in loco - festival de brasília 2009
Primeiro dia: Brasília e Lula, ontem e hoje
por Francis Vogner dos Reis

Anda se falando por aí em jornais, sites e revistas que neste ano o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro busca se recuperar da fraca edição do ano passado e que inclusive fez o maior credenciamento de jornalistas em sua história (vale dizer que esta 42ª edição do Festival é, por exemplo, a primeira em que a Cinética é credenciada, depois de algumas tentativas). Se formos entender a afirmação de “fraca edição em 2008” em razão da ausência de filmes de realizadores mais ou menos conhecidos (o que certamente gerou um interesse midiático menor) é até possível entender, pois o critério maior seria essa lógica de visibilidade. Só não é possível compreender o misterioso dom de clarividência de jornalistas naquele período, que falaram da “baixa qualidade de filmes” antes de assistir a qualquer filme da seleção. Considerar de antemão que os “bons filmes” foram para em outros festivais como o debutante Festival de Paulínia, é dizer que os bons filmes já nascem bons por pedigree, trocando em miúdos, os de paternidade (e maternidade) reconhecida.

O fato é que Festival de Brasília, tido como rigoroso, existe hoje em um contexto que soma muitos festivais de cinema Brasil afora, alguns com um caráter conceitual mais burilado, outros funcionando como vitrine de mercado, exibindo filmes “vocacionados”, seja para o mercado grande ou pequeno, grande público ou com potência para prestígio artístico, sendo que este prestígio também possui gradações. O que ele busca é se reconfigurar nesse novo panorama – que já não é tão novo, mas resultado de um processo de descentralização de importância (e mérito) que se estende há alguns anos. Agora é mais possível fazer distinções a partir dos filmes que existem, não dos filmes que já nascem interessantes a partir de critérios de latifúndio meritocrático.

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Entre 1969 e 1981 praticamente todas as edições do Festival de Brasília premiaram filmes de cineastas surgidos no Cinema Novo ou que desfrutavam de um vínculo estreito com esse ideário (Iracema – Uma Transamazônica, de Jorge Bodanski e Orlando Senna, por exemplo). Há 31 anos, em sua edição de número 11, vencia Arnaldo Jabor com Tudo Bem. Pois nesse mesmo festival, Jairo Ferreira fez o documentário experimental Horror Palace Hotel usando como cenário o Hotel Nacional onde ridicularizava (aterrorizava) o “cinema oficial” – no caso, o rescaldo do Cinema Novo que dominou a competição oficial. De lá pra cá o Hotel Nacional não mudou quase nada: os quartos em que Sganzerla e Jairo Ferreira entrevistaram José Mojica (foto) são exatamente os mesmos. Na contramão do Hotel, o mundo teve algumas mudanças profundas e ajustes fundamentais. É impressionante: nesse mesmo ano de 1978, o sindicalista Lula dizia ao programa Vox Populi da TV Cultura que, na sua categoria, havia trabalhadores com mais condições de ser candidato (a qualquer coisa) do que ele. Ele falava em nome de sua categoria, a dos metalúrgicos. Naquela época, a idéia de um cara como ele no poder assombrava geral – e assombrou, nos anos posteriores, uma classe média cagona. Em 2002, ele chegou até a dar calafrios na Regina Duarte e dor de barriga em Nelson Motta.

Pois hoje, em 2009, esse mesmo Lula é protagonista e herói romântico de uma das produções mais caras já realizadas no país, o filme que, produzido pelo tubarão surgido na turma do Cinema Novo (Luiz Carlos Barreto), abre o 42º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Lula representava uma categoria em 1978, ano em Brasília de Tudo Bem, filme que era uma representação do país (o desejo totalizante do Cinema Novo, e de Jabor em particular). Hoje, Lula representa o Brasil. Os Barretos sabem disso, e o transformam em um herói romântico um pouco diferente do nordestino carrancudo de boina dos documentários de Tapajós, Gervitz, Batista de Andrade e Hirzman. Há alguns dias Caetano Veloso disse que Lula representava a grosseria e que votaria em Marina Silva que é "ao mesmo tempo negra e cabocla e não é analfabeta" – ou seja, é uma representação que, se não é mais legítima, é muito mais forte e
aceitável. Sem dúvida alguma Lula é uma figura que agrega e polariza representações. Tudo isso (Lula, Festival de Brasília, Barretos, Caetano) mostra que algumas coisas mudam, outras não. O conflito corre por ai.

