Cosmópolis (Cosmopolis), de David Cronenberg (França/Canadá/Portugal/Itália, 2012)
por Pedro Henrique Ferreira

Da assimetria

A crise econômica mundial deflagrada nos últimos anos pela falência de bancos e grandes corporações, e as consequentes manifestações anticapitalistas, têm gerado um punhado de obras no cinema norte-americano atual. Ainda que baseado num romance escrito bem antes desse momento, é bem possível que Cosmópolis seja até agora a maior tentativa de síntese, de apreensão do que é o estado/espírito de um momento - e talvez a sua palavra final. Adotando uma estratégia de afunilamento, o filme vai do macro ao micro, revelando um momento histórico em uma cidade, uma cidade em um dia, e um dia em um passeio corriqueiro de um homem.

Todas as contradições do tema são iluminadas no interior deste percurso banal do multimilionário Eric Packer (Robert Pattinson), o 1% da elite financeira, atravessando a cidade parada, por conta de uma visita do presidente, para cortar o cabelo em um barbeiro. O objetivo de Packer nos é colocado já nos primeiros planos, mas também nos são dadas algumas ponderações fundamentais à trama. Por que ele insiste em enfrentar o trânsito se poderia somente pedir que o barbeiro fosse a seu escritório? Em princípio, não há motivações. Não há um evento desencadeador para justificar o ímpeto pelo caminho mais longo, o que faz com que o ato prosaico pareça despropositado, dada a sua banalidade excessiva, humorística. Não se trata do mundo absurdo surrealista, nem tampouco do estranhamento brechtiano, ou ainda menos de uma sátira de costumes. A razão para a escolha de Packer virá à tona ao longo da trama, não em uma resposta acabada, expressa em uma fala ou gesto que remeta ao objetivo inicial.

O que impressiona em Cosmópolis é justamente a maneira como se torna impossível saber para onde a narrativa irá. Ela se estrutura por um mosaico de episódios autossuficientes, casuais, encontros entre pessoas que jantam e conversam. As respostas pairam em um outro lugar – um plano mental, abstrato, que é o único lugar onde os episódios isolados se relacionam, criando uma espécie de teia. São unidades que, quando postas em série, forçam-nos a confrontá-las em um nível especulativo, sem nem mesmo a promessa de que chegaremos ao final do cálculo, de que podemos extrair mesmo mais do que especulações. O todo do filme ganha este ar de incompreensibilidade justamente porque ele dá ao espectador uma matéria e lhe pede um salto à abstração.

É somente deste lugar que se pode afirmar o que é que motiva/desencadeia o objetivo primeiro de Packer: atravessar a cidade para visitar o barbeiro. E talvez seja preciso o filme inteiro, ou mesmo mais do que isto (bem possivelmente, um alto grau de abstração a mais do que isto), para vir à tona a ironia que Cronenberg esquematiza em um correlativo de suas próprias táticas. Packer saiu de seu escritório simplesmente para tentar sentir uma realidade palpável, descer do mundo das falas prontas, das abstrações dos cálculos de yuans, sair deste plano altamente intelectual, teorético e especulativo (e não são todas estas justamente as causas que deflagraram a crise do capitalismo?) e se sentir próximo de algo íntimo, feito de relações humanas para além da bolha que o capitalista criou em torno de si mesmo. Quando esta bolha, representada pela limusine, é confrontada com as experiências na rua, vemos o quão infantil no trato social é uma figura que controla milhões de dólares e faz a economia de países ruírem em segundos. Cosmópolis engendra um cinema criado a partir do casual, de poesia despropositada, de ditos e gestos filosóficos. Mas ao mesmo tempo, seus tableaux da vida cotidiana ganham uma ironia em algo hogarthiana, na absoluta inadequação entre o não-espaço mental que o personagem-central habita e as relações humanas que encontra nas ruas.

Dentre as várias imagens das ruas de Manhattan vistas pela janela da limusine turbinada de Packer em Cosmópolis, uma se destaca: Paul Giamatti caminha disfarçado pela multidão. Na verdade, seria até um erro dizer que esta imagem se destaca. Ela gera o oposto disto, e o ator se camufla na multidão como um qualquer. Até então, na trama, o espectador sabe que alguém ameaça a vida do multimilionário, mas não sabe que é justamente este sujeito encapuzado caminhando rente a um caixa eletrônico, passando pela janela da limusine como se fosse tão somente um fragmento do sopro da realidade lá de fora. Assim como o espectador, Packer está alheio à sua presença, pois ela não diz absolutamente nada. Ora, o set-up da trama talvez faça remissão aos filme-carros de Kiarostami, com caronas e flertes pela janela que reúnem a dupla tendência entre o real e o conceito, e o flerte com o neorrealismo em sua forma contemporânea. Mas o universo que Cronenberg delineia apartou totalmente os dois: a janela é uma defesa e dentro da limusine está o não-espaço das idéias a ser expandido e contraído pela câmera num eterno exercício de se desdobrar a partir de um ambiente limitado; do lado de fora, as ruas onde Packer simplesmente parece não conseguir viver, cheias de pessoas e acontecimentos com os quais ele não consegue se relacionar.

A chave pela qual a maior parte das recepções críticas está enxergando Cosmópolis vai pelo viés de uma ironia ácida a um tipo de homem cínico que o capitalismo avançado está criando. Mas curiosamente, o estereótipo ganha fortes conotações dramáticas na medida em que suas motivações para a viagem existencial ao barbeiro se mostram. Basta observar o que é que o faz ir de um ponto a outro, o que é que personagem-central procura encontrar, e qual é o seu incômodo. Lutando para ser justamente diferente do que é, o percurso de Packer é um de abandono e desnudamento – empobrece, termina o casamento, perde amigos, tem sua limusine pichada, voluntariamente elimina tudo aquilo que lhe protege. E quão menos encontra esta fagulha de experiência nas ruas, quão mais se vê desajustado em relação a elas, mais rompe com tudo que possa ser uma defesa/barreira para pôr-se em risco. Até atingir um limbo absurdo onde o único gesto possível é entregar-se a uma forma de violência transloucada contra si mesmo.

O que torna Cosmópolis ainda mais enfático é justamente a incapacidade de Packer encontrar no universo das ruas qualquer coisa que o retire deste limbo, qualquer outra coisa que possa realmente transformar em profundidade a forma como vive o multimilionário, este arauto do capitalismo avançado. Todos à sua volta lhe dão alternativas. Mas são, todos, versões espelhadas dele mesmo, com diferenças de grau, mas não de natureza. O que está em jogo na situação em que sua consultora de artes (Juliette Binoche) lhe oferece um quadro de Rothko e ele quer comprar a capela inteira não é uma ironia da sua megalomania. É que comprar a capela para colocá-la em casa é tão somente o exagero de se comprar um quadro para pendurar na parede. Uma diferença de grau, mas não de natureza. E jogar uma torta na cara de um homem famoso não é apenas um protesto, mas também uma procura pela fama, uma assinatura. Como diz a citação invertida do manifesto comunista em um dos cartazes nos protestos - “há um espectro assombrando o mundo. o capitalismo” – a lógica opera tanto em quem está em cima quanto em quem está em baixo.

Repleta destas relações de espelhamento entre duas coisas que se separam pelo grau, mas não pela natureza, a jornada de Packer o leva a um desespero anárquico. É então que resolve confrontar Benno Levin (Paul Giamatti), o stalker que o ameaça, num memorável showdown de diálogos em que, com retitude, o acusa de ser no fundo exatamente como ele. A única diferença (de grau) é que Benno, que trabalhava numa das empresas dele, não pode acompanhar o ritmo, não tem a mesma capacidade de abstração. A grande crise que leva Packer a se entregar a uma espécie de suicídio é a de, ao fim de sua jornada rumo ao barbeiro, não ter encontrado nem em Benno, nem em ninguém, aquilo que partiu para procurar, algo que aparentemente conhecia na infância, mas que já não existe mais.

Na época em que o roteiro de Cosmópolis foi escrito, os movimentos populares de protesto estavam se deflagrando em Nova York. Altamente desconfiado da validade das manifestações, Cronenberg afirma nunca ter realmente se influenciado por elas. Há neste paralelismo algo de notável que o diretor mesmo reconhece, atribuindo a um aspecto profético da obra homônima escrita por Don DeLillo. Mas o livro é o livro, e o filme é o filme. Se a arte em alguma medida sempre faz política, o que é que a trama de Packer traz a uma discussão atual? Ou melhor, qual é o sentido implícito na representação desta jornada existencial de um multimilionário a dissecar sua própria bolha quando milhões de espectadores a assistem em uma sala de cinema? E como é que esta experiência se torna uma resposta a um panorama? Em que posição diante de fatos históricos do presente está essa visão de um multimilionário com um ar de tédio e depressão, triste consigo mesmo, infantil nos tratos sociais, que produz números, mas não consegue controlar realmente nada? E ao mesmo temo, o que pensar deste universo onde o único homem que se lança à procura de algo diferente do cinismo capitalista é um membro do 1%?

Outubro de 2012

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