diário da redação
A experiência do documentarista e do espectador
edição de Eduardo Valente
Mal começou a colaborar com a Cinética no
recente É Tudo Verdade, Julio Bezerra já pôde ver como os
textos começam a ressoar dentro mesmo da redação. Foi o que
aconteceu quando Cezar Migliorin lançou uma conversa na lista da revista
a partir da discordância sobre um termo usado por Julio em um dos seus textos.
Para além de considerarmos esta discussão o tipo de material que
nos interessa publicar nestes nossos Diários,
ela é ilustrativa também pela mudança de rumo que toma na
metade - algo absolutamente típico deste formato de intervenção
que se baseia na troca constante de idéias, do fluxo de uma conversa quase
como as de bar. * * * Cezar
Migliorin, 12/4/2008, 6:24 Caros Acabei
de ler a ótima e importante crítica
que o Julio Bezerra escreveu sobre o Conversas no Maranhão. Queria
apenas dizer que acho a última frase um equívoco. Justamente, por tudo que ele
escreve não podemos dizer que o documentário é "sempre uma redução da experiência".
Se o documentário é encontro e rejeita a tradução, é justamente uma tentativa
de experiência que está em questão. Se essa experiência é positiva ou negativa,
se vai ser logo capturada pelo filme ou por outros poderes, ai é outro problema. Se
o documentário é a redução da experiência, sinceramente, não há documentário que
valha a pena. Na verdade é uma frase iconoclasta, algo que não está no texto. Julio
Bezerra, 12/4/2008, 11:46
Cezar, Acho
que a frase que você comenta precisa mesmo de uma complementação. É claro que
a arte, o cinema, e o documentário constroem uma experiência. Você tem toda razão
de que se este não fosse caso, nenhum documentário valeria mesmo a pena. Mas quando
digo “experiência”, me refiro à experiência do cineasta com aquilo que ele filma.
O documentário é uma redução da complexidade das relações e experiências que se
deram entre cineasta e personagens. As pessoas filmadas
sofrem sucessivas metamorfoses ao longo do processo que as transforma em personagens
de um filme. Para o cineasta que teve aquelas pessoas diante si, que conversou
com elas e as viu comer, dormir, dançar, sorrir, os personagens que são construídos
a partir deste contato podem na verdade representar muito pouco. Em geral, o filme
representa tudo para o espectador; e muitos documentaristas se afirmam ou se escondem
nisso. Tonacci não. Ele parece hesitar em fechar o filme. Ele sabe que muitas
perdas acontecem quando se acrescenta estrutura e perspectiva ao que foi filmado.
Conversas no Maranhão me parece por vezes querer inclusive preservar algumas
características do material bruto. Cezar Migliorin,
12/4/2008, 12:24
Bem, continuo descordando. O
documentário não é a redução da experiência do cineasta com a realidade. O documentário
é a própria relação junto com uma escritura, com opções de dispositivos, montagens,
interferências e tudo isso que conhecemos. O documentário só poderia ser uma redução
se ele desejasse representar a experiência ou se fosse apenas a representação
da experiência. Mas como você mesmo aponta nas opções do Tonacci, o problema dele
é de uma construção estética e ai não se trata mais da representação da experiência,
mas da experiência em si, dependente de todas as opções que o cineasta faz. No
meu entender, essa mistura entre a experiência de alguém que vive aquilo fazendo
um filme não está separa com a feitura de imagens, com opções estéticas. Nesse
sentido, o documentário é a experiência em si, para o realizador, para o espectador,
para o personagem, não podendo assim ser comparada ao real, ou à verdadeira experiência. Cléber
Eduardo, 12/4/2008, 12:24
Não haveria a experiência
do documentarista com espaço e pessoas se não fosse sua presença em locais e diante
de pessoas acompnhado de uma câmera e da necessidade de tomar decisões para essa
câmera ou de delegar algumas decisões para quem está com a câmera (parte da instância
autoral/discursiva, mas não essa instância). Não haveria a experiência com espaços
e pessoas do documentarista se não houvesse todo o trabalho de experiência com
o copião, com o material bruto e com suas relações entre partes, com sua estrutura,
com seu ritmo. Em vez de redução da experiência, temos, além da experiência provocada
pelo documentário, a expansão da experiência vivida com pessoas e nos lugares,
porque é sempre uma surpresa ver algo no material que nã havia sido observado
na filmagem. Redução de experiência (da relação com
espaços pessoas para o que entra na narrativa final), como coloca o Julio, pode
ser entendido como dominuição da quantidade de experiências, e da limitação pelo
quadro dessas experîências, mas, mesmo essa experiência do extracampo, mais do
diretor que do documentário, na verdade faz parte do documentário também, interfere
nele, na verdade o produz, e o resultado disso é uma organização de experiência
(em algum nível) que tende a amplificá-la e não reduzi-la, ao menos se não pensarmos
experiência como acúmulo e sim como intensidade e amplitude de um "estar"
em relação a outros "estares".
