in loco - cobertura dos festivais
O Último Reduto (Dernier Maquis), de Rabah Ameur-Zaïmeche
(França, 2008) por Eduardo Valente
Uma
política do cinema
O Último Reduto
é o terceiro longa de Rabah Ameur-Zaïmeche, e representa
uma curiosa terceira parte de uma trilogia informal (seus outros dois filmes,
Wesh Wesh e Bled Number One já foram exibidos no Brasil em eventos
da Maison de France, que tem cópias em 35mm dos dois no país). No primeiro filme,
o diretor retratava o cotidiano de um banlieu parisiense, lotado de imigrantes
africanos (o cineasta é um filho de imigrantes argelinos), usando de uma câmera
digital hiper-ativa. No segundo filme, mudança de continente: ele viajava para
a Argélia, filmando a volta de um imigrante para o país, o reencontro com suas
raízes, com as quais já se sente um tanto desconectado – usando uma câmera muito
mais contemplativa, com vários planos bem longos (sem que isso, no entanto, fosse
um corolário). Em ambos os trabalhos, estava onipresente um certo sentido de violência
latente, uma agressividade que parecia esperar abaixo da superfície para explodir
a qualquer momento. Com O Último Reduto, não é diferente: ainda interessado
em explorar a vivência dos imigrantes africanos na França, Ameur-Zaïmeche desta
vez decide se voltar para o ambiente do trabalho, usando como universo praticamente
único do seu filme os galpões de uma fábrica que faz palhetas de madeira (daquele
tipo que são colocadas no chão para serem pisadas mantendo uma distância dos pés
com o solo). Ambas as escolhas não são nada acidentais:
a de só filmar o ambiente de trabalho (e uma pequena mesquita criada pelo patrão
para as orações dos trabalhadores), sem qualquer ida ao ambiente pessoal e residencial
de nenhum dos personagens; e a das palhetas de madeira como o objeto que está
sendo produzido. No primeiro caso, resulta uma dupla sensação que interessa ao
diretor: primeiro, a de que estes personagens praticamente vivem suas vidas no
ambiente do trabalho; e depois, a concentração do entrecho dramático aos fatos
que giram em torno dos vários tipos de relações que ali se desenvolvem (de amizade,
de poder, de trabalho, de religião). No segundo, também há uma dupla razão para
a escolha das palhetas de madeira: primeiro, porque elas são objetos absolutamente
secundários e “baixos” na escala da utilidade cotidiana humana, emprestando ao
labor diário destas pessoas uma dimensão já de saída um tanto desumana; mas, principalmente,
trata-se de uma opção estética, pois as mesmas, quando empilhadas em diversas
formas e tamanhos, vão ganhando uma presença por vezes quase abstrata, e em outras
reminiscente das diferentes arquiteturas que o cineasta já havia filmado – a das
vilas de interior africanas, e as dos prédios dos banlieus parisienses. O
poder que emana do filme de Ameur-Zaïmeche vem exatamente da mistura destas duas
característica em duas distintas dimensões de sentido: há claramente o desejo
de um discurso político aqui (que diz respeito, acima de tudo, às condições cotidianas
da vida dos imigrantes), mas ele nunca está sufocado como expressão estética.
O cineasta vem claramente se burilando a cada filme como um explorador de espaços,
de ritmo interno de seqüências, criando um fascínio que consegue manter a dimensão
político-humana absolutamente atrelada ao trabalho audiovisual sem, com isso,
nem sufocá-lo nem ser sufocada. Nada no filme de Ameur-Zaïmeche é óbvio e apenas
funcional. As relações entre patrão e empregados (ambos os lados, imigrantes),
por exemplo, são complexas, e não existe um lado “certo” a se defender: por vezes
percebemos no dono da firma traços da exploração de uma mão de obra não-especializada;
mas em seguida vemos nos empregados uma série de auto-vitimizações com desejo
de usar as relações de poder desfavoráveis a seu favor. O mesmo vale para a relação
dos trabalhadores com a religião: nunca um simples “ópio do povo” (pois entendida
como necessidade identitária maior, como na dura seqüência da auto-flagelação
– um tanto involuntária, diga-se - do personagem de Titi), pelo contrário: é ela
que faz surgir o conflito político dentro da fábrica. Tudo
isso dito, ainda assim o que O Último Reduto tem de mais forte vai escapar
pelas mãos, porque vem mesmo de uma potência audiovisual fortíssima: difícil pegar
seqüências como a que envolve a presença de um grande rato do mato no ambiente
da fábrica (e a subseqüente deambulação pela natureza que advém desta) e simplesmente
entendê-las por qualquer sentido utilitário da narrativa. A força do cinema de
Ameur-Zaïmeche, que já estava lá no seu primeiro filme e que parece se confirmar
e consolidar a cada novo projeto, vem dessa capacidade de se deixar levar pela
pregnância de certos momentos, de certas trocas, que tornam seus personagens figuras
cinematográficas de uma tamanha presença em cena que acabam se tornando humanos
não por algum jogo simplista de “complexidade psicológica”, mas principalmente
porque acreditamos nos seus momentos como corpos em ação (e no trabalho, aqui
neste caso). Um cineasta a se acompanhar com cuidado e prazer ao longo dos anos. Setembro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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