nas locadoras
A Lenda Assassina (Deer Woman),
de John Landis (EUA, 2005)
por Francis Vogner dos Reis
O que é, exatamente, uma mulher-cervo?
John Landis faz o tipo que transforma tudo em piada – inclusive
a premissa de A Lenda Assassina (Deer Woman no original
– Mulher-Cervo em português), seu episódio para a série Masters
of Horror. A indagação acima, por exemplo, dá início a uma
conversa entre os dois policiais que investigam uma série de assassinatos
bizarros, em que as vítimas, todos homens, morrem esmagados por
coices de cervo – com o curioso detalhe de que todos estavam sexualmente
excitados na hora da morte, e pouco tempo antes foram vistos acompanhados
de uma morena deslumbrante. Um índio, que trabalha no cassino
em que conversam, é quem responde a pergunta acima.
A comédia, nesse caso em uma roupagem enxuta e
objetiva, é algo essencialmente cinematográfico, daí a popularidade
dos curtas burlescos no início do cinema. E, apesar dos elementos
de horror, A Lenda Assassina é a melhor comédia de Landis
em muito tempo. Ele sabe uma coisa que muitos de seus colegas
cineastas de comédia ainda não entenderam: vale mais a forma de
como se conta uma piada do que o seu conteúdo. O espírito da coisa
está na encenação da piada (a voz, o gestual, o modo como o piadista
conduz os “tempos” da narrativa). A arte do piadista, em primeira
instância, é seu timing – como bem sabe Eddie Murphy, genial
parceiro de Landis em alguns de seus melhores trabalhos. O grande
contador de piadas é quem pega um material, às vezes obviamente
nulo, e a partir disso cria um universo – o que faz a diferença
de um Blake Edwards para um Shawn Levy, por exemplo.
Incitar a contradição, o choque e muitas vezes
atingir o limite do absurdo é a gênese da arte de Landis, seja
na história sobre o príncipe africano Akeem em Nova York (Um
Príncipe em Nova York), seja na troca de papéis entre um mendigo
e um executivo da bolsa de valores (Trocando as Bolas),
seja no Lobisomem Americano barbarizando em Londres. Ou, por fim,
uma lenda indígena cometendo assassinatos. Se todos seus personagens
pertencem à noite, é porque não podem fazer parte de um outro
universo senão daquele em que nada requer compromisso com a formatada
vida cotidiana. A noite é quando os papéis podem ser trocados,
os personagens tomam forma, onde a lenda ganha vida e a ficção
existe como regra.
Em meio à lenda, aos assassinatos e aos relatos,
Landis demonstra sua capacidade única de fabulação. Seus personagens
se põem a fabular, como no momento em que o detetive Faraday imagina
possíveis versões dos assassinatos, antes de saber da lenda da
Mulher-Cervo. Como as vítimas, certamente preparadas para um ato
sexual podem ser mortas por coices de cervo? As possíveis (e absurdas)
versões levantadas pelo detetive rendem os momentos mais engraçados
e criativos do cinema nos últimos tempos, assim como os palpites
da menina que trabalha no necrotério ou os desenhos do próprio
detetive a partir dos relatos que ouve sobre os casos esquisitos
que investiga. John Landis faz um estudo sobre a capacidade de
ficcionalização dos personagens. Esse universo existe a partir
do ponto em que os personagens dão substância a esse absurdo,
assim como a força e a vida de uma piada depende das capacidades
do piadista, que, se não é (re) criador, não é piadista.
- Certo, certo, tem uma história que meus pais
costumavam contar: quando os Pohancas saem para uma reunião social,
a mulher-cervo aparece no mato e entra na festa sem ser notada.
Ela é tipo a mulher mais linda do mundo, muito sensual, uma deusa
da cintura pra cima.
- Mas da cintura pra baixo ela é um cervo.
- Um cervo?
- Ela tem patas de cervo.
- Duas ou quatro patas?
- Vocês não estão falando sério!
- É muito sério.
- Duas patas.
O
diálogo acima sobre a natureza da lenda da mulher-cervo (interpretada
pela mineira, de Uberlândia, Cinthia Moura) é para ser visto.
O índio, que interpreta um índio em um cassino de motivos indígenas
(que por sua vez interpreta um índio dentro do filme), é quem
revela a lenda da mulher com patas de cervo que atraí homens para
matá-los. Ele conta como se fosse uma piada. É interessante como,
em diversos momentos do filme, Landis dá importância capital à
oralidade e o gestual dos personagens vale os elementos de encenação
do relato que eles simulam. Tanto para a garota do necrotério
que recebe os corpos das vítimas, quanto para o caso na delegacia
do poodle que mordeu e matou um macaco, ou mesmo do detetive
Farraday contando ao oficial Reed a história de sua ruína pessoal,
o mais importante é a maneira de organizar os relatos, de forma
sombria, e não especificamente os acontecimentos relatados. .
- Bem, ela entra na festa e encontra um cara,
ela o atrai para um lugar isolado, transa com ele e ai o coiceia
até a morte.
- Por que ninguém percebe que ela tem patas de cervo?
- Porque ela as cobre.
- Por que? Por que ela faz isso? Qual o motivo dela?
- Por que tudo para vocês precisa ter uma razão? É uma
mulher com patas de cervo! O motivo não é questão aqui.
- Certo. Como eles a capturam?
- Como assim, capturam?
- Como termina a lenda? Como eles matam a mulher-cervo?
- Eles não a matam. Ela mata aqueles que seduz e depois
desaparece na floresta.
A obrigação da existência de um motivo é a verossimilhança
que bate à porta. E como já se sabe, espectador e personagens
sem imaginação são os que saem mais lesados no jogo que o cinema
estabelece. Imaginação aqui é a capacidade de acreditar na lenda,
é a potência de origem do filme. A primeira dupla de policiais
a investigar o caso abandona-o porque não tem respostas – ou seja,
não têm imaginação. Com uma lógica pragmática, a dupla de policiais
não consegue conceber a natureza da lenda: ela existe e o objetivo
dela é o absurdo.
Resposta não é moeda de troca, é somente a busca
de legimitimação da existência e da motivação da “lenda assassina”.
Perguntar o porquê é perguntar o motivo de existência de um filme
como este. Não há uma explicação racional para a existência de
uma mulher bonita com duas patas de cervo que seduz os homens
e os mata a coices. Lenda Assassina é um tratado em favor
do estatuto da ficção, algo que o cinema fantástico nos últimos
anos certamente tem vergonha, ou sentimento de culpa, em adotar
sem restrições – vide os filmes que precisam se legitimar em cima
da dicotomia “verdade absoluta-mentira manipuladora” como a trilogia
Matrix, por exemplo. Além dos irmãos Farrelly, John Landis
é o último grande cineasta a saber encenar uma comédia, a contar
uma piada.
- É a coisa mais idiota que eu já ouvi!
- É só uma história. É só uma lenda Palacan misógina e
tola e vocês estão agindo como se fosse uma teoria séria num caso
criminal.
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