em processo
Corpo: reflexão sobre
um primeiro longa
por Cléber Eduardo
Rubens
Rewald e Rossana Foglia, o casal de diretores estreantes em longa-metragem
com Corpo, queriam um “olhar de crítico”. Estavam exibindo
o filme para colaboradores e pessoas próximas, vivendo o momento
no qual, por conhecermos demais o material e os objetivos com
o qual o manipulamos, precisamos da ignorância de um outro olhar.
Um olhar que, despido dos contextos da realização, terá apenas
o filme que está na tela para se relacionar. Assim, fiz ao mesmo
tempo o papel de olhar crítico e olhar ignorante nesse processo
final do projeto.
Deixemos as minhas considerações sobre Corpo para quando
ele estiver disponível ao público. Adianto apenas algumas características:
temos um legista como personagem central (Leonardo Medeiros),
um cadáver de origem misteriosa que remete aos porões do regime
militar, uma investigação movida pela obsessão de quem investiga,
retomando, à sua maneira e sem consciência (segundo os realizadores),
os universos dramáticos de Corpo em Delito, de Nuno Cezar
Abreu e Brasília 18%, de Nelson Pereira dos Santos. A câmera
oscila entre o rigor do recorte espacial com o olho sustentado
pelo tripé (um olho que não pisca), e o planos-seqüência de movimento
vertical em sua caminhada. Já a narrativa vai do fluxo de imagens
(realidade ou imaginação), à construção de cenas propriamente
ditas, calcadas nos atores e diálogos.
Rubens e Rosana, na conversa que se seguiu à sessão
particular, na sala do apartamento deles em São Paulo, mostram-se
abertos, primeiro para ouvir, depois para levar em consideração,
antes da finalização do processo, as observações a eles feitas.
Ambos com estreitos vínculos acadêmicos com a ECA-USP, onde fazem
doutorado em comunicação, os diretores já haviam demonstrado,
em encontros anteriores, o desejo de realização conciliado com
o da reflexão, ou melhor, de uma realização motivada e motivadora
da reflexão.
Abaixo, as respostas do casal, por email, para
as perguntas de Cinética.
Cinética: Vocês estão na fase das últimas
dúvidas, em que o filme está para nascer, para se tornar também
de quem o assiste, para ser interpretado. Como têm lidado com as
impressões de quem viu o filme nesse estágio?
Rubens Rewald e Rossana Foglia: Na verdade,
estamos num estágio ainda intermediário, no qual mostramos o filme
para certas pessoas convidadas, que o assistem ao nosso lado,
de uma forma vinculada à nossa presença. Portanto, o filme, Corpo,
ainda não está autônomo, ainda está colado ao nosso corpo, conta
com o nosso anteparo. Mesmo a forma que as pessoas o assistem
não é isenta, pois ao final, se sentem na obrigação de emitir
algum parecer, apontar qualidades e defeitos que ainda possam
ser trabalhados. Assistem o processo e não o produto.
Talvez duvidemos da autonomia de qualquer filme,
pois sempre há muitas informações e relações associadas a ele.
Quem o dirigiu, qual sua proveniência, com que dinheiro foi feito,
a idade do realizador, o sexo do realizador, como chegou até esse
filme... Também, hoje na produção artística, é possível desvincular
processo e produto? Qualquer coisa que falemos sobre o filme,
sobre a sua realização, já não altera a sua percepção? Mas sem
dúvida esperamos que o produto espelhe o processo...
Cinética: Pretendem alterar algo em cima
de comentários?
RR e RF: Os comentários funcionam da seguinte
maneira: duvidamos sempre, assim como duvidamos de nós. Mas, à
medida que há uma reincidência (seja nos elogios ou nas críticas),
refletimos e trabalhamos em cima. No entanto, há sempre um risco
em jogo: até que ponto um elemento criticado por várias pessoas
seria um defeito ou um diferencial, uma proposta de nossa parte?
Temos que ter o cuidado de não eliminar o diferencial, a novidade,
de nosso filme, em prol de um consenso, de uma uniformidade, do
que seria certo ou errado. Mas, claro, é um risco nosso. Aliás,
o fato de sermos dois diretores, já nos coloca numa dinâmica contínua
de comentários. Um sempre analisa e critica as propostas do outro.
Cinética: O que realmente falta para o
filme estar pronto e "imexível?"
RR e RF: A certeza dos diretores. Mas achamos
que nesse momento chegamos a um corte final de imagem, ou seja,
chegamos a um limite de exploração do material filmado. Junto
com a montadora, Idê Lacreta, chegamos a um ponto que nos satisfaz.
