in loco - cobertura dos festivais
Corpo Presente, de Marcelo Toledo e Paolo Gregori
(Brasil, 2011)
por Rodrigo de Oliveira

Alguma coisa acontece

“Muito paulistano”. Eis algo que se ouve bastante na saída de uma sessão de Corpo Presente - dessas certezas que não se sabe apontar muito bem de onde surge. Dada a incipiência do cinema paulista dos últimos anos, a referência não passa mesmo do imaginário de Carlos Reichenbach, o autor que sobreviveu na memória. Quando o curta Corpo Presente: Beatriz surgiu no circuito de festivais, quatro anos atrás, sua aproximação do universo do operariado feminino fazia uma ponte direta com o que Reichenbach lançara pouco antes, seu belo Garotas do ABC. Marcelo Toledo e Paolo Gregori incorporam este curta e esta personagem a duas outras histórias, radicalmente opostas em tom e estética, filmadas em momentos diferentes e sob outros signos, num projeto de longa-metragem monstrengo por natureza - e ainda assim não há muito como escapar da referência. É um filme-súmula, do mesmo jeito que Jairo Ferreira chamava Reichenbach de cineasta-súmula: o resumo consciente e objetivo de todo o caos de um processo anterior, e que só se pode produzir depois dos fatos.

Um dia na vida, versão São Paulo anos 2010: Alberto, um jovem trincado de droga sintética, saindo de uma rave, que se revela um agente funerário, paparicado pela avó e perseguido por gângsters de um trópico-noir; Cynthia, uma manicure que faz bico de garota de programa, mas na verdade sonha em estudar teatro no Japão. Beatriz, a primeira a ser filmada, a única em película, a que mais se encaixa num esquema de solidão em meio à grande cidade e sobrevivência ao trabalho que desumaniza, acaba sendo suplantada por estes dois outros veios narrativos, muito mais chamativos – mesmo o belíssimo plano de Beatriz caminhando descalça na Marginal, em meio aos carros e sob forte chuva, das imagens mais marcantes do cinema brasileiro recente, se perde entre o colorido pós-neon e a música eletrônica da súmula.

O que Corpo Presente retém, em chave de homenagem póstuma e ressuscitação de peito aberto, é o desfile de uma história muito particular do cinema brasileiro, saudosamente paulista. David Cardoso em incrível chave dramática nos levando ao ambiente da pornochanchada (que Alberto, o personagem, revisita num passeio de lancha e no sexo com uma viúva sessentona), Darlene Glória com sua presença indefectível, aquele tipo de figura que merece um plano simplesmente por ser quem é, e com aquela voz, aquele eco. Um dia na vida, a ilusão de que haverá ali alguma explosão, alguma conseqüência, algum drama, quando, na verdade, importa muito menos o “dia” e muito mais a “vida” – Corpo Presente existe por esses momentos isolados, inconseqüentes, para experimentar sua paixão pelo cinema poeira emprestado de O Bandido da Luz Vermelha, e também para dar o close numa gargalhada de Gilda Nomacce, que interpreta um personagem para lá de secundário, simplesmente porque, na hora de redigir a súmula, esta gargalhada se fixou na cabeça de modo que não descrevê-la seria um crime.

Talvez São Paulo esteja aí, nesse cosmopolitismo que se confunde com metalinguagem, mas que nos tempos da Boca do Lixo, dos dois primeiros filmes de Sganzerla, do Reichenbach dos filmes de episódios, era simplesmente uma vontade de cinema que não via barreiras, que tudo admitia e a tudo se reportava, que experimenta profundamente a paranóia despirocada de Alberto e a seriedade filme-de-arte de Beatriz, e o fazia porque ali, nos limites daquela cidade, tudo de fato acontece ao mesmo tempo, e por isso a cidade não dorme. “Não tenho medo de nada, só de ser enterrada viva”, é o que diz Cynthia, enquanto descreve o anúncio de jornal em que oferece seus serviços de prostituta. O que Corpo Presente oferece, sem pudores e cheio de erros, é a chance de experimentar quarenta anos de uma cinematografia em setenta minutos, antes que ela morra – e durante este setenta minutos, não há o menor risco de alguém ser enterrado vivo.

Dezembro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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