Deixa Ela Entrar (Lat Den Rätte Komma In),
de Tomas Alfredson (Suécia, 2008)
por Francis Vogner dos Reis

A alegria do desejo e da destruição

Já se foi o tempo que a subversão era sinônimo de filmes “fora de padrão” que andavam na contramão (ou simplesmente colocavam em perspectiva) toda matéria cinematográfica narrativa, mimética e teatral. Não por acaso é evidente que hoje o cinema de um Paul Verhoeven é mais provocador que quase todos os cineastas de festivais. Significativo, neste panorama, este Deixa Ela Entrar: é daquela classe de filmes que tiram originalidade do que em princípio é convenção, no caso um filme de vampiro e um drama de adolescente freak (apesar de a chave em Deixa Ela Entrar ser mesmo a do horror). Até ai nenhuma novidade em um terreno em que Jacques Tourneur ou John Carpenter conseguiram o que era aparentemente improvável: fazer de um gênero considerado de segunda classe um atentado contra a insipidez criativa de grande parte de seus pares, o conformismo “artístico” de muitos dos filmes dito sérios e o progressismo caipira dos corretos filmes políticos. Até por isso, Deixa Ela Entrar foi, talvez, a única obra subversiva no panorama de cinema contemporâneo visto na última Mostra de SP.

O filme de Alfredson já seria relevante se fossemos vê-lo somente como uma crônica em tom fabular sobre dois pré-adolescentes fora de eixo. Mas ao invés de optar por fazer um filme simpático de doces personagens excêntricos e marginais, o cineasta prefere – assim como seus personagens – caminhar no limite entre a cumplicidade com o que é amoral e a sensualidade do que é obscuro ou inominado. Isso não o faz automaticamente melhor filme, mas impressiona porque, em sua limpidez dramática e estética, ele ultrapassa o “bom tom” no tratamento de suas questões e coloca a serviço disso uma falta de pudor no que diz respeito à compreensão dos corpos e à violência e sexualidade.

Se o personagem Oskar, de doze anos, caçoado pelos moleques da escola, encontra na garotinha Eli alguma identificação não é só pelo fato de os dois serem “esquisitos”, mas porque daí, e de ambos os lados, começa a se configurar um desejo sem nome, sem gênero e na contramão das circunstâncias. Ela sempre diz “eu não sou menina” – e para ele isso não é uma questão, seja lá qual ela for. Ficamos sabendo que Eli não é menina talvez porque, segundo ela mesma, “tem doze anos há muito tempo” - além do que há uma imagem bastante ambígua de sua genitália. A própria relação da garota com seu servo, um homem idoso que mata as pessoas para conseguir o sangue que serve de alimento a Eli, tem uma clara conotação afetiva e sexual que parece ser muito antiga. Os corpos de Eli e de Oskar vivem uma polaridade instintiva de vitalidade e destruição. Existe a necessidade impulsiva e radical de destruir o outro para a afirmação (e a sobrevivência) de si mesmo, e o impulso sexual que se constitui como desejo puro, sem uma configuração que lhe dê nome, idade e gênero.

Sobre a gênese do desejo. É como se a pulsão de destruição e de vida caminhassem juntas. A história de Oskar com Eli é a de um enamoramento e de uma descoberta do outro. A porção da história do embate entre Tom e o grupo de garotos que o espanca e a de Eli com suas presas é a da necessidade de sobrevivência na destruição do outro. E como o diretor faz isso? Com prazer, não exatamente um prazer sádico, mas um gozo que só o cinema (e a ficção de modo geral) sabe oferecer. A cena em que acompanhamos a decepação dos garotos embaixo da água da piscina (só os garotos e Eli fora) é feita com uma alegria fundamental, assim como o beijo de Oskar na Eli ensaguentada. A adesão do protagonista e do próprio diretor à vampira Eli não é realizada com cautela e nem com distanciamento. Este não é um filme de Gus Van Sant. A proposta do filme é a de imersão total, o que só um filme de gênero pode propor. Não há como ser covarde em uma fábula sobre as paixões de desejo e destruição. Por isso, o que confere perplexidade é que tudo isso é feito com radicalidade e, o que é importante, com gosto.

Novembro de 2008

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