Julio
Bezerra, 14/4/2008, 13:05
Cezar e Cleber, Estou
convencido de que minha frase foi mesmo infeliz, já que ela dá margem a uma multiplicidade
enorme de interpretações. Tentarei me explicar. Em primeiro lugar, tomo o termo
"experiência" como contendo dois sentidos articulados, mas nem por isso
idênticos, que remetem a duas dimensões, ou dois momentos: no primeiro, o termo
expressa ou denota uma dimensão imediata, perceptual, não conceitual (mas nem
por isso caótica ou desarticulada) da experiência, que deriva fundamentalmente
da imersão de nosso corpo no mundo através dos sentidos; no segundo, o termo indica
a apropriação, pelo sujeito reflexivo, deste encontro imediato, o que ele faz
fundamentalmente por meio da linguagem, que interpreta, conceitua, discute, corrige
e situa nossas experiências sensoriais. O trabalho de um documentarista envolve
certamente estas duas dimensões: a experiência realizada por meio dos órgãos de
sentidos (o tom da voz do entrevistado, seu sotaque, suas gentilezas e grosserias,
o contato com o ambiente, etc); e a uma experiência ordenada pela linguagem (no
caso, a cinematográfica), que interpreta e reconstrói os sentidos imediatos e
extrai deles uma gama de significações, produzindo uma forma particular de apreensão
do mundo, ou seja, produz, a partir de um certo ponto de vista, uma certa configuração
daquela experiência inicial. Então, quando falo em "redução",
o que quero dizer é que qualquer transposição do real, qualquer narrativa, implica
um determinado ponto de vista, uma determinada linguagem, que reduzem as infinitas
possibilidades da realidade. Esta redução não implica o empobrecimento da experiência,
embora eu reconheça que o termo possa ser interpretado neste sentido. Mas aí,
assim como "redução" talvez seja mesmo um termo infeliz, "ampliação"
talvez também o seja, porque ele dá margem a uma interpretação de que o filme
seria uma experiência maior. Em segundo lugar, é claro que
podemos dizer que a "experiência de um cineasta" vai do momento em que
ele teve a idéia de fazer um filme até a finalização da última versão e a exibição
da obra. Mas quando disse que o documentário é uma redução da experiência, estava
me referindo a uma questão bem especifica que diz respeito à relação entre o documentarista
e as pessoas que ele filma, que diz respeito aos processos que transformam uma
pessoa em um personagem. O personagem será sempre a pessoa vista de um certo ângulo,
de uma certa perspectiva, e é neste sentido que ele é uma diminuição da complexidade
da pessoa, ou a construção de uma certa complexidade, e não o reflexo da pessoa,
ou a transposição de sua totalidade. Acho que essa separação pode e deve ser feita
em documentários. O documentarista tem sempre que ter em mente essa distância
ou diferença entre uma pessoa e um personagem, porque os critérios, recursos e
conceitos que ele usará para organizar tanto sua experiência imediata quanto seus
personagens têm conseqüências e produzem uma série de implicações estéticas, políticas,
e, principalmente, éticas. Ilana Feldman, 14/4/2008,
23:16
Essa conversa toda, suscitada pela expressão
do Julio "redução da experiência", me fez lembrar da definição do Bergson
para percepção, que, creio, vem ao caso. Em uma única linha, para o Bergson toda
a percepção é uma subtração, justamente em um sentido de perspectiva, de recorte,
de impossibilidade de totalização. Talvez a idéia de subtração seja mais apropriada
do que a de redução, porque, ao contrário desta última, a subtração não implica
qualquer negatividade. A subtração é um princípio, condição da qual parte todo
o olhar, e não um fim de uma determinada ação. Nesse sentido
bergsoniano, a percepção como subtração não diz respeito apenas àquela
mediada pela imagem técnica, o que, de um modo interessante, esfacela ou dilui
essa diferença apontada pelo Julio entre pessoa e personagem, já que ambas são
sempre subtraídas de sua possível complexidade. (Estou aqui apenas colocando mais
lenha, mas é evidente que, na prática documental, há um série de diferenças e
implicações como as que o Julio aponta nessa última mensagem dele.) Fábio
Andrade, 16/4/2008, 13:35
É curioso como muitas
das idéias aqui estavam na minha cabeça escrevendo o texto
sobre o Wang Bing, antes mesmo de ler a discussão. Principalmente o Bergson
puxado pela Ilana, que eu já havia trazido pro meu texto discutindo o conceito
de "duração" - que no Wang Bing é essencial. E
Cléber, restou alguma dúvida que o Fengming é genial? É um filme sobre
rigorosamente tudo que estamos discutindo por aqui... Bom, se não é de tudo é
certamente sobre muito do que estamos falando. Basicamente por colocar em crise
a tal redução da experiência, que o Julio menciona, e a interferência que o Cezar
traz pra conversa. E o filme do Wang Bing é sim, em muitos sentidos ao menos,
uma tentativa de capturar toda uma experiência - e isso repensa o ato documental
por completo. Concordo contigo: é cansativo à beça. É quase
impossível de se rever. Mas, bom, não é por ser chato, cansativo e pesado que
não seja bom, não é? Cléber Eduardo, 16/4/2008,
15:49
Sua pergunta remete a uma série de artigos
que tenho lido sobre efeito estético e juizo estético, apreciação e argumentação/análise,
por isso eu te diria que de certa forma a apreciação é em cima de um efeito estético,
no sentido de quebra de percepção cotidiana, mas um efeito estético sob o risco
de se esvaziar, como efeito, justamente pelo empenho em ser um efeito estético
escorado em procedimento destinado ao juizo estético. Meu
comentário foi uma apreciação, de quem, sem ter sido seduzido de todo pelo efeito
estético, sentiu esse esvaziamento na experiência com o filme. Ele se tornou uma
percepção racional, de análise de procedimento, mas, mesmo nessa relação racional,
falta algo para eu lidar com ela. Tipo, eu não escreveria sobre ela. Não é o Pedro
Costa, se me entende. Nem o Straub. Nem tinha de ser.