As discussões sempre continuam, mas para isso existe o “próximo”
filme, afinal nunca estaremos prontos e imexíveis.
Cinética: Conseguiram realizar o filme
todo com o prêmio que venceram, do edital de filmes de Baixo Orçamento
(BO), do Ministério da Cultura? De quanto era o prêmio e
como ele foi dividido (entre filmagem e finalização)?
RR e RF: O valor de nosso prêmio foi de
R$ 600.000,00. Tratava-se de um edital muito difícil, pois era
fechado e com um valor reduzido. O MinC nos obrigou a abrir mão
do prêmio da Prefeitura em 2003, que ganhamos simultaneamente.
Era um prêmio de R$ 350.000,00. Foi doloroso ter que escolher
entre os dois. E mais difícil ainda conviver com essa escolha,
sabendo que no ano seguinte o edital de BO do MinC mudou as regras,
aumentou o prêmio para um milhão e permitiu captação e editais
municipais. O fato é que nesse momento precisamos de dinheiro
para finalizar o filme (edição de som e mixagem). Se tivéssemos
o dinheiro da prefeitura não passaríamos por esse aperto.
Foi realmente um equívoco federal, já que A
Concepção, do José Eduardo Belmonte, que ganhou o edital no
mesmo ano que nós, teve a sorte de ganhar um prêmio extra em Brasília,
quando as regras já estavam mais flexíveis, e assim pôde ser finalizado.
Ficamos com o mico. De qualquer forma nosso filme não irá ultrapassar
a marca de um milhão de reais, até chegar na primeira cópia. Um
BO autêntico.
Cinética: Qual a importância do produtor
em um filme de orçamento modesto, e como foi a relação de
vocês com o produtor?
RR e RF: No nosso caso, nenhum produtor
experiente quis assumir nosso filme. Ninguém quis se arriscar,
o que é compreensível. Por que dois diretores estreantes vão conseguir
realizar um bom filme com uma verba fechada e minúscula? O que
garante? Fora que a maioria deles não está interessada em estreantes
e não acompanha a produção de curta-metragens. Aqui, cabe um parênteses:
a produção de curtas no Brasil, é volumosa. Só para se ter uma
idéia, a média de curtas finalizados (só em 35 mm) é de 70 por
ano – isso sem contar os digitais. Uma produção pouco digerida
ou assimilada. Pouca gente faz um trabalho consistente com essa
produção. Destaco apenas o Festival de Curtas de SP, da Zita Carvalhosa,
onde há uma dinâmica diferente.
Bom, voltando ao longa. O Paulo Boccato, nosso
produtor, se arriscou. Assim como nós, também era um estreante
em longas. Essa é a história do filme: diretores estreantes, produtor
estreante, fotógrafo estreante, diretor de arte estreante – todos
com experiência de curta. Muitos trabalharam conosco em Mutante,
nosso último curta, que foi bem sucedido, premiado aqui e selecionado
para o festival de Clermont-Ferrand, o mais prestigiado festival
de curtas de ficção do mundo. Essa relação anterior trouxe uma
maior segurança para todos, além de imprimir uma cara nova ao
filme. Acho que nos saímos bem.
Cinética: Encerrada a parte criativa-técnica,
vem a parte da distribuição. Estão preparados para a possibilidade
bastante real de o filme ficar semi-invisível, tanto pela
característica dele como pela característica das distribuidoras
e de nosso circuito de exibição? A maioria dos lançamentos
de 2006 não chegou a 20 mil espectadores. Como fazer longa para
circuito nesse mercado? Preocupam-se com isso?
RR e RF: É uma questão complicada. Será
que é possível um filme visando lucro comercial com tão baixo
orçamento? Pra que serve um filme de baixo orçamento? Em nossa
opinião, o filme BO é feito para arejar o mercado, revelar novos
nomes e idéias –afinal, como diz nosso ministro Gil, “temos que
abrir todas as garrafas”.
O
problema é o filme comercial, bancado com dinheiro de edital,
que não alcança o seu objetivo. Aí sim, há uma distorção: um filme
comercial, produzido com dinheiro público e que não se paga no
mercado. Pois, no nosso caso, vinte mil pessoas é um bom público.
