in loco

Panorâmicas sobre o curta brasileiro
por Eduardo Valente


Entre as mostras Panorama Brasil e Curta o Formato, foram exibidos neste ano 65 curtas brasileiros dentro das seleções do Festival Internacional de Curtas de São Paulo. Destes, pela impossibilidade de encaixá-las na programação pessoal, só perdi duas sessões (os Panoramas 4 e 8), ou sete filmes. Ter visto estes 58 filmes (57, se descontamos que um era meu) não me habilita a totalizar sobre a produção brasileira do ano, já que estas mostras são fruto de uma seleção prévia, cujos variados critérios necessariamente escondem parte da produção nacional (nada de errado nisso) – e também havendo outros filmes brasileiros em mostras temáticas ou de recortes específicos, que não acompanhei (como a Formação do Olhar, para trabalhos provenientes de oficinas de realização, ou a Cinema em Curso, com a totalidade dos filmes feitos em película nas escolas de cinema do país). Mas me habilita sim a tentar dar conta da experiência vivida em uma semana mergulhado neste recorte específico de filmes.

Se a tarefa de assistir filmes dentro do sistema típico dos festivais de longas (leia-se acúmulo de sessões diárias, encontros com cineastas ou cinéfilos, pouco sono e alimentação errática) já é uma experiência um tanto episódica, o que dizer de acompanhar um festival de curtas, com suas sessões que são, cada uma delas, viagens por universos distintos (geográfica ou cinematograficamente) que se sucedem com pouquíssimo tempo para reflexão/imersão? Ao final de uma semana freqüentando assiduamente um festival como o de São Paulo, será que é possível conseguir projetar alguma coisa a partir do caleidoscópio que foi visto?

Se a resposta a esta pergunta me parece ser positiva, neste ano ela se revelou tão mais caleidoscópica quanto a própria experiência. Não houve na seleção nacional, por exemplo, uma experiência de força narrativo-dramatúrgica semelhante a do argentino Medianeras, na mostra Latina, ou do alemão Tougher Yet, na mostra Internacional; uma de presença afetiva-emocional-cinematográfica como a do inglês Hibernation; ou mesmo um arrebatamento dos sentidos como o do alemão Motodrom; filmes que escalavam alturas completamente distintas daqueles exibidos em torno deles. Claro que estas são mostras muito mais seletivas do que panorâmicas – mesmo que eu as tenha seguido de maneira bem menos atenta. Mas, ainda assim, poderia ter havido um filme brasileiro excepcionalmente superior, como houve em outros anos.

Não foi o caso: a impressão que ficou de acompanhar a produção brasileira no Festival foi de que ela viveu mais de momentos esparsos ao longo de filmes do que da imposição afirmativa de algum(ns) deles acima dos outros. Parecem se misturar na memória os pontos mais fortes de alguns filmes interessantes: assim, o menino e o velho que vagam pelas paisagens áridas de O Anjo Daltônico e a criança correndo em volta do tio que assiste TV em Super Flufi, curiosamente habitam um mesmo “filme mental” depois do Festival. Mesmo no registro geralmente mais orgânico do documental, filmes viveram mais de momentos (como os primeiros minutos nos esgotos de O Desafio de Zezão) do que do todo – e pareceram tão mais bem resolvidos quão mais episódicos (caso de Viva Volta, por exemplo).

Nesta idéia de momentos, destaque-se que a mistura de registros distintos pareceu incorporada na temática de vários dos filmes mais interessantes do Festival: a utilização cômico-geográfica de cenas de filmes de Kiarostami na narrativa de Tropiabbas; a câmera subjetiva que se torna discurso em A lente e a janela; a narrativa onírico-referencial de Acossada; a ficcionalização do documental em Estertor. Misturas riquíssimas, sem dúvida, mas que, sem exceção, resultam em filmes melhores nas partes que no todo. Talvez o que melhor se saia no Festival (em parte pela duração mais curta que impede que perca sua potência como idéia) seja a conversa banal que ganha dimensão política, dentro do registro de experiência visual, em Teoria da Paisagem (foto acima).

