in loco - cobertura dos festivais
Depois da Batalha (Baad el Mawkeaa), de Yousry Nasrallah (França/Egito, 2012)
por Raul Arthuso

Melodrama da ressaca

A primavera árabe e, especialmente, a ocupação da praça Tahrir foi o movimento de libertação (ou "Revolução" como chamam as personagens de Depois da Batalha) com o maior registro de imagens da história. Não apenas pela cobertura jornalística ocidental que, ainda que superficialmente na maior parte do tempo, se deteve de forma intensa aos acontecimentos no Egito e no mundo árabe em 2011, como pela quantidade de imagens feitas pela própria população nas ruas do Cairo e transmitidas ao mundo via YouTube. Assim, desde um documentário como Tahrir até pequenos fragmentos de videos caseiros, as imagens tornadas públicas dos eventos do Cairo até aqui são em sua grande maioria captadas no calor do momento.

Como o próprio título indica, Depois da Batalha se imbui de um gesto poderoso: fazer uma ficção envolvendo os eventos de Tahrir passada a grande efervescência da revolução. O filme se dá a missão de fazer um balanço da vida pós-revolução, abordando a classe média intelectual urbana, as famílias de trabalhadores sub-empregados do subúrbio e os ricos fazendeiros, espécie de coronéis locais. Para isso, Yousry Nasrallah parte de um evento específico dentro de todos os acontecimentos: o violento ataque de um grupo de cavaleiros à praça Tahrir em meio à ocupação pedindo o retorno de Moubarak. Partindo do encontro de uma jovem manifestante engajada na revolução e seus ideais com um dos cavaleiros que participou do ataque, Depois da Batalha é uma grande tentativa de acerto de contas com o país, passando, por exemplo, pela condição de repressão às mulheres, das crianças nas escolas, da dominação dos "senhores feudais" locais e do emprego para a população.

Chama a atenção no filme justamente seu impulso em escrutinar todos os aspectos possíveis do novo momento. Nasrallah não tem medo de fazer longas sequências de grupos debatendo suas situações ou criticando algum aspecto da revolução. Também não falta pudor em criar uma série de cenas cuja função evidente é deixar que as personagens expressem sua desilusão com a política, a revolução, o futuro. Uma confiança na cena como possibilidade de expressar-se para além da superficialidade do jornalismo e da fragmentação da internet. Daí se tira também o profundo desejo de Depois da Batalha em ser, até um pouco forçosamente, um filme da ressaca, objeto de expressão de uma latente desilusão ainda não comentada.

Se há essa articulação em torno do conteúdo político, Depois da Batalha é, por outro lado, um melodrama. Reem fica fascinada por Mahmoud; ele, contudo, foi um dos cavaleiros da praça Tahrir, ataque do qual Reem foi uma das vítimas (algumas mulheres foram molestadas pelos simpatizantes de Moubarak). Esse fascínio (cuja tensão sexual é evidente durante todo o filme) é condenado pela sociedade, tanto pelos companheiros de Reem, que vêem Mahmoud como um reacionário, quanto pelos moradores do bairro do cavaleiro que enxergam na ativista uma ameaça ao poder estabelecido (dos homens sobre as mulheres, dos muçulmanos, dos senhores feudais locais). Esse "Romeu & Julieta" não deixa de ecoar os grandes melodramas de Douglas Sirk, nos quais a luta contra o destino envolve uma grande tensão social.

Falta a Depois da Batalha, contudo, o que sobra a Sirk: o domínio pleno da linguagem que faz de sua mise-en-scène um desvirtuamento do destino, como um novo rumo que se abre numa auto-estrada, permitindo às personagens seguir um caminho que bate de frente com o jogo social. Nasrallah filma de forma mais direta, valorizando o texto e o acting. Se o melodrama de Sirk tem em sua hiper-mise-en-scène seu alto poder de fogo, Depois da Batalha é um filme do drama, da câmera que filma o mais diretamente possível o texto político que eventualmente (ou melhor, geralmente) sai do âmago das personagens. Porém, a carpintaria da estória de Reem e Mahmoud é muito mal ajambrada: a montagem é frouxa, seguindo uma funcionalidade por vezes constrangedora (por exemplo, quando corta de um tenso diálogo para o pé da atriz quando ela diz "olhe o meu pé"), os planos muitas vezes explicitam um acting ruim (e o elenco em geral perde muitas vezes o tom). A cena, mesmo com a crença nela como forma de manifestação, fica exposta ao ridículo pelo plano, tão fragilizado em sua construção.

Não deixa de ser curioso, contudo, que um filme com tanta vontade de discutir um complexo contexto político opte pelo melodrama como framing de sua história. Pois o melodrama é o gênero com a pior ficha corrida do cinema contemporâneo (não é por acaso que o adjetivo melodramático tem péssima conotação). O melodrama foi (e talvez ainda seja, vendo os trabalhos de Marco Bellocchio e Miguel Gomes) um dos terrenos mais férteis para uma crítica das regras (sociais, morais, estéticas). Paradoxalmente, o gênero parece aqui apenas um artifício de atração, cujo descuido vem do próprio descomprometimento da realização com o melodrama e sua preocupação com o que realemnte interessa (o discurso político). O gesto de crença na ficção como granada é mais sedutor que a inócua ficção melodramática (mal) construída por Nasrallah.

Outubro de 2012

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