diário da redação
O BBB e o lugar do espectador
edição de Fábio Andrade

Menos de um ano depois da criação da Cinética, o Big Brother Brasil foi assunto constante aqui, uma vez que aquela edição (o BBB 7) foi, em muitos sentidos, o ápice de uma série de estratégias audiovisuais bastante fascinantes, e inegavelmente inéditas na TV brasileira – ao menos da forma com que se apresentavam ali. Nos últimos dois anos voltamos menos ao tema, em grande parte porque o programa reproduziu seguidamente algumas das mesmas ferramentas, e não nos interessa em nada repisar aquilo já dito nem cumprir “obrigações” de cobertura. No entanto, comprovando que continuamos atentos aos movimentos gerados ali dentro, o programa voltou à tona nas discussões internas da lista de email da redação da revista, a partir principalmente de dois novos elementos surgidos neste ano: um, a participação dos telespectadores ao vivo, “delatando” o voto secreto de um dos participantes; o outro, uma prova pela liderança do programa onde o espectador foi chamado a decidir diretamente os tipos e graus de provações pelas quais passavam os participantes. Abaixo, reproduzimos então parte dessa conversa, como sempre tida com o grau de informalidade e troca de idéias típica de algo não pensado como um texto escrito, mas sim uma primeira visita, em grupo, a certos pensamentos. (Eduardo Valente)

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Ilana Feldman

... E aí rapazes, vcs também acharam genial a edição de ontem?? Valeu a pena ficar à espera daquilo ali só pra poder presenciar a "delação premiada", por telefone, da telespectadora: uma das formas mais perversas e sofisticadas de "interação" popular. Isso talvez seja genial, genialmente monstruoso.

Mais do que gerir identidades, que, mais do que nunca, não são suficientes, resta ao BBB gerir libidos, castigos físicos e mexericos – que também não são, nem nunca serão, suficientes. O BBB modula a insuficiência de seu próprio governo. Isso seria uma boa notícia, não fosse a pior de todas as notícias. Pois punir e premiar, reprimir e estimular, controlar e liberar, repartir e intensificar, não são apenas estratégias de gestão da "liberdade" dos corpos dos indivíduos, mas de administração da "probabilidade" de suas ações e pulsões. Gerir o que está latente é tentar tiranicamente dominar o insuficiente.

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Luiz Soares Júnior

Pois é, a prova de resistência e a delação premiada me lembraram os bons e tétricos tempos da ditadura, exatamente o mesmo modelo de tortura (bem, houve outros, claro), no caso da prova, impedindo a adaptação do corpo, extenuando, macerando, amestrando, ad infinitum, como ensinava o velho pedagogo Sade: para que matar, simplesmente devorar o objeto, como os animais, se somos tão civilizados? Se podemos eternizar/mediar (no rito) – à la mauvais infini – a dor e o opróbio?

E a delação premiada é o lado Golbery-Rosenberg do programa, a grande invenção fascista: a indiferenciação ética, o tohu bohu da moral, carrascos e vítimas confundidos, indiscerníveis, trocando de posição e de papel (higiênico) no jogo das cadeiras do Poder Total, ubíquo e reversível.

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Ilana Feldman

Só hoje consegui assistir a tal prova de resistência realizada no dia 18, em que o público definia, pelo site do programa, a intensidade de cada tortura, como intensidade e alteração da temperatura, da luminosidade, da velocidade do vento etc., até os participantes ficarem extenuados, aniquilados, "macerados", como diz o Júnior. Creio que foi a primeira vez que a "interatividade" foi empregada como estratégia inerente a uma prova de resistência física cujo torturador é o próprio espectador. Indiferenciação e indeterminação ética? Júnior, é muito boa essa questão, mas talvez a crueldade desses dispositivos seja a de esvaziar completamente o lugar da "vítima". Poder exercer a função de "carrasco", ainda que em potencial, confere ao espectador um poder de aferir, e ao participante do jogo um poder de resistir. E, quando todas as posições de poder são tomadas pela voluntariedade, não há mais vítima possível. É isso o que é tão aterrador.

Tortura e entretenimento não é coisa nova, claro. A história do cinema, do teatro e da tv é repleta de "experiências", mas o que espanta em alguns desses experimentos é essa dimensão de "participação". Na cruzada contra a passividade do espectador, como se o espectador fosse realmente passivo, a captura das vanguardas pelas esferas telemidiáticas reduziu e transformou nossa atividade em... interpassividade?