Mas, não se pode negar: não houve no Festival todo experiência formal mais contundente que a de assistir em seqüência a Di, de Glauber, e Ver/Ouvir, de Antonio Carlos Fontoura (curta que, aliás, deixa a clara certeza de que o Fontoura dos anos 60 não tem nenhuma relação pessoal com este homônimo que faz Gatão de Meia-Idade). Não se trata de saudosismo (até porque os filmes foram apresentados dentro do Cachaça Cinema Clube, evento que atesta a força, pelo menos como potência e desejo de cinema, de uma nova geração), nem de conservadorismo (basta ver os filmes), mas apenas de atestar o óbvio: não houve neste ano um filme da estatura destes clássicos. Nada demais nisso, pois no coletivo a mostra de 2006 foi interessante o suficiente. E, se não queremos destacar um ou outro filme, podemos agrupar temas e filmes de interesse por outros critérios que chamam nossa atenção (inclusive para o futuro):

Um profissional: Os irmãos Ava (Dramática) e Eryk Rocha (Medula) apresentaram dois dos curtas mais interessantes do Festival, na exploração da linguagem do cinema. De Eryk, não me havia causado grande impressão o anterior Quimera (em trabalho conjunto com Tunga, como neste novo filme), que enveredava pela mesma seara da experiência sensorial, mas sem a junção de uma tensão narrativa e de potência de personagens com a pesquisa visual deste novo filme. No filme de Ava (foto), parece tratar-se mesmo da bela tensão/fusão de seus sobrenomes e heranças (a videoarte da mãe Paula Gaetán, o cinema do pai Glauber – os dois a quem, não por acaso, o filme é dedicado). Em ambos os casos, para além da parte visual, chama a atenção o trabalho sonoro que, se somado ainda ao belo filme de Joel Pizzini, Dormentes (também este filme de maior potência nas partes que no todo), e ao longa documental de Eryk em exibição nos cinemas (Intervalo Clandestino), focam nossa atenção no nome comum a todos eles: o do editor de som/mixador Aurélio Dias. No cinema brasileiro atual, ninguém parece estar pensando o espaço da sala do cinema em termos sonoros como Dias (o mais próximo seriam os mineiros d’O Grivo), e é bom ficarmos atentos a seu nome em filmes vindouros.

Uma produtora: Para além da polêmica já pré-instalada pela chegada de Tapa na Pantera ao circuito dos festivais pós-YouTube (o que rendeu um dos poucos debates pós-sessões mais acalorado), a paulistana Ioiô Filmes chegou a SP com o filme de Esmir Filho, Alguma Coisa Assim, já premiado na Semana da Crítica de Cannes (filme de belos momentos, mas também de outros bem fracos – mas, de longe, o melhor filme de Esmir até agora). No entanto, mesmo com esta super-exposição, o melhor filme da produtora em exibição era outro, o dardenneanno (talvez em excesso) Joyce, de Caroline Leone – que mostra, ainda, a muito saudável disposição da produtora em abraçar projetos externos. Se lembramos a boa promessa do anterior Alice, de Rafael Gomes, podemos dizer que esta produtora formada por ex-alunos de cinema da FAAP parece se estabelecer em bem pouco tempo, seja pela contemporaneidade de algumas empreitadas, seja pelo interesse dramatúrgico de outros de seus projetos, o próximo nome forte do cinema paulistano.

Um grupo de realizadores: Ainda que não tenham (pelo menos ainda) a unidade agregadora de uma produtora, também vem de São Paulo (e também de uma escola de cinema, no caso a ECA-USP) o coletivo de amigos que tem sistematicamente apresentado alguns dos filmes mais instigantes dos festivais de curtas dos últimos anos. Depois de O Lençol Branco, de Marco Dutra e Juliana Rojas; Concerto Número Três, de Marco Dutra; O Diário Aberto de R., de Caetano Gotardo; e Sobre a Maré, de Guile Martins, este ano São Paulo exibiu Memórias Sentimentais de um Editor de Passos, de Daniel Turini (roteiro também de Guile Martins, fotografia de Marco Dutra, etc) e A Estória da Figueira, de Julia Zakia (que, dentro do Panorama dedicado aos filmes de escola, parecia um objeto alienígena em meio a mediocridade do todo apresentado). Em todos estes filmes, chama atenção o domínio da linguagem do cinema e atenção aos gêneros e artifícios de construção desta, mas ao mesmo tempo um profundo interesse humano por seus personagens, seja pelo viés mais realista de Dutra, Turini e Gotardo, seja pelo mais onírico de Martins e Zakia. Deste coletivo de obras, que hoje já pode ser considerado em razoável número, a certeza que fica é a de uma potência e desejo de cinema que esperamos que as águas nem sempre calmas dos oceanos pós-escola de cinema possam abraçar com carinho.