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Filme de abertura:
Lula, o Filho do Brasil, de Fábio Barreto (Brasil, 2009)

O filme Lula, o Filho do Brasil vem aliado a um discurso extra-filme explicitado no título: o de que a história é de um filho do Brasil, um homem comum, que poderia ser a história de qualquer brasileiro. Lula, sem dúvida, tem na sua história pessoal elementos trágicos e prosaicos de qualquer brasileiro pobre, mas a diferença é que esses fatos compõem a história de um retirante que saiu de Pernambuco pra ser, em São Paulo, o maior sindicalista da história do país, fundador do maior partido de esquerda do mundo e o presidente mais popular do Brasil. De um “personagem qualquer”, um personagem bigger than life. Os fatos de sua história comum são essenciais e centrais no forjamento do mito. Foi assim com Lincoln e, sendo bastante radical na comparação, com Jesus de Nazaré. Esses personagens sem a dimensão do homem comum não poderiam ser extraordinários.

Por isso esse discurso que justifica o filme como um mero melodrama "não oficial" é demagogia braba. O filme é sobre a história de um presidente ainda em exercício de seu cargo, é uma história de heroísmo e louvação em um período de sua vida de heroísmo e louvação (pelo menos hoje). É um filme que acaba às vésperas da fundação do PT, porque vincular o herói ao PT não pega bem. Há um breve salto, um epílogo, que mostra a vitória em 2002, o ponto mais alto que o personagem poderia atingir. Entre 1979 e 2002, um hiato. Foge-se das contradições do homem comum. Forja-se um santo com pés de barro, o que é quase a legitimação da idéia de que as glórias do presidente estão no passo como líder de uma classe e isso por si basta, pois o presente seria constrangedor. Arthur Virgilio e Carlos Vereza assinariam embaixo.

Esses problemas são de caráter histórico, no sentido de que essa história ainda está em andamento e, se por um lado fazer um filme a essa altura soa como propaganda de governo totalitário (não que o seja), por outro lado expõe todas as contradições concentradas na figura de Lula hoje. Pega bem falar da transformação do homem comum em guerreiro vitorioso que completou uma jornada ao chegar à presidência, pega mal trabalhar a figura do poder. Não que se exija aqui um filme diferente, mais “complexo” – o projeto é esse mesmo, não tem como ser diferente. Como artesanato cinematográfico é grotesco, e todos os seus problemas estão em função de cumprir plenamente esse projeto, de não deixar vir à tona qualquer problema de percurso no tratamento da figura do herói. Um cineasta inteligente e sincero como John Ford realizou O Jovem Lincoln, sobre a juventude do presidente Abraham Lincoln. Também trabalhou o mito da formação do maior líder dos Estados Unidos a partir de um recorte específico: a juventude. Só que Ford fez o filme 74 anos depois do assassinato do presidente Lincoln: Lincoln era história, era mito para além de uma contingência do momento histórico presente (ainda que servisse diretamente a ele). E John Ford sempre criou personagens que se pareciam com gente, não personagens. O filme é uma obra-prima, John Ford era um gênio.

Lula, Filho do Brasil é de Fábio Barreto, diretor que fez O Rei do Rio e Paixão de Jacobina. Trata de um personagem do presente, um personagem que no filme não parece gente, se faz somente como um
personagem idealizado. O esforço de Lula, o filho do Brasil é transformar a vida daquele que foi oferecido ao universo como “Luiz Inácio” (“você vai se chamar Luiz Inácio”, diz no filme a mãe Glória Pires, que o acompanhou do início de sua vida pública até o calvário) em uma sucessão de eventos tristes e trágicos que forjariam o herói. Essa sucessão de eventos tenta dar conta de tudo que é simbólico, como perder o dedo em um acidente de trabalho, ganhar um diploma no SENAI, etc. No filme ele fala da necessidade de consciência de classe entre os trabalhadores, mas ele mesmo não precisou ter um processo de conscientização, tal como um Buda que escapa do conforto e vê as misérias alheias, ele foi (num esforço bem radical do diretor e roteiristas) predestinado. Lula é um catálogo de situações absolutas e essenciais que fazem o herói.

É direto, sem cerimônia. Todo o trabalho formal se parece com um melodrama ruim da década de 30, que não sabia articular o que o personagem diz com o que ele faz. Importa mais o contar a história do que, efetivamente “mostrá-la” como uma série de inter-relações que constroem um universo. Aqui, os blocos de ação têm o incômodo de ter de lidar com uma câmera, já que uma câmera precisa ter pontos de vista elementares (e muitas vezes morais) para mostrar o que deseja, mas ele se contenta em instrumentalizar a decupagem de acordo com o senso comum estético, ou seja, planos (feios) que significam coisas. É, entre outras coisas, de mau gosto. Mas como Lula, o Filho do Brasil é instrumento para outros fins que não o de fazer cinema, não pode se pedir mais do que isso, ao menos deste filme. Não é preciso se estender mais do que isso. O filme em si sequer chega a ser um problema estético que valha a pena discutir. Será lembrado como o grande mico iconográfico do período Lula.

Novembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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