À Prova de Morte (Death Proof),
de Quentin Tarantino
(EUA, 2007)
por Eduardo Valente

No cinema

Em sua versão internacional (ou seja, desvinculada diretamente do Planeta Terror, de Robert Rodriguez), À Prova de Morte é aberto com uma série de cartelas de créditos, logomarcas e grafismos que remetem à experiência que estes dois filmes, de alguma maneira, buscam emular: a dos filmes B americanos dos anos 70. É um começo que assusta um pouco porque, por mais fetichista que Tarantino sempre tenha se revelado com o cinema daquela década, aqui fica um pouco o medo de que ele se submeta a tão somente fazer uma homenagem, com algo de paródia carinhosa daquele cinema – nada adicionando a ele ou a hoje. No entanto, logo este medo é suplantado pela experiência absolutamente original que é este À Prova de Morte, tão mais importante como produto do cinema atual.

Sim, porque inegavelmente Tarantino quer plantar o seu filme no hoje, e não é por acaso que faz questão de colocar em cena ícones da modernidade como o iPod e as mensagens SMS. Plantados dentro de um filme que retoma em vários sentidos uma estética dos anos 70, trata-se de um anacronismo ao contrário, do tipo que ao mesmo tempo que desloca o espectador chama a atenção para o seu entorno. Há uma outra anedota presente no filme que é reveladora deste sentido que o diretor tenta dar a este seu autêntico “filme experimental”: quando as dublês comentam que hoje em dia quase todas as cenas de ação são feitas por computador, o que tira do cinema um sentido de urgência que ele tinha nos velhos tempos dos efeitos “físicos”.

E é aí que descobrimos o que propõe Tarantino com essa retomada de uma determinada produção americana dos anos 70: trata-se, antes de tudo, de louvar uma relação do espectador com o objeto fílmico, aquela que fascinou o próprio Tarantino desde sempre. Porque, assim como nos vários outros gêneros que ele sempre fez questão de louvar (o spaghetti western, os wu xia, filmes de ação em geral, blaxpoitation, etc), o que chama a atenção dele na chamada experiência “grindhouse” é uma relação físico-mitológica entre o espectador e o que ele vê na tela. É uma experiência cuja completude não vem nem da grandiosidade da produção/efeitos, nem da colocação em questão de “importantes temas”, mas sim do efeito mais profundamente humano que o cinema pode ter: o de mexer com a emoção e a experiência física mesma do espectador (pelo medo, excitação sexual, fetichismo, palpitação). E é disso que trata À Prova de Morte, afinal.

De fato, a experiência de ver o filme é uma de catarse. Confirmamos aqui vários dos talentos que já conhecemos de Tarantino (descoberta de atores, escritura fascinante de diálogos, capacidade de misturar uma fauna absolutamente improvável de personagens com a criação de um universo coerente e fascinante em si mesmo), mas para além disso ele adorna seu filme com dois momentos climáticos distintos (o filme é praticamente dividido em duas partes), absolutamente impressionantes. Um deles, pela potência radical e chocante, uma explosão mesmo de adrenalina. O outro, pelo motivo contrário: um dó de peito de uma seqüência de ação e velocidade longuíssima, que nunca se torna repetitiva ou desinteressante.

Se é inegável que À Prova de Morte faz inúmeras referências diretas aos filmes anteriores do diretor, na maioria das vezes de maneira absolutamente jocosa (caso do assobio tornado toque de celular), isso parece menos uma gratuita auto-referência e mais a delineação de um trajeto. Porque, de fato, este parece ser o filme que Tarantino sempre esteve se preparando para fazer. Um filme onde tudo o que era “elogiável” mesmo para a alta cultura cinematográfica em seus filmes anteriores (a cronologia desmontada, o caráter um tanto épico das suas narrativas, a presença de grandes atores-símbolos) fica para trás (ou no mínimo um tanto de lado), e o que importa mesmo é o movimento, são as imagens, são os sons, a música, a completa imersão do espectador numa catarse constante banhada de sexo, de violência, de artifícios, de identificação, de cinema enfim. Porque À Prova de Morte se propõe a ser isso: cinema, puro e simples, num tipo de espetáculo que simplesmente não poderia ser (re)produzido por nenhuma outra forma de arte.

Setembro de 2007


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