade: um tanto
de curiosidade, e outro de malcriação. Março de
2009 editoria@revistacinetica.com.br
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