Dias Selvagens (Days of Being Wild),
de Wong Kar Wai (Hong Kong, 1991) por Cléber
Eduardo
Uma experiência retroativa Não se
chega a Dias Selvagens, segundo filme de Wong Kar Wai, sem ter o “depois”
em mente, ou seja, os seus trabalhos posteriores, de Amores Expressos a
2046, aos quais tivemos acesso nos últimos 12 anos. É inevitável procurarmos,
então, nesse longa de começo de percurso os sinais já característicos de seu estilo
e de sua visão das relações afetivas (tema central de Wong Kar Wai). Alguns já
estão lá: o romantismo amargo envolvendo mulheres de vestidos estampados, a inviabilidade
da transformação do amor e do desejo em “aliança”, as inebriantes cenas de corpos
em contato dentro de quartos, um homem dividido, o passado como motivo das feridas
do protagonista. Outros sinais distintivos, sobretudo de ordem estética, estão
apenas esboçados, talvez à espera de uma outra estrutura de produção, que, nos
filmes seguintes, potencializou sua opção pelos excessos de ornamentos, da luz
à cenografia, dos figurinos às músicas, como vem fazendo nas experiências dos
anos 2000. O cineasta tem empregado seus recursos de produção
a serviço de uma moldura artificializada, que procura expressar sentimentos por
meio de formalismos, com uma imagem consciente de si mesmo, mas convicta em seu
potencial sensorial. É um mundo só possível no cinema e sem compromisso com a
experiência direta, a não ser como inspiração, que exala orgulho do esteticismo
sem temer a asfixia, mas que, com freqüência, parece deslumbrado demais com sua
própria capacidade de “invenção de mundo de museu de cera fashion”. Esse
projeto está apenas rascunhado em Dias Selvagens. O
caráter de projeto autoral ainda incompleto e gaguejante do filme, só possível
de assim ser considerado por conta de nosso olhar retroativo (de 2046 para
Dias Selvagens), talvez seja o mais singular aspecto a ser observado. Se
já reconhecemos em alguns planos o investimento na plasticidade, como forma de
artificializar a experiência e assinar a imagem, essa mesma plasticidade sofre
solavancos no andamento narrativo, seja pela variedade de travelings agressivos
(a seguir a caminhada de personagens em corredores e a transitar por ambientes
com preocupação em evidenciar a caligrafia da câmera,) seja pela inserção de sequências
de brigas físicas, que reivindicam do cineasta uma habilidade para filmar uma
quantidade significativa de fragmentos e colocá-los para dançar aceleradamente
uns com os outros, não negando sua proximidade com a cultura visual do cinema
industrial de Hong Kong.
Dias Selvagens é mesmo Wong Kar Wai em
seus dias ainda selvagens, ainda cru em sua proposta, ainda arejado, nos dando
a possibilidade de crer na existências dos seres, ainda sem transformá-los em
imagens de vidas (sacrificando as imagens com vidas). Também percebemos mais claramente
a consciência da matriz masculina do noir e de seu reprocessamento pelos
europeus (Jean-Pierre Melville, Jean-Luc Godard), com o protagonista entediado
e cheio de “dodóis” afetivos relacionando-se com indiferença, crueldade e violência
com duas mulheres e sua mãe adotiva. No entanto, o “Guy”, o homem que não afina,
tem sua fragilidade: o desconhecimento da mãe natural. Essa psicologia de brechó,
que parece carregar um risinho de si própria na maneira de ser apresentada, traz
o lado interiorizado do cineasta (expresso nas narrações em primeira pessoa em
outros filmes dele). É sua tentativa de fazer as imagens, claramente nascidas
de outras imagens, não como visualizações de experiências diretas, terem uma alma
e não apenas corpo. Não tenho certeza se consegue. Ou talvez até chegue perto
de conseguir aqui, justamente por ser um esboço, não o castelo erguido com solos
de luz e enfeites em seus filmes mais recentes.
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