Fábio
Andrade, 17/4/2008, 00:03 Entendo sim, mas acho
que o que é complexo no filme do Wang Bing (mudança de rumo completa na conversa,
mas vamos lá) é que ele precisa ser como é para ser o que é. Parece uma bobagem,
mas de fato é um filme que precisa daquele tempo e daquela relação conceitual
com a fala, com os cortes, com o ato de documentar para ter força - mesmo que
essa força seja mais intelectual do que um prazer de fruição. Mas sim, entre as
experiências instigantes mas não tão agradáveis ele certamente fica entre as que
tem menos possibilidade de retorno à obra (muito, muito menos que o outro filme
- que tem 9 horas, mas que eu acho bom de assistir). É curioso
como vários filmes que eu considero obras-primas eu tenho menos vontade/paciência
de rever do que outros que me parecem menores. Sempre colocaram o Sexta-feira
à Noite como um filme menor na carreira da Claire Denis, mas de toda a filmografia
dela talvez seja o filme que eu mais goste de ver (com exceção a Trouble Every
Day, que ainda me é supremo talvez por melhor combinar os dois aspectos).
Não acho a Claire Denis uma diretora particularmente pesada, mas acho interessante
pensar como um filme peso pluma dela, embora menos instigante do que outros, me
rende revisões mais prazerosas (e mais frequentes). Diria o mesmo do Kar-wai,
que eu revejo com mais frequência por Amores Expressos do que por 2046,
por exemplo. Enfim, é uma grande digressão, mas acho que dá pra entender o que
estou dizendo. Não?
Cléber Eduardo, 17/4/2008, 09:46 "Entendo
sim, mas acho que o que é complexo no filme do Bing (mudança de rumo completa
na conversa, mas vamos lá) é que ele precisa ser como é para ser o que é."
Todo o filme a princípio tem de ser como é para ser o que é, para o bem ou para
o mal. Para ser o que é, Caixa Dois precisa ser como é. Quanto
à segunda perguinta, sobre prazer de experiência e relevância do juizo,
está ai uma enorme questão. Eu pessoalmente acho Amores Expressos melhor
de ver e melhor de analisar do que 2046. Mais prazer e mais argumentações. Aliás,
eu acho Amores Expressos o único filme satisfatório de WKW. E acho Dançando
no Escuro o melhor e mais forte como experiência do Von Trier. E acho o Caché
o filme foda do Haneke, também no sentido de experiência e juízo.
Fábio
Andrade, 17/4/2008, 21:03 Sim, Cléber, mas digo isso
muito por causa do seu comentário de que teria sido mais econômico se fosse o
realizador do filme (até porque, o filme é econômico em diversos aspectos). O
Fengming não permite economia temporal, porque a integridade da duração
(ou o mais próximo que se chega disso) é importante pra efetividade do sistema
do filme. É possível dizer que aquele material bruto permite muitas outras coisas,
mas acho que o filme não. E, bom, não acho que eu diria isso sobre todo e qualquer
filme não. É uma características do que, por falta de melhor nome, penso como
um filme-sistema ou um filme-teoria. É cinema, mas a fruição pedida é de natureza
muito diferente. O Escorel defende a idéia de que cada material
bruto já traz um filme em si, e que o trabalho do montador é descobrir esse filme.
É uma questão bem problemática, mas interessante justamente por isso. Todo filme
precisa ser o que é, mas isso não quer dizer que outros tratamentos não poderiam
fazer bem ou melhor ao filme que ele tenta ser. Tenho suspeitas de que a atividade
crítica existe justamente nessa lacuna, mas bom, é algo que preciso pensar melhor
a respeito. Sobre o WKW, não podemos discordar mais. Acho
que ele fez várias obras-primas (na verdade, não gosto do As Tears Go By,
mas fora isso, acho que ele tem um nível bastante impressionante), e fico animado
até para ver o suposto filme "menor" que dizem ser o Blueberry Nights. Maio
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br |