diário da redação
Questões trabalhistas - o trabalho encenado
edição de Eduardo Valente

Nunca se sabe que tema vai render discussão na redação... Foi só Leonardo Mecchi anunciar seu desejo de escrever um texto sobre O Que Você Faria? e O Corte, que começou uma longa troca de emails sobre o tema do trabalho no audiovisual moderno (especialmente brasileiro), com participação de quase todos os redatores da revista. Como já é nosso hábito, dividimos a conversa informal com os leitores, sabendo que assim podemos dar uma idéia bem próxima de como surgem e se discutem os temas do cinema dentro da redação.

* * *

De Leonardo Mecchi, 25/08/2006, 6:10 PM

Curiosa e inesperada (ao menos para mim) essa recepção bem positiva de O Que Você Faria? entre todas as pessoas com quem converso. Trata-se de um filme simples, baratíssimo (ao menos teoricamente, afinal de contas são 8 atores, cenário e figurino mínimos e basicamente uma única locação), sem grandes arroubos estéticos, mas que funciona azeitadinho, com um bom roteiro, boas interpretações e um clima criado de maneira bem competente pelo Piñeyro. Belo exemplo a ser estudado por nossos conterrâneos.
E para mim ainda há todo um outro interesse, tendo em vista que trabalhei em multinacionais e participei de inúmeras dinâmicas de grupo muito semelhantes àquela. Sintomaticamente sempre saia (ou era saído) antes que as coisas desandassem para o extremo mostrado pelo filme (o que de certo modo mostra que esses processos até que selecionam bem as pessoas), mas o que conheço de histórias dessas dinâmicas... (coisas do tipo "se você fosse uma pizza, que sabor seria?").


De Ilana Feldman, 25/08/2006, 8:04 PM

>Belo exemplo a ser estudado por nossos conterrâneos.
Leo,
Além do exemplo econômico-estético que vc cita, acho interessante – na comparação com as outras cinematografias (especialmente a francesa e agora a argentina) – como o cinema brasileiro está totalmente afastado dessas questões do mundo trabalho... Parece que nossa "atual tradição" bebe na fonte das telenovelas – não só esteticamente (o modelo radiofônico, como disse o Kleber), mas na famosa acusação que ninguém trabalha nas tramas da teledramaturgia. Quer dizer, trabalhar trabalham, mas o trabalho nunca é uma questão.
(Curiosamente há uma personagem dondoca em Páginas da Vida, mulher do falecido Calloni, que passou toda a primeira fase da novela com o mesmo texto: que queria trabalhar. Mas aí a questão era a inserção da mulher e esse blablablá feminista chato.)
Me refresquem então a memória, até porque não tenho acompanhado 100% dos filmes nacionais lançados, mas quais filmes brasileiros, além de Eles não usam black-tie, O Homem que virou suco e A queda, tematizam explicitamente as relações empregatícias/conflitos patronais??


De Kleber Mendonça Filho, 26/08/2006, 1:57 AM

Ilana, tua peergunta me levou direto ao Domésticas, onde Meirelles tirou os patrões, deixando, a meu ver, o filme cotó. Para ele, era mais interessante deixar as empregadas felizes no mundinho engraçadinho delas, falando errado e sendo simplórias, que é o papel delas. Lembrei essa semana do Domésticas ao me submeter ao Trair e Cocar é só Começar", oitavo LONGA de Moacyr Góes em 3 anos – só perde para Buttman.


De Eduardo Valente, 26/08/2006, 10:30 AM

Se alguém for tratar da questão do trabalho no audiovisual brasileiro recente a sério, não pode ignorar O Aprendiz...


De Ilana, 26/08/2006, 12:02 PM

A idéia era essa Valente, não só O Aprendiz, mas, mais anteriormente ainda, todo o modelo de gingana-narrativa que move/mobiliza um BBB, por exemplo, e é pautado por essa associação direta com as ginganas/dinâmicas de grupo empresariais, empenhadas na paulatina eliminação dos candidatos até se chegar ao vencedor. E os critérios tb são bem parecidos, como carisma,
empatia, motivação, capacidade de liderança, articulação e empreendedorismo (palavra horrível) etc, com a fundamental diferença que no BBB o último critério (o de escolha do finalista e não da inicial seleção dos candidatos) é sobretudo moral, enquanto os outros apresentam uma lógica estritamente empresarial, amoral (desde No Limite). Talvez O Aprendiz esteja mais para
Idolos...


De Cléber Eduardo, 26/08/2006, 12:37 PM

O trabalho é um "situação", não uma questão trabalhista, em O Homem Que Copiava.
O Homem do Ano e Achados Perdidos, em alguma medida, são sobre o exercício do trabalho, o de matador e o de delegado. Em Anjos do Arrabalde e Garotas do ABC, o trabalho é uma questão, não a principal ou exclusiva, mas é formatador da vida dos personagens. A questão no cinema brasileiro é menos o trabalho e mais a ausência dele.


