in loco - festival de brasília 2009
Quarto dia: A vida em fluxo
por Francis Vogner dos Reis

Dias de Greve, de Adirley Queirós (DF);
Ave Maria ou Mãe dos Sertanejos, de Camilo Cavalcante (PE)

Os dois curtas exibidos em Brasília na quarta noite do Festival são dois trabalhos que, como alguns filmes interessantes do festival, trabalham a noção de "lugar" como espaço de crise ou subjetividade. No caso de Dias de Greve, o lugar é o espaço do ócio e da aflição. Da crise. O filme de Queirós tem um trajeto dramático admirável e o que o faz especial é que, para instituir esse "tempo de crise" no cotidiano dos personagens, ele realiza algumas pequenas fugas (como o jogo de futebol, os trajetos de bicicleta) que, se não se constituem em digressões, elas não se conformam em trabalhar a crise dos personagens por meio de uma arquitetura dramática. Se a narrativa é mínima, é menos por uma falta de habilidade de narrar uma história e mais porque interessa ao diretor neutralizar em seu filme vários elementos expressivos que geralmente chamam atenção pra si mesmos (fotografia, montagem, tempos mortos) para deixar vir a nós a Ceilândia, seu movimento e respiração natural. No debate do dia seguinte, Maria do Rosário Catano perguntou se havia ali uma influência dos irmãos Dardenne. Queirós disse nunca ter visto um filme deles na vida. Pois Dias de Greve é assim: tudo existe em estado bruto, sem muitas mediações ou associações. Por isso ele é tão intenso, árido e honesto. De uma honestidade agressiva e vital.

Diferente da pura materialidade de Dias de Greve, Ave Maria ou Mãe dos Sertanejos é a quase suspensão mística de um tempo ordinário, para a irrupção de um tempo sagrado e breve. A “Ave Maria” tocada por Luiz Gonzaga nos rádio do sertão pernambucano às seis da tarde transfigura o sertão mostrado por Camilo Cavalcante, onde o fim de tarde, o corpo exasperado dos sertanejos, a reza das senhoras, são revestidos de um sentido profundo. O problema é que ele acredita demais em apreender e prolongar a beleza desse “tempo” através das paisagens no crepúsculo, por meio de uma beleza que é evidente. Assim, a beleza do sagrado, que é um jogo entre ordinário e extraordinário, material e  espiritual, velamento e desvelamento, desaparece.

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Quebradeiras, de Evaldo Mocarzel (Brasil, 2009)

Quebradeiras muda o tom e o direcionamento dos filmes de Evaldo Mocarzel. Agora ele se afirma influenciado pelo cinema mineiro contemporâneo, como o de Helvécio Marins, Marília Rocha e Cao Guimarães. Parte em busca então de um cinema sensorial, poético e sem entrevistas. Em lugar da imponderabilidade do real, a plástica do real. Se esses são os objetivos, os pontos de partida, eles se tornam um meio e visam um resultado certeiro. Ao registrar as quebradeiras de coco babaçu, Mocarzel tenta extrair o máximo da beleza estética que as imagens em fluxo (não em bloco) são capazes de gerar. Uma beleza siderante na apreensão expressiva da duração do tempo que, como é de praxe, corre o risco da pura e simples domesticação das imagens.

Agora, se existe um problema sério nos programas processuais de Evaldo Mocarzel é que os seus dogmas geralmente condicionam demais a feitura de seus filmes, buscando neles um reflexo de questões ligadas ao documentário. Assim, seus filmes existem em função de articular buscas de efeitos a partir de pequenos sistemas teóricos. Isso, não raro, asfixia o filme. Com Quebradeiras não é diferente, apesar da mudança de rumo na sua relação com o seu objeto. E o que seria essa asfixia? Seria o fato de o realizador fazer imagens tão impermeáveis a qualquer outra coisa que não os clichês formais e, mais uma vez (permitam a insistência), teóricos.

Mas, em um festival onde alguns realizadores de filmes se esquivam de suas responsabilidades como diretor, Evaldo Mocarzel, com o seu Quebradeiras, tem o mérito de apresentar e defender um projeto rigoroso que se faz a partir de alguns poucos princípios que possam orientar uma “experiência” – ou como diz o próprio diretor, de dogmas que visam trabalhar com alguns procedimentos (como planos fixos e ausência de entrevistas) em detrimento de outros (como a câmera na mão e os depoimentos dos seus trabalhos anteriores). Essa busca do sentido estrito de todas as imagens faz de seu filme uma bela sucessão e associação de imagens, ainda que, como cinema, o conceito seja bastante frágil. Empreender essas buscas é um ato de coragem e consciência de Mocarzel, mesmo atrelado demais à rigidez e à busca do sentido das formas.

Novembro de 2009

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