Dália Negra (The Black
Dhalia),
de Brian De Palma (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
Um
clássico cinema moderno
Curiosos paralelos ligam este Dália Negra, de Brian De
Palma a Cidade dos Sonhos, de David Lynch – para além de
serem grandiosos exemplos de cineastas no ápice do seu domínio
da linguagem e dos seus temas de predileção. Ambos são filmes
efetivamente assombrados pelo cinema americano: nos dois Hollywood
(a cidade, mas acima de tudo o mito) é uma das personagens principais,
servindo de espaço onde a luta pelo estrelato de jovens americanas
terminará em mortes violentas, e onde o desejo pelos holofotes
e pela fama colocará em evidência os bastidores de uma indústria
de sonhos construída sobre estruturas um tanto frágeis.
Curiosamente, ambos são realizados por diretores
que, começando com trabalhos independentes, logo foram incorporados
ao establishment dos grandes estúdios americanos (ainda
que com quase uma década de diferença). Uma vez lá dentro, os
dois viveram muitos momentos de tensão na sua relação com o sistema
de produção, indo de eventuais sucessos (de bilheteria e/ou crítica)
a filmes que fracassaram e colocaram sob risco suas carreiras
americanas. E. finalmente, ambos acabam filmando seus últimos
projetos somente por terem sido acolhidos por produtores de fora
de Hollywood, principalmente através de contatos europeus. Seria
um pouco exagerado considerar Dália Negra e Cidade dos
Sonhos como “filmes de exílio”, no entanto é mais do que importante
entender as conflituosas relações de seus diretores com o cinema
hollywoodiano para compreender melhor seus projetos. Neste
sentido, nenhuma imagem pode sintetizar melhor Dália Negra
do que saber que ele reconstrói Hollywood (inclusive o clássico
nome da cidade escrito nas montanhas), filmando na Bulgária –
assim como a grande frase do filme vem de um personagem secundário:
“Hollywood will fuck you, when no one will” (algo como
“seja como for, é certo que Hollywood te foderá”).
No
caso de De Palma, é claro que a relação com a história do cinema
americano sempre foi parte essencial de seu cinema, até por sua
inserção no grupo de cineastas surgidos nos anos 70 e que mais
diretamente representou a chegada do cinema moderno ao seio de
Hollywood. Eram jovens cineastas, muitos formados em escolas de
cinema, e com um profundo conhecimento e admiração pelo cinema
clássico americano. Deles, certamente De Palma foi o que mais
jogou com o cinema de gênero ao longo de sua carreira, retrabalhando
figuras de estilo, tramas, narrativas e personagens ao longo do
caminho. Dália Negra certamente dá continuidade a este
projeto, ao mesmo tempo em que o coloca em questão de várias maneiras.
Sua
localização nos anos 40, em plena Era de Ouro hollywoodiana,
é um primeiro ponto a se considerar. O filme vai se inserindo
no próprio ambiente do cinema americano de então, ainda que pelas
bordas menos glamourosas deste: de um lado os financiadores
do sistema americano de cinema e suas relações não muito honestas
com o mundo dos negócios, de outro os testes de elenco com aspirantes
a atrizes e o mundo de figurantes sendo levadas para o trabalho
em caminhões lotados de sub-empregadas, que lembram idas de bóias-frias
para a colheita (e tanto as cenas em preto e branco dos testes
quanto o interrogatório com a figurante são duas das grandes cenas
do filme, com impressionante poder fantasmagórico). Não é nem
um pouco por acaso que o local do crime que está no centro do
filme é um estúdio/cidade cenográfica abandonada: espaço de construção
do sonho e de encarnação do pesadelo, ao mesmo tempo.
A grandiosidade do cinema de De Palma é marcada
pelo fato de que, ao mesmo tempo em que vai insidiosamente destrinchando
as vísceras de um sistema de produção de imagens e significados,
ele constrói seu filme rigorosamente dentro das regras de um dos
gêneros mais intimamente ligados ao período – o film noir.
Desde a narração em off um tanto cínica, passando pelas
figuras das mulheres fatais loiras e morenas (lembrando Lynch,
de novo), De Palma mostra que conhece intimamente aquilo de que
trata. Desde a primeira seqüência, com a batalha nas ruas de Los
Angeles (que, em sua artificialidade espetacular, lembra muito
o começo de Gangues de Nova Iorque), o diretor deixa claras
as regras do jogo: questionar as construções das imagens do cinema
através da utilização mais extrema das suas ferramentas de linguagem
e gênero (De Palma constrói cenas como poucos, e aqui podemos
citar pelo menos duas já clássicas: a do crime nas escadarias
de um prédio, e o confronto final na casa – também nas escadas,
espaço depalmiano por excelência). Trata-se de um projeto
eminentemente moderno de cinema, o que torna especialmente cínico
e brilhante a observação que um personagem faz, quase no final
do filme, sobre arte moderna.
É
neste mundo que o ingênuo policial Dwight “Bucky” Bleichert vai
sendo inserido aos poucos por De Palma. Sua trajetória é uma que
já vimos muitas vezes no cinema do diretor: um olhar a princípio
ingênuo que precisa reaprender a ver as imagens e contextualizá-las
ao longo do filme. São especialmente impressionantes, neste sentido,
as cenas de sexo do filme, onde Bleichert é levado de sua passividade
momentânea ao tesão selvagem simplesmente pela construção das
imagens das duas mulheres, pólos opostos e complementares como
as cores de seus cabelos. Nada que se vê é exatamente o que parece,
e num jogo constantemente ilusório de espelhos e sombras (elementos
presentes no filme inúmeras vezes), o inocente de hoje é o culpado
de amanhã – e vice-versa. Por trás de cada cena se desvela uma
outra – e o cineasta constrói uma seqüência quase didática para
ilustrar isso, com um movimento de câmera sobre o cenário da aparente
cena que acompanhamos, que revela uma outra ainda mais importante
se desenvolvendo por detrás desta.
Olhar
e construir aquilo que se deseja ver são o centro das preocupações
do filme (de novo, as cenas dos testes de elenco com a atriz surgem
com sua importância redobrada). Se o espectador, como Bleichert,
precisa questionar constantemente o que vê, ao mesmo tempo é inegável
o conforto e o prazer de aceitar algumas de suas construções como
aquilo que preferimos e queremos ver. E é este o final que De
Palma nos dá, onde, com uma correção de diafragma, ele indica
a escolha do olhar de Bleichert (e do espectador, se ele assim
desejar). Entre viver a angústia das incertezas e dos traumas,
a decisão pela construção da imagem desejada de uma mulher. Imagem
falsa conscientemente construída, reconfortante e perturbadora
ao mesmo tempo. Este é o cinema, segundo De Palma.
editoria@revistacinetica.com.br
|