ensaios
Alguns encontros
De Casa de Lava a Juventude em Marcha
por
João Dumans
No início de Casa de Lava, logo após os impressionantes registros de um vulcão em erupção, uma série de retratos, captados em planos quase estáticos e recortados contra uma paisagem árida, apresenta um pequeno grupo de mulheres numa ilha de Cabo Verde. À exceção do último retrato dessa série, no qual uma jovem de cabelos desgrenhados encara frontalmente a câmera, todos os olhares da sequência dirigem-se melancolicamente para fora do quadro. Algumas cenas depois veremos esse mesmo olhar no rosto de Leão (Isaach de Bankolé), um operário cabo-verdiano que trabalha num canteiro de obras em Lisboa, pouco antes de se precipitar no vazio da construção inacabada. A extensão percorrida por esses dois olhares é a mesma a ser vencida por Mariana (Inês de Medeiros), a enfermeira responsável por conduzir Leão, agora em coma, de volta à ilha em que nasceu.
Casa de Lava, o segundo filme de Pedro Costa, conta a estória desses dois percursos improváveis, quando não impossíveis: um que vai de Cabo Verde - terra avessa à toda vida, sede do Tarrafal e do "campo da morte lenta" para os presos políticos do Estado Novo - a Portugal; o outro, que vai de Portugal a essa ilha de terra infértil para onde "ninguém volta". Enquanto Leão preserva no sono de sua semi-vida a razão de seu retorno, Mariana se vê obrigada a criar uma razão pra si, ou várias: devolver Leão a sua família, dar assistência aos doentes, convencer os homens a ficarem em sua terra, desvendar o segredo de uma mulher branca em meio aos negros, despertar o sexo ou o amor numa terra feita de cinzas. Seu percurso faz colidir os temas mais abertamente políticos aos mais íntimos, a ponto destes quase arrastarem-na para uma dimensão inesperada - tomada de consciência que, segundo uma velha lição do cinema moderno, pode ser entendida menos pelo despertar da "consciência em si", do que pela dissolução da consciência no mundo, pela elevação do ser que precipita subitamente a aparição do amor (Viagem à Itália) ou da morte (Stromboli). Em Casa de Lava, Mariana está sujeita a esses dois riscos (a esses dois desejos).
Mas seu percurso é também uma espécie de aprendizado que lhe ensina o quanto esse mundo particular é capaz de se fechar sobre si mesmo. Talvez seja isso que nos torne tão sensíveis à oferta do par de sandálias que logo no início do filme a mulher do mercado (Clotilde Montron) lhe faz, como se também a nós dissesse: "sem isso, nenhum de vocês poderá resistir ao calor que queima por debaixo dessa terra." Contra a gentil precaução, Bassoé (Raul Andrade) não tarda a aparecer para nos dizer exatamente o contrário: "tirem as sandálias, o chão está quente e bom." Como em seu primeiro filme, O Sangue, Costa trabalha aqui a mesma dualidade entre o prazer e a dor, a vida e a morte, o mundo e tudo aquilo que o ameaça. Seja nos contornos de um vulcão adormecido ou de uma cesta de maçã colocada contra o chão pedregoso, Casa de Lava compõem-se como uma vasta coleção de naturezas mortas que parece herdar do cinema dos Straub (assim como da pintura de Cézanne) a consciência dessa sensualidade rudimentar que emana das formas mais elementares e simples. E o que é uma natureza morta senão a forma mais direta de representar a vida por meio de sua ausência? Ou de evocar a vida latente naquilo que, na verdade, está morto?
Enquanto em O Sangue a escuridão ameaçava comer a borda das coisas, em Casa de Lava tudo é sólido, impenetrável - nada, ou quase nada, se mistura. E é sob o signo dessa diferença, ou da impossibilidade de uma assimilação completa, que a perambulação de Mariana se faz. Ainda sim, é ela que abre aos poucos as frestas que permitem enxergar a realidade por trás do presente da ilha e de sua história. É por meio dela que ouvimos a morna melancólica tocada por Bassoé, que descobrimos o nome de seus filhos, que conhecemos Tina, que vemos um cachorro, o vulcão, a cólera, as ruas de Cabo Verde, uma festa ao som do funaná, uma enfermeira que cozinhou para cento e cinquenta homens no Tarrafal, o mar, uma feira de tecidos, a lavagem dos lençóis, os leitos de um hospital. Em Casa de Lava, Mariana não é só a enfermeira que leva Leão à sua terra natal - mas a fresta aberta no mundo pelo cinema, pela ficção (fresta essa por onde o cinema de Costa, dali em diante, deverá passar).
