diário da redação
O BBB e o lugar do espectador edição
de Fábio Andrade Menos de um ano depois
da criação da Cinética, o Big Brother Brasil foi assunto constante aqui, uma vez
que aquela edição (o BBB 7) foi, em muitos sentidos, o ápice de uma série de estratégias
audiovisuais bastante fascinantes, e inegavelmente inéditas na TV brasileira –
ao menos da forma com que se apresentavam ali. Nos últimos dois anos voltamos
menos ao tema, em grande parte porque o programa reproduziu seguidamente algumas
das mesmas ferramentas, e não nos interessa em nada repisar aquilo já dito nem
cumprir “obrigações” de cobertura. No entanto, comprovando que continuamos atentos
aos movimentos gerados ali dentro, o programa voltou à tona nas discussões internas
da lista de email da redação da revista, a partir principalmente de dois novos
elementos surgidos neste ano: um, a participação dos telespectadores ao vivo,
“delatando” o voto secreto de um dos participantes; o outro, uma prova pela liderança
do programa onde o espectador foi chamado a decidir diretamente os tipos e graus
de provações pelas quais passavam os participantes. Abaixo, reproduzimos então
parte dessa conversa, como sempre tida com o grau de informalidade e troca de
idéias típica de algo não pensado como um texto escrito, mas sim uma primeira
visita, em grupo, a certos pensamentos. (Eduardo Valente) *
* * Ilana Feldman ... E aí rapazes,
vcs também acharam genial a edição de ontem?? Valeu a pena ficar à espera daquilo
ali só pra poder presenciar a "delação premiada", por telefone, da telespectadora:
uma das formas mais perversas e sofisticadas de "interação" popular.
Isso talvez seja genial, genialmente monstruoso. Mais do
que gerir identidades, que, mais do que nunca, não são suficientes, resta ao BBB
gerir libidos, castigos físicos e mexericos – que também não são, nem nunca serão,
suficientes. O BBB modula a insuficiência de seu próprio governo. Isso seria uma
boa notícia, não fosse a pior de todas as notícias. Pois punir e premiar, reprimir
e estimular, controlar e liberar, repartir e intensificar, não são apenas estratégias
de gestão da "liberdade" dos corpos dos indivíduos, mas de administração
da "probabilidade" de suas ações e pulsões. Gerir o que está latente
é tentar tiranicamente dominar o insuficiente. * * *
Luiz Soares Júnior Pois é, a
prova de resistência e a delação premiada me lembraram os bons e tétricos tempos
da ditadura, exatamente o mesmo modelo de tortura (bem, houve outros, claro),
no caso da prova, impedindo a adaptação do corpo, extenuando, macerando, amestrando,
ad infinitum, como ensinava o velho pedagogo Sade: para que matar, simplesmente
devorar o objeto, como os animais, se somos tão civilizados? Se podemos eternizar/mediar
(no rito) – à la mauvais infini – a dor e o opróbio? E
a delação premiada é o lado Golbery-Rosenberg do programa, a grande invenção fascista:
a indiferenciação ética, o tohu bohu da moral, carrascos e vítimas confundidos,
indiscerníveis, trocando de posição e de papel (higiênico) no jogo das cadeiras
do Poder Total, ubíquo e reversível. * * * Ilana
Feldman Só hoje consegui assistir a tal prova de resistência
realizada no dia 18, em que o público definia, pelo site do programa, a intensidade
de cada tortura, como intensidade e alteração da temperatura, da luminosidade,
da velocidade do vento etc., até os participantes ficarem extenuados, aniquilados, "macerados",
como diz o Júnior. Creio que foi a primeira vez que a "interatividade"
foi empregada como estratégia inerente a uma prova de resistência física cujo
torturador é o próprio espectador. Indiferenciação e indeterminação
ética? Júnior, é muito boa essa questão, mas talvez a crueldade desses dispositivos
seja a de esvaziar completamente o lugar da "vítima". Poder exercer
a função de "carrasco", ainda que em potencial, confere ao espectador
um poder de aferir, e ao participante do jogo um poder de resistir. E, quando
todas as posições de poder são tomadas pela voluntariedade, não há mais vítima
possível. É isso o que é tão aterrador. Tortura e entretenimento
não é coisa nova, claro. A história do cinema, do teatro e da tv é repleta
de "experiências", mas o que espanta em alguns desses experimentos é
essa dimensão de "participação". Na cruzada contra a passividade do
espectador, como se o espectador fosse realmente passivo, a captura das vanguardas