De Leonardo Mecchi, 26/08/2006, 1:10 PM

Ilana,
Diria mais ainda: acho que a questão não é nem da representação do trabalho no cinema nacional, mas da representação da classe média/alta como um todo, para além das comédias de costume cariocas.
Acho que o último que fez isso foi o Walter Hugo Khouri, ou estou enganado?


De Ilana, 26/08/2006, 1:56 PM

Leo,
A minguada aparição das questões da classe média no cinema nacional me parece um outro problema... (eu e Cléber uma vez sugerimos ao CCBB uma mostra sobre as  imagens da classe média, que, 'obviamente', não colou...). Mas quando falo do trabalho é menos da representação deste que dos conflitos que ele gera. De qq forma, os filmes que citei (Eles não usam Black tie, A Queda e O homem que virou suco) se situam nas classes baixa ou média-baixa.... Assim como os filmes do Carlão, que o Cleber lembrou. Por isso acho, que essa questão perpassa todas as classes, inclusive sob a perspectiva dos patrões...
Mas, enfim, essa é uma curiosidade sociológica (já o aparecimento desse tipo de conflito não garante bons filmes). E, nesse sentido sociológico, o trabalho realmente não forma o imaginário nacional. À exceção dos reality shows, onde se trabalha todo tempo, num exercício de auto-produção e competição, e onde se explicita a cruel dinâmica de seleção-eliminação empresarial. Agora, apesar de apresentarem uma estética utilitária, esses programas são bem diferentes entre si. Acho o BBB, no sentido estético, o mais interessante e mesmo instigante. Televisão e dramaturgia modernas.


De Cléber, 26/08/2006, 2:05 PM

Domingos Oliveira e Jorge Furtado filmam diferentes classes médias, e não por acaso Domingos Oliveira é a maior referência de Jorge Furtado. Claro que Domingos Oliveira enquadra-se em "comédias de costumes cariocas", mas em seus filmes o trabalho está sempre presente, em alguma medida, embora seja sempre o mesmo trabalho, o trabalho criativo, artístico, poético, etc – o que determina o tipo de conflito que seus personagens têm com a vida e com o trabalho. Hugo Carvana também entrava por essa seara em Bar Esperança – ele falava à beça de trabalho. Essa classe mais alta, mais elite, é o universo de Mauá, que é sobre um patrão e suas estratégias. E deve estar representada em Chatô, que certamente tratará de trabalho, outro patrão.


De Cezar Migliorin, 26/08/2006, 2:30 PM

É ótimo esse recorte, filmes que falam de trabalho. Bar esperança é um filmaço...
Lembrei do Bianchi: o trabalho é muito presente, o trabalho como forma de se exercer os poderes mais perversos. Inclusive o do diretor, trabalho esse tematizado em Mato Eles, Romance e Cronicamente.
No Bianchi o trabalho é frequentemente pensado como lugar onde a humilhação é mais fácil, onde as pessoas mais fragilizadas, é também o lugar onde todo micro poder é utilizado de maneira perversa.
Recentemente Leo Sette e eu vimos um filme do Godard da série 6X2 em que Godard recebe pessoas para trabalharem na produtora. Às vezes é quase Bianchi – tem até uma aula de semiologia para um soldador.
Lembrei que O Domingos e o Carvana tem a Globo como pano de fundo para o trabalho. No Carvana não me lembro se Globo é citada nominalmente, mas no Domingos é. "Vou me demitir da Globo" – uma frase essencialmente cinematográfica.

De Ilana, 26/08/2006, 3:11 PM

Engraçado essa relação-trabalho que se dá de maneiras distintas entre os cineastas – e, ao contrário do Bianchi e do Godard, tenho a impressão de que os franceses, de modo geral, vêem a conquista do trabalho como uma redenção final. Este é o caso do último plano de A vida sonhada dos anjos e de O ladrão, ambos do Erik Zoncka. Também nos Dardenne o trabalho é fundamental, especialmente em RosettaO filho e A promessa (A criança estaria na problemática contígua, as franjas do trabalho). O Laurent Cantet é outro com Recursos Humanos e A agenda. E agora O Corte do C.G. Há ainda aquele drama patológico-psico-social de O Adversário. Enfim, o problema é sempre ser expelido do mundo do trabalho e nunca o mundo do trabalho propriamente e o sistema econômico que o produz.  (Nesse sentido, o Siegfried, que me lembre, é contra-fluxo com Sansa e Louise take 2).

Mas o Cezar me fez lembrar aquele dito do Godard, retomado pelo Deleuze, de que os espectadores de TV deveriam ser pagos tanto quanto os produtores dos programas. Pois haveria aí uma divisão do trabalho e a audiência estaria exercendo um serviço público... Do