Homens e Deuses (Des Hommes Et de Dieux),
de Xavier Beauvois (França, 2010)

por Filipe Furtado

Retomar o drama

Cinema para Xavier Beauvois é uma arte de modular o drama. É uma definição velha, tão velha de fato que nos tempos atuais tem o frescor do novo. Porque um filme como Of Gods and Men se interessa pelo drama e não pela narrativa. Quando falamos de classicismo, hoje, é em gênero e narrativa que pensamos, e estes são elementos que pouco ou nada dizem para o cineasta francês (mesmo quando trabalha com um filme “de gênero” como O Pequeno Tenente). Of Gods and Men retoma a fonte: não é um exercício, não se quer clássico, simplesmente olha para a situação dos seus oito monges e reconhece ali um rico material dramático para se instalar. É uma abordagem tão básica, tão simples, que por vezes nos pega de surpresa. O gesto de Beauvois é de reconhecimento de que há algo em frente a sua câmera que precisa ser representado, que precisa ganhar corpo em toda sua complexidade. É um gesto que empresta ao filme um genuíno catolicismo cinematográfico, na acepção rosseliniana do termo, mesmo que Beauvois, ao contrário do mestre italiano, não seja ele mesmo um crente.

Instalar-se ali, naquele meio, é o primeiro ato deste olhar, até porque Of Gods and Men sabe que não há drama a se reconhecer sem antes por de pé um mundo. De fato, a primeira meia hora do filme é pouco mais que um filme de instalação: conhecemos a pequena comunidade muçulmana em torno do templo, observamos as interações dos monges com seu rebanho, notamos as peculiaridades de cada um deles, etc. Então a violência irrompe e as questões principais do filme (ficar ou sair, fazer ou não as concessões necessárias junto as autoridades para se proteger) ganham força. Que o espectador eventualmente já saiba o desenlace da situação (real) não anula o drama, mas o reforça, permite que o filme se concentre em demonstrar passo a passo como esta posição se solidifica. É notável como mesmo os monges que a principio declaram sua opção por ficar precisam também percorrer seu caminho, e que existe uma diferença visível entre os sins e nãos da primeira reunião entre os monges e os do segundo encontro, quando decidem em uníssono por permanecer ali. Podemos dizer que a grandeza de Of Gods and Men é justamente ilustrar esta diferença, captar neste segundo grupo de respostas uma depuração de intenções para além do “eu fico”. O drama dos monges tiberianos não é o do sacrifício, mas da busca pela certeza da decisão justa; que o filme saiba distinguir entre eles o separa da mera hagiografia, torna-o muito maior do que um filme para ganhar prêmios, algo a que ocasionalmente será reduzido.

O dilema central dos monges, independente do risco dos fundamentalistas, está em sintonia com o ideal do drama para Xavier Beauvois: localizar o concreto na sua idéia. É o principio central do drama exacerbado para o campo religioso: tornar a dúvida, a vontade, numa ação concreta. Era este o principio que também movia o primeiro longa do diretor, também ganhador de um prêmio em Cannes (o belo Não se Esqueça que Você vai Morrer – título que poderia valer para todos seus filmes, vale dizer),  em que um jovem, após se descobrir aidético, passa por um processo não muito diferente dos monges deste novo filme. É daí que nasce, também, todo o cuidado apurado com ritual e procedimentos que move o filme: organiza a vida dos seus personagens, constroi uma liturgia dramática, que em alguns momentos sugere Dreyer (o uso de closes ao longo do último ato, e não nos referimos só ao último ritual dos monges, é notável). Nada disso seria possível sem a comunhão do cineasta com seus atores, que compreendem perfeitamente este processo.

Existem muitos cineastas joviais que por uma razão ou outra fazem filmes que sugerem o velho por retomar uma série de procedimentos em desuso (pensamos em Philippe Garrel, James Gray ou Jean-Claude Brisseau, para pegar três cineastas absolutamente diferentes), mas quase nenhum que acredite desta maneira num ideal de drama (os Dardenne vêm a mente numa chave um pouco similar), talvez por isso Of Gods and Men seja o mais velho e o mais jovem filme do ano: ele olha sua questão não em busca de um transcendental fácil, mas de reconhecer ali uma genuína dúvida e temor. Xavier Beauvois crê no cinema e na sua capacidade para celebrar o drama, tanto quanto seus monges na sua fé. O cinema é a mais católica das artes não por qualquer inclinação religiosa particular de seus criadores, mas porque sugere ela sempre esta mesma relação entre paixão e temeridade, esta mesma responsabilidade maior de transpor concretamente um ideal, responsabilidade essa que Beauvois honra com firmeza notável.

Outubro de 2010

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