O Código Da Vinci (Da Vinci
Code),
de Ron Howard (EUA, 2006)
por Cléber Eduardo
Nem realista, nem fantasioso
É um alívio entrar na sessão de O Código da
Vinci sem ter lido o best-seller homônimo, sem ter opinião
sobre Don Brown, sem saber detalhes da trama policial com pose
de historiografia independente. Antes de ser deslegitimado por
não ter feito a lição de casa, levanto aqui a possível vantagem
do “olhar virgem”, que pouco sabe sobre a experiência a ser vivida
diante da tela. Ignorar livro e seu fenômeno midiático talvez
seja a condição para se ver o filme em si mesmo, como soma das
características de cada plano, como construção de um mundo que
deve resolver-se por sua lógica interna, sem depender do conhecimento
de sua matéria-prima escrita ou de considerações prévias sobre
as razões de seu êxito. Se o filme mantém-se na mesma premissa
defendida desde Kuleshov e Pudovkin nos anos 20, no sentido de
a ficção ter de conter todo seu mundo, sem depender do mundo de
fora dela para se sustentar, a melhor forma de avaliar o resultado
é não levar em conta a adaptação. Importa o que nos é dado a ver.
Código da Vinci é um thriller investigativo
e tagarela, cheio de explicações e resumos de seus contextos.
Enquanto filme de gênero é apenas medíocre, primeiro por conta
de sua baixa tensão, depois em decorrência da concepção visual
um tanto burocrática. Nada da natureza da imagem e dos sons é
capaz de tirar essa produção de sua meta: explicar aos espectadores
tudo bem direitinho para ele entender quem está perseguindo quem,
o quê e por quê. O compromisso do diretor Ron Howard, portanto,
é o com que se diz em cena, não com o que se mostra dela.
Isso porque há nesse filme sem grandes eventos
cinematográficos um grande evento histórico. A matéria-prima de
sua investigação é um segredo religioso, que, se desvendado, exporá
a verdade bíblica em seu caráter de construção conveniente e vinculará
a igreja católica a uma mentira milenar. Qual seja: Cristo teria
engravidado Maria Madalena, que deu origem à uma filha, Sara,
e até hoje possuiria descendentes pelo mundo. Em suma: toda esse
diz-que-diz em torno de livro e filme reside, em última instância,
na briga entre quem desconfia da castidade de Cristo e quem afirma
sua assexualidade. O caráter divino de Cristo, por essa lógica,
estaria na falta de desejo. Expressando o desejo, ele seria só
homem. Todo o percurso narrativo é empreendido para se descobrir
onde está o túmulo de Maria Madalena, o Santo Graal (um corpo,
não um cálice), e todo o conflito está no confronto com os defensores
da manutenção desse segredo milenar, que, representados pela figura
vampiresca de um monge serial killer, um anjo exterminador,
são capazes de matar quantos for preciso para manter tudo na clandestinidade.
Estabelece-se um duelo entre a ciência e a religião,
entre o conhecimento e os dogmas, entre a verdade e o discurso,
com inclusão da Opus Dei, Constantino, Isaac Newton e Leonardo
Da Vinci, todos enredados nas verdades e mentiras sobre a sexualidade
ativa ou adormecida de Cristo. A partir do assassinato do curador
do Louvre pelo tal monge serial killer, o professor de
simbologia Robert Langdon (Tom Hanks) ensina a neta do morto,
Sofie (Audrey Tautou), que nada sabe desses assuntos, todos os
seus conhecimentos sobre cavaleiros templários e sobre o Primado
de Sião. O blábláblá tatibitati sobre o outro lado da história
de Cristo e da igreja católica é intercalado por perseguições
pouco animadas – cuja matriz dramática está em O Exterminador
do Futuro, de James Cameron, agora com a descendente do salvador
do passado no lugar da mãe do salvador do futuro.
A natureza nada espetacular dos protagonistas
poderia torná-los mais vulneráveis na caça ao Santo Graal. Nenhum
deles tem habilidades físicas extraordinárias para esperarmos
alguma solução mirabolante em situações complicadas. No entanto,
essa aparente limitação é compensada por uma espécie de proteção
divina, que, de maneira improvável, os livra da morte. Não haveria
problema nesses absurdos duros de crer se os heróis fossem os
de Missão Impossível 3 ou da série 007, porque em
ambos há um pacto entre espectador e filme, com a aceitação de
momentos disparatados e só capazes de serem vistos no cinema.
Mas até por se apoiar em especulações conectadas à realidade e
à história da humanidade o thriller dirigido por Ron Howard evita
assumir descaradamente sua porção de espetáculo de gênero, mas
também não declara sua condição de thriller realista e menos seguidor
da convenção do corre-corre violento.
Entre o provável e o fantasioso, fica com um e
outro, mas na verdade sem nenhum. Em vez de aproveitar-se do fato
de narrar uma trama extraordinária vivida dentro de certa lógica
de gente comum, o filme tenta diminuir o lado comum de seus protagonistas,
fazendo deles figuras quase sagradas, com o corpo fechado e traumas
do passado a resolver. Essa aura em torno do sábio e da herdeira
de Cristo joga a da intensidade narrativa para escanteio. Sabemos
de antemão que eles sobreviverão a todos os perigos, que Cristo
não passará pelo teste de DNA, que a prova de sua condição paterna
é vista menos como um atentado a fé e mais como um redirecionamento
dela. O Código da Vinci mostra-se assim incapaz de estabelecer
uma dinâmica narrativa e dramática à altura de sua provocação
histórica.
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