pelas esferas telemidiáticas reduziu e transformou nossa atividade em... interpassividade? Tô
tentando entender. * * * André Brasil “A
captura das vanguardas pelas esferas telemidiáticas reduziu e transformou nossa
atividade em...interpassividade”? Ilana, O Zizek tem um
termo curioso para pensar isso: “sujeito interpassivo”. Isso porque, para ele,
a interatividade é uma nova forma de passividade. O espectador participa, vota,
intervêm, mas, no final, não tem nada a ver com aquilo. Uma forma enviesada de
passividade pela intensa atividade. * * * Luiz
Soares Júnior A técnica sórdida me parece consistir (e
a prova de resistência “colaboracionista” foi paradigmática neste sentido) na
simulação de um suposto estado de natureza hobesianno, onde tudo é permitido,
onde há uma indiferenciação total de valores e de papéis: no “estado de natureza”,
mesmo que simulado, não há vítimas e carrascos, não há julgamento portanto; só
há presas e caçadores, e o caçador de hoje é a presa de amanhã, eternamente. Todo
o programa é concebido para colocar os participantes em tal estado de stress que
eles nos “pareçam” pouco mais do que animais, e aí são elididas e escamoteadas
todas as mediações do processo. Enfim, nada de novo, e a referência ao fascismo
me pareceu relevante justamente porque o nazismo, por exemplo, levou esta técnica
de “indiferenciação valorativa”, de cumplicidade entre vítimas e carrascos (colocando
judeus como guardas e torturadores de judeus, nos campos, obrigando as crianças
a delatar os pais que demonstravam “desânimo” ou ceticismo com a causa) a um grau
de sofisticação único. Nesse sentido, concordo plenamente
contigo quando vc diz que o terrível tá na abolição da vitimização: todos são
carrascos, não há nada que transcenda esta diabólica imanência de “entredevoradores”.
Assim, quem pode julgar? A princípio, eu diria: um ponto de vista exterior a todos
os pontos de vista interessados e interesseiros (questão nietzschena do
valor). De quem seria este ponto? Deus. Como Deus não existe – e este é o pressuposto
absoluto da filosofia do valor de Nietzsche: que Deus não exista, e, portanto,
que um julgamento absoluto seja impossível -, tudo é relativo, mas relativo a
um absoluto do valorar, a uma imanência do valorar. Na TV, esse Deus inexistente,
este “buraco negro” da valoração são os espectadores, cada vez menos dispostos
a exercer qualquer ponto de vista, a aderir a qualquer exterioridade ou alteridade
que possibilite um julgamento de valor, responsabilidade, etc. O
jogo me parece o seguinte: o espectador é lavado a pensar – justamente porque
pode tão pouco, apenas “reagindo”, como o cão de Pavlov, ao tão pouco que lhe
oferece o programa, como a delação premiada – que ele não pode nada, que aquilo
“é assim mesmo”; a se ver como alguém incapaz de emitir um julgamento de valor,
exatamente como se vivêssemos num estado de natureza, onde tudo é assim mesmo,
e ng pode mudar nada, desde as origens até os fins dos tempos (claro, é um simulacro,
mais ainda assim...) Mais ou menos a mesma estratégia dos ideólogos nazistas,
que queriam induzir as pessoas apensar tudo aquilo como um romântico Fatum, uma
catástrofe à alemmande, a que o povo estava destinado, algo que não se poderia
mudar porque estava inscrito no sangue e na História alemã, e portanto era indiferente
ser vítima ou carrascos, já que amanhã o caçador vira presa, etc. Eu
vejo em ambas as experiências – guardadas as devidas proporções, claro, e as diferenças
epocais – um tenebroso elogio do demoníaco. Aliás, propiciado/facilitado e amplificado
pelo mesmíssimo uso do tele-áudio-visual. * * * Ilana
Feldman Sobre a questão do ponto de vista: ela é chave
mesmo, pois o próprio "dispositivo interativo" prescinde de um ponto
de vista que lhe seja exterior. O espectador é tido como um dado, funcional,
parte da engrenagem. Paradoxalmente, pertencer ao dispositivo é não se deixar
afetar (justamente porque não se é sujeito, mas dado/estatística/reação), ou se
deixar afetar até certo ponto, apenas. O que pode um espectador? Se ele sabe poder
tão pouco, como você diz, é porque na esfera realmente decisória o poder é absolutamente
(e deísticamente) verticalizado – não à toa a coisa se chama Big Brother. Essa
imbricação entre práticas democráticas e aquelas totalitárias é o que faz
o programa, a meu ver, tão "geni almente" contemporâneo, paradoxal,
perverso e insuperável. Abril de 2010 editoria@revistacinetica.com.br |