Tô tentando entender.

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André Brasil

“A captura das vanguardas pelas esferas telemidiáticas reduziu e transformou nossa atividade em...interpassividade”?

Ilana,
O Zizek tem um termo curioso para pensar isso: “sujeito interpassivo”. Isso porque, para ele, a interatividade é uma nova forma de passividade. O espectador participa, vota, intervêm, mas, no final, não tem nada a ver com aquilo. Uma forma enviesada de passividade pela intensa atividade.

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Luiz Soares Júnior

A técnica sórdida me parece consistir (e a prova de resistência “colaboracionista” foi paradigmática neste sentido) na simulação de um suposto estado de natureza hobesianno, onde tudo é permitido, onde há uma indiferenciação total de valores e de papéis: no “estado de natureza”, mesmo que simulado, não há vítimas e carrascos, não há julgamento portanto; só há presas e caçadores, e o caçador de hoje é a presa de amanhã, eternamente.

Todo o programa é concebido para colocar os participantes em tal estado de stress que eles nos “pareçam” pouco mais do que animais, e aí são elididas e escamoteadas todas as mediações do processo. Enfim, nada de novo, e a referência ao fascismo me pareceu relevante justamente porque o nazismo, por exemplo, levou esta técnica de “indiferenciação valorativa”, de cumplicidade entre vítimas e carrascos (colocando judeus como guardas e torturadores de judeus, nos campos, obrigando as crianças a delatar os pais que demonstravam “desânimo” ou ceticismo com a causa) a um grau de sofisticação único.

Nesse sentido, concordo plenamente contigo quando vc diz que o terrível tá na abolição da vitimização: todos são carrascos, não há nada que transcenda esta diabólica imanência de “entredevoradores”. Assim, quem pode julgar? A princípio, eu diria: um ponto de vista exterior a todos os pontos de vista interessados e interesseiros (questão nietzschena do valor). De quem seria este ponto? Deus. Como Deus não existe – e este é o pressuposto absoluto da filosofia do valor de Nietzsche: que Deus não exista, e, portanto, que um julgamento absoluto seja impossível -, tudo é relativo, mas relativo a um absoluto do valorar, a uma imanência do valorar. Na TV, esse Deus inexistente, este “buraco negro” da valoração são os espectadores, cada vez menos dispostos a exercer qualquer ponto de vista, a aderir a qualquer exterioridade ou alteridade que possibilite um julgamento de valor, responsabilidade, etc.

O jogo me parece o seguinte: o espectador é lavado a pensar – justamente porque pode tão pouco, apenas “reagindo”, como o cão de Pavlov, ao tão pouco que lhe oferece o programa, como a delação premiada – que ele não pode nada, que aquilo “é assim mesmo”; a se ver como alguém incapaz de emitir um julgamento de valor, exatamente como se vivêssemos num estado de natureza, onde tudo é assim mesmo, e ng pode mudar nada, desde as origens até os fins dos tempos (claro, é um simulacro, mais ainda assim...) Mais ou menos a mesma estratégia dos ideólogos nazistas, que queriam induzir as pessoas apensar tudo aquilo como um romântico Fatum, uma catástrofe à alemmande, a que o povo estava destinado, algo que não se poderia mudar porque estava inscrito no sangue e na História alemã, e portanto era indiferente ser vítima ou carrascos, já que amanhã o caçador vira presa, etc.

Eu vejo em ambas as experiências – guardadas as devidas proporções, claro, e as diferenças epocais – um tenebroso elogio do demoníaco. Aliás, propiciado/facilitado e amplificado pelo mesmíssimo uso do tele-áudio-visual.

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Ilana Feldman

Sobre a questão do ponto de vista: ela é chave mesmo, pois o próprio "dispositivo interativo" prescinde de um ponto de vista que lhe seja exterior. O espectador é tido como um dado, funcional, parte da engrenagem. Paradoxalmente, pertencer ao dispositivo é não se deixar afetar (justamente porque não se é sujeito, mas dado/estatística/reação), ou se deixar afetar até certo ponto, apenas. O que pode um espectador? Se ele sabe poder tão pouco, como você diz, é porque na esfera realmente decisória o poder é absolutamente (e deísticamente) verticalizado – não à toa a coisa se chama Big Brother. Essa imbricação entre práticas democráticas e aquelas totalitárias é o que faz o programa, a meu ver, tão "geni almente" contemporâneo, paradoxal, perverso e insuperável.

Abril de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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