São pessoas que buscam algo novo, um cinema diferente – aliás,
fazemos parte desse público e trabalhamos com esse desejo. Enfim,
quem sabe não estamos criando um novo público? Além disso, nunca
é demais lembrar que existe sim um mercado de cinema independente,
só que em escala mundial: há festivais, TVs e distribuidores estrangeiros,
europeus na maior parte dos casos, que estão interessados sim
neste tipo de produto, lucrativo num circuito mais amplo. Fazer
um filme de temática diferenciada, linguagem mais radical é um
caminho também para se chegar a esse circuito, e aí sim, viabilizar
a produção. De qualquer forma, a realização de um filme barato,
mesmo que não alcance lucro, já significa um fomento à atividade
cinematográfica, através de circulação monetária, com salários
de profissionais, trabalho para laboratórios, aluguel de equipamentos,
mantendo a produção em movimento. Isso é vital numa indústria
emergente.
Cinética: Vocês tem que formação? Me parece
que a teoria, a reflexão, é algo próximo de vocês. O quão
próximo? Como encaram a crítica hoje, de forma ampla (a jornalística,
a virtual e a acadêmica), no Brasil de 2006?
RR e RF: Nós nos conhecemos no curso de
graduação de cinema da ECA-USP. Lá fizemos nossos primeiros curtas.
No ano em que nos formamos, explodiu o Plano Collor. Apesar disso,
seguimos adiante. Continuamos freqüentando a Universidade, na
pós-graduação e trabalhamos bastante com teatro, encenando algumas
peças escritas pelo Rubens e dirigidas pela Rossana. Na ECA, ainda
participamos da formação do NUDRAMA (Núcleo de Dramaturgia Audiovisual),
coordenado por Jean-Claude Bernardet. Esse núcleo, ainda em atividade,
propõe uma ponte entre o pensamento acadêmico e o mercado audiovisual.
Lá, fizemos muitos doctorings para roteiros (alguns filmados)
e elaboramos cursos de escrita criativa. Um memorável foi sobre
diálogos. Achamos possível sim construir uma relação profícua
entre reflexão e criação. Não só na trajetória pessoal do cineasta,
como em sua relação com a crítica. Afinal, a boa crítica, aquela
que prova as suas hipóteses, é estimulante para um realizador.
É um prazer discutir cinema. A crítica que se encontra hoje nas
revistas eletrônicas é muito mais provocativa e apaixonada do
que aquela que se encontra na imprensa oficial, tolhida pelo espaço
e pela institucionalidade.
Cinética: E a geração de realizadores surgida desde 1994?
Com quem têm mais afinidades? Consideram positivo o cenário
hoje, em matéria de propostas estéticas?
RR e RF: O Beto Brant inspira como modelo
de cineasta. Filmes de baixo orçamento, produção contínua, temática
urbana. O Invasor e Crime Delicado são trabalhos perturbadores,
no bom sentido. Outro nome que inspira é o de Paulo Sacramento,
um artista que realiza um trabalho real de intervenção na cultura
cinematográfica. Tanto como realizador, montador e produtor. Sua
atuação como produtor é fascinante; as suas escolhas nessa função
são tão autorais quanto às de um realizador. E o binômio poderoso
produtor-montador nos leva a questionar o conceito de autoria
nesses filmes. É como se o montador estivesse ávido por habitar
outros mundos, a ponto de viabilizá-los. Os diretores com que
trabalha são excêntricos, fora do mercado, conectados a uma idéia
de marginalidade.
Claro, não podemos deixar de destacar a importância
de um filme como Cidade de Deus, tal o impacto e polêmica
levantados, além de sua complexidade dramática e seu sofisticado
jogo de interpretação dos atores; Lavoura Arcaica, pela
radicalização lírica; e Um Céu de Estrelas, pela aposta
em uma densidade dramática construída com poucos elementos. Aposta
essa muito original no contexto do cinema brasileiro no momento
em que o filme foi feito. Terra Estrangeira também nos
tocou, por trazer um tom de melancolia raro em nossa cinematografia,
dominada por um campo excessivo de ironias, deboches e paródias,
como se estivéssemos presos eternamente na Semana de 22. Devemos
ressaltar também a importância da política de descentralização
do MinC, que estimulou a emergência de novos cineastas e cinemas.
CORPO
Direção: Rubens Rewald e Rossana Foglia
Roteiro: Rubens Rewald e Rossana Foglia
Montagem : Idê Lacreta
Fotografia : Marcio Langeani
Direção de Arte : Roberto Eiti
Som : Eduardo Santos Mendes
Música : Eduardo Queiroz
Produção : Paulo Boccato
Elenco : Leonardo Medeiros, Rejane Arruda, Cris Couto, Louise
Cardoso, Regiane Alves
editoria@revistacinetica.com.br |