Um formato: Curiosamente pouco numerosa (só quatro filmes), a animação foi talvez o gênero que mais deixou água na boca no Festival, sendo responsável inclusive pelos melhores momentos de pelo menos um filme de ficção (Super Herói Fora de Série). Grande parte da força veio de dois filmes: Yansan, de Carlos Eduardo Nogueira; e Tyger, de Guilherme Marcondes. Se nenhum dos dois é plenamente bem sucedido (o primeiro pela duração excessiva e o apego radical à narração em off um pouco cansativa; o segundo pela indisposição em desenvolver narrativamente seu encantamento visual), ainda assim foram dois dos principais momentos de afirmação de linguagem de cinema que o Festival mostrou. Nogueira, pela capacidade de construção de um ambiente através do cromatismo extremo e do traço atento aos detalhes culturais numa mistura inusitada da tradição africana com a modernidade nipônica; Marcondes, pelo impressionante domínio da mistura de técnicas. Produtos antagônicos na origem (o primeiro é fruto de um trabalho bastante pessoal e de um edital público; o segundo vem de uma das maiores produtoras do país), ambos fazem ver que há uma nova geração de animadores prontíssima para levar o gênero ao próximo nível no país. A ver, somente, se há demanda/recursos que permitam que esta capacidade vá além do ambiente da publicidade como ponto focal. Os dois outros filmes exibidos (o coletivo EngoleDuasErvilhas e Santa de Casa, de Allan Sieber) deixaram mais um gosto já conhecido do trabalho de realizadores que antes tinham ido mais longe em suas propostas (especialmente Sieber, que aqui pareceu mais satisfeito em citar a si mesmo e homenagear um grupo a que se sente devedor – Jaguar, Aldir Blanc, Fausto Wolff, etc – do que em desenvolver a narrativa do filme para além da crônica que o originou), mas que já conhecemos em suas capacidades.

Uma tendência: Há 3 anos, o Festival de Curtas resolveu incorporar parcialmente as bitolas digitais na sua seleção, criando na época a seção mista Curta o Formato (o Panorama Brasil segue sendo exclusivamente para películas). Reservada para trabalhos de até 15 minutos, esta seção visa mostrar aqueles que, segundo a comissão de seleção, mais exploram as especificidades do formato curto. O que pudemos notar no entanto este ano, depois de três seleções deste programa, é que os trabalhos digitais começam a mostrar uma característica um tanto repetitiva e um pouco desestimulante: ao passo que os curtas em película apresentavam recorrentemente as categorias do “mini-longa” e do “curta-piada” (hoje retirados no Panorama), os vídeos do Curta o Formato parecem se aproximar muito tanto da vinheta/rascunho de idéia quanto perigosamente da videoarte/linguagem da web. Cabe perguntar: estariam alguns destes filmes realmente mais próximos do curta do que os minilongas ou as piadas? Para cada trabalho que potencializa a realização barata e o formato caseiro em uma narrativa tipicamente de cinema, como espaço de exibição (Ariel, Estertor), há uma série de outros que simplesmente parecem “disparos de câmera” voltados para outros fins e espaços. Fato é que, se o Festival de Curtas de SP tem tentado se adaptar a distintas realidades que se apresentam na produção de curtas (e mesmo uma mostra circunstancial como a do Lounge Skyy demonstra isso claramente), talvez seja hora de repensar o Curta o Formato, ou conceituar melhor o que é o específico do curta segundo o Festival, pois isolar alguns vícios da película apenas para receber alguns do digital não parece ser o que o Festival planejava ao criar esta seção. Também, uma vez que digital se mistura a película nas mostras Internacional e Latina, vale perguntar porque hoje o Curta o Formato seria o único espaço do digital brasileiro. A criação desta mostra foi uma idéia sem dúvida muito ousada e criativa do Festival, mas agora, três anos depois, parece ser a hora de revisa-la e depura-la, para melhor servir aos fins pensados pelo próprio Festival. E, quiçá, criar ainda outras seções para a Videoarte, a Web, etc.

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