As Leis de Família (Derecho de Familia), de Daniel Burman
(Argentina/França/Itália/Espanha, 2006)
por Cléber Eduardo

Mesmo cinema, resultados distintos

O filme anterior do argentino Daniel Burman, Abraço Partido, em nada me entusiasmou. Burman ali apostava em um cinema da “voz”, tanto por apoiar-se na voz over como nos diálogos. Também demonstrava uma aptidão e uma crença para se trabalhar a narrativa em cima de cenas e dos atores. No entanto, ao acionar um ritmo quase acelerado, que parecia olhar apenas para o futuro da narrativa e não para as situações enquanto elas acontecem, abortava o espaço (uma galeria de lojas), em nome de uma dinâmica taquicárdica, certamente pensada como forma de expressar a subjetividade do protagonista. Entre os assuntos, um pai ausente.

Em As Leis de Família, Burman não mudou, mas o filme sim. Temos novamente a valorização dos diálogos e da voz over, o ritmo apressadinho e uma aposta nos atores, mas, agora, ao contrário de Abraço Partido, não há deslocamento entre forma e acontecimentos. Se a “questão do pai” é mais uma vez colocada em pauta, ganha a tela com mais humor e menos melancolia (a não ser uma pequena porção, inevitável para um olhar judeu-portenho). Esse investimento convicto no humor, tanto o da palavra como o da imagem, parece menos obra da mise-en-scène (muito simples, às vezes simplória) e mais da fase escrita do processo (o roteiro).

Desde os primeiros momentos, que dialogam com Wes Anderson e Jorge Furtado (com ou sem consciência disso), percebe-se a matemática da palavra. A narração cuida logo de apresentar a figura do “pai Perelman”, advogado enfocado como uma figura deliciosa de se conviver, o que, também de cara implanta o tratamento doce cultivado permanentemente por Burman. O narrador tem algo a contar para nós e o diretor vai ajudá-lo com situações visuais. Acredita-se tanto nessa parceria entre personagem-autor e autor do filme que quase podemos creditar ao protagonista o crédito da direção e do roteiro. Simbiose buscada e encontrada.

Com uma estrutura de episódios quase independentes, que nos permite identificar a influência (em alguma medida) de Nanni Moretti e Woody Allen, o diretor privilegia a palavra como condutora dos climas e da percepção do protagonista – o que não significa, de forma alguma, que a imagem não faça sua parte em alguns trechos cômicos. De qualquer forma, como existe um narrador e ele narra para se organizar, essa operação verbal, em última instância, permite uma resignificação do personagem ao falar de si, olhando com graça para o que poderia ser dramático em suas experiências. Como a narração é retroativa, organizada em um tempo no qual tudo já acabou, o protagonista faz de sua presença uma performance, menos porque é um performático, mais porque está se representando para nós, não sem a intenção de fazer-se como o objeto da piada por ser quem é. Ele participa dos acontecimentos, mas também é observador e comentarista deles. Para obter efeito, portanto, as palavras precisam, no mínimo, estar no “ponto certo”. E estão.

Na tarefa de narrar e carregar a narrativa, está novamente o ótimo ator Daniel Hendler, compondo Ariel, um jovem advogado meio ingênuo, sujeito meio paspalho que divide seu relato em três frentes de abordagem: a relação com o pai, com a esposa e com o filho pequeno (um dos pontos fortes do filme, pela liberdade dada à criança, com efeitos incríveis em sua sintonia com Hendler). Filme de família, como sugere o título. E é nessa opção com alto potencial de clichês e de sentimentalismos variados que Burman demonstra habilidade para fazer sua reverência aos laços afetivos primeiros. Não sem ligar o botãozinho da emoção fácil, sustentada por musiquinha delicada e comovente, o diretor despista possíveis armadilhas dramáticas e, de forma geral, concentra-se exatamente no que o interessa na fatura do filme: as pequenas poesias da convivência familiar. Seus pontos mais altos, depois das pérolas de humor verbal, estão no banal do cotidiano. Na verdade, no banal elevado à condição de piada afetiva. Burman idealiza um bocado a rotina e a ausência de conflitos, sem dúvida, mas esse é seu olhar e sua atitude política com o assunto. Mais importante: essa postura leva-o a situações realmente sensíveis em sua comicidade, não porque seja um realizador brilhante (algo desmentido pela encenação bastante convencional), mas porque tem fé no filme em andamento.

Essa fé talvez também seja modelada por um tanto de fórmula. Burman está no registro e nos elementos com os quais o cinema argentino tem penetrado ocasionalmente no mercado de outros países (Europa principalmente) e tem atraído constantemente os euros de produtoras do velho continente. Ambienta a ação na família, mescla humor com alguma dor, evita o escancaramento de sinais autorais e personalistas, apóia-se em bons atores e olha para a vida como um fluxo constante, diante do qual é preciso estar sempre de cabeça erguida e olhos no futuro.

Pode-se alegar que, no fundo, sendo aqui quase simplista, busca-se a universalidade. Diagnóstico apressado esse, porque universais são todas as situações possíveis de acontecer em qualquer país do mundo com qualquer pessoa desse país qualquer. Todos os filmes, portanto, são universais (apenas em medidas distintas, dependendo de quem os assiste). O que diferencia As Leis de Família, na verdade, é justamente seu acento portenho, seu humor ranzinza, de forte traço judeu, que faz dele um filme mais ou menos reconhecível como filme argentino (ou como filme argentino dos anos 90, pós regime militar...).


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