Casa de Lava e depois
Diante
dos rumos tomados pela obra de Pedro Costa, tornou-se possível
enxergar retrospectivamente na aventura solitária de Mariana
um percurso de afirmação interior e de aproximação
da realidade semelhante àquele trilhado ao longo do tempo
por seu próprio cinema. Já em 1995, numa entrevista
concedida a Jacques Lemière, Costa dizia: "Decidi
afastar-me de casa e dos lugares mágicos e exclusivos que
me foram oferecidos pelo O Sangue. A Inês Medeiros
e o Pedro Hestnes, os dois cúmplices do primeiro filme,
decidiram acompanhar-me. São dois actores que não
se assustam com o irracional e o risco... afastarmo-nos de tudo
para ficarmos mais perto de nós, de nossa casa. Creio que
Casa de Lava é feito deste movimento duplo. É
um filme que me abre ao mundo e que, ao mesmo tempo, me esconde."
Este duplo movimento, ao longo dos anos, continua
a funcionar e a provocar rupturas sensíveis na sua forma
de pensar e de fazer cinema, afastando-o cada vez mais desses
primeiros "cúmplices" em prol de uma relação
ainda mais direta e mais vital com a realidade das pessoas que
encontra a partir de então. No seu impulso de se aproximar
da realidade dos habitantes da ilha, de desvendar os laços
entre o seu passado histórico e sua situação
presente, as perambulações de Mariana em Casa
de Lava colocam já em movimento a possibilidade desses
laços ainda por vir na obra do realizador português.
Se a ausência de atores profissionais nos trabalhos da trilogia
das Fontainhas é uma das mudanças mais significativas
em relação aos filmes precedentes, há algo
que desde Casa de Lava continua a pulsar por trás
de suas estratégias de encenação, convocando
o real não só a "entrar pela fresta" -
tomando parte dos temas que lhe servem como pano de fundo - mas
a incidir diretamente, e cada vez mais, sobre suas próprias
opções formais.
No seu texto do catálogo da mostra "O Cinema de Pedro
Costa" (publicado originalmente no livro Cem Mil Cigarros,
organizado por Ricardo Matos Cabo), Adrian Martin sugeria a forte
relação existente entre a obra do diretor e aquilo
que ele chamou de "grande figura cinematográfica do
encontro". Ao lado do laço "pesado e difícil
de suportar", da "ligação ética
e moral" que o crítico australiano identificou à
figura do "encontro" nos filmes de Costa (e que Serge
Daney, por sua vez, havia associado ao cinema de John Ford) seria
possível acrescentar talvez uma outra dimensão:
na procura de Mariana pela família de Leão ou na
perambulação sem fim de Ventura, em Juventude
em Marcha, a mise en scène de Costa orienta-se
com frequência pela articulação de uma série
de pequenos encontros, de coincidências de vidas no tempo
e no espaço, que fazem circular entre os personagens ("ficcionais"
ou não) a energia vital que anima suas imagens.
Um dos filmes em que essa idéia surge com mais força é justamente No Quarto da Vanda. A idéia da perambulação está ausente (a não ser nas vendas episódicas de verduras que Vanda realiza pelo bairro), mas tudo transcorre de forma a tornar o quarto o centro para onde a maior parte dos personagens do filme convergem. E na ausência de qualquer exterioridade possível, Vanda encarrega-se com uma eloqüência viva, apesar da escuridão que a cerca, de fazer com que o mundo venha também habitar o quarto em sua fala. Nada torna mais generosa a escolha de Costa de um filme como Numéro Zéro, de Jean Eustache (assim como de Gente da Sicília, dos Straub), para compor sua mostra, do que a sugestão que nos deixa do poder de resistência da palavra e da memória frente a opressão e a violência, assim como do seu poder de evocação da vida, mesmo que em sua face mais trágica. Benjamin, num ensaio clássico, já havia apontado a relação existente entre a narrativa e a morte, mas só para provar como um princípio vital parece pulsar por trás de quase todo ato de rememoração.
Mesmo em Juventude em Marcha,que trabalha num regime narrativo diferente do filme anterior, a idéia do quarto da Vanda como lugar por excelência do encontro - do enlaçamento de dois personagens, duas presenças, e ao mesmo tempo como lugar do transbordamento da fala e da memória - continuará a funcionar mais ou menos da mesma maneira. A tal ponto, inclusive, que mesmo a figura "mitológica" de Ventura (nas palavras de Rancière) deverá se dobrar às frustrações e aos caprichos mundanos que inundam o quarto na fala torrencial de Vanda. E entre a naturalidade de Vanda e a altivez de Ventura, um desequilíbrio, um desajuste inerente à representação, faz com que algo circule de um pólo a outro do plano. O mesmo acontece quando na última cena do filme, com a televisão ligada, Ventura olha pela janela enquanto a filha de Vanda brinca distraidamente sobre a cama. Algo como uma "internalização da diferença" (Daney) entre a vida e a ficção está progressivamente em jogo nesses encontros que o cinema de Pedro Costa articula. Em parte, é por isso que seus filmes tornam tão antiquadas as abordagens que procuram defini-los sob a ótica do documentário e da ficção, já que essas diferenças são postas em movimento no interior do plano, constituindo como que a essência, a respiração mesma de sua mise-en-scène.
Casa
de Lava serve assim como uma espécie de prelúdio
a essa busca pelo "entre dois" da fala e da memória,
e que vale menos por seu poder de análise do presente do
que por sua capacidade de evocar o passado e a história,
assim como por seu potencial de inventariar e de preservar, por
meio do cinema, um mundo sempre em vias de desaparecer. Ao contrário
do que podemos pensar, o personagem que melhor responde em Casa
de Lava ao sentido profundo que Costa dá a essa dimensão
sensível do tempo não é de forma alguma Mariana,
tampouco Edite ou Leão - mas Bassoé, a quem o diretor
dedica um dos mais belos planos não só deste filme
mas de toda sua obra (a longa panorâmica que percorre as
cadeias de montanhas da ilha e que encontra Mariana e o músico
sentados numa mesa, com este último trazendo à tona
as lembranças da juventude). Enquanto a personagem de Edite
(Edith Scob; não por acaso a misteriosa jovem sem rosto
de Les Yeux sans Visages, de Franju), no seu luto pelos
mortos do Tarrafal, é a ponte "consciente" que
nos permite fazer o percurso do presente ao passado político
da ilha, Bassoé, com sua música e com seu altivez
trêmula e elegante, traz o passado grudado ao próprio
corpo, à própria voz.
De certa forma, a reaparição da carta de Costa/Desnos
em Juventude em Marcha só pode ser entendida como
a reparação de uma pequena injustiça contra
esse homem que seria, no fim das contas, o único realmente
digno de possuí-la, e que encontra finalmente na personagem
de Ventura a sua redenção. Vale lembrar que é
tirada do próprio Desnos a letra da "morna das sombras"
que embala o violino de Bassoé. E vale lembrar também
a figura desses dois homens hostilizados pelas mulheres, protegendo
os incontáveis filhos que se espalham pelo mundo. Como
Bassoé, Ventura traz inscrito no próprio corpo e
na própria voz a experiência daquilo que viveu -
experiência esta que permanecerá inacessível
(tanto para Costa quanto para nós) mas cuja força
está sempre em jogo nos encontros dos quais toma parte,
convidando a realidade a testemunhar (e a fabular) sobre si mesma
e reforçando o vínculo entre o passado histórico
de Portugal e a situação presente de seus habitantes.
Em Casa de Lava, Mariana e Bassoé sonham juntos
o personagem de Ventura.
Por um lado, seus longos périplos revolvem
a poeira da realidade, convocam e recriam por meio do cinema o
trabalho da fala, do imaginário e da memória; por
outro, seu corpo reclama a experiência do tempo já
vivido. Em Juventude em Marcha, contudo, muitas coisas
deixam de ter o estatuto de "indício" que as
prendiam à estrutura narrativa um tanto quanto esquemática
de Casa de Lava para se tornarem, elas mesmas, fatos
cinematográficos, poéticos. Assim, a carta não
é mais o indício de uma relação a
ser decifrada por Mariana, mas um canto endereçado ao futuro
na voz de Ventura; o degredo não é simplesmente
referido como um problema, mas vivenciado; e, talvez, o mais importante
- o presente não remete simplesmente ao passado, mas coincide,
numa espécie de curto-circuito do tempo, com ele. Se em
Casa de Lava estávamos no registro dos encontros
mediados pela ficção e dos trânsitos entre
os espaços, em Juventude em Marcha Costa traduz
na própria estrutura do filme os percursos labirínticos
de Ventura, que circula não só dos escombros do
bairro aos corredores e apartamentos vazios de Casal da Boba,
mas também de uma ponta a outra da história de Portugal.
Costa dá a essa estruturação dos tempos,
além de uma organicidade própria, um forte sentido
político, nos conduzindo da luta presente das Fontainhas
à luta histórica dos cabo-verdianos. Mas aqui já
não é preciso, nem sequer possível, cortar
a linha contínua que liga a vida presente ao passado histórico.
Pelo contrário, é preciso reconstituir, por meio
do cinema, a atemporalidade desta linha, e com ela o laço
de solidariedade, ele também atemporal, que atravessa a
história de luta dos homens comuns.
Numa das mais belas cenas de Juventude em Marcha, vemos Lento, ao lado de Ventura, apoiado numa janela empunhando um facão, seu olhar sustentando a dignidade dos sobreviventes contra um mundo que se despedaça. Numa outra bela cena, Ventura e Bete contemplam sobre as paredes da casa das Fontainhas os traços de um mundo imaginário em vias de desaparecer.Em Juventude em Marcha, entendemos melhor a lição que aqueles primeiros olhares de Casa de Lava já antecipavam: o encontro do passado e do presente em Costa dá-se justamente nessa contemplação solitária que não acha na extensão visível da imagem uma resposta. Com ele, aprendemos que um olhar sem contra-plano no cinema é menos um olhar lançado sobre o mundo que um olhar lançado sobre a história. Talvez não seja à toa que, como lembra Tag Gallagher, tanto para Costa quanto para Ford - outro cineasta que fará dos vínculos inquebrantáveis dos homens comuns um tema central em sua obra - "olhar as pessoas olhando é mais importante do que olhar o que elas vêem".
Dezembro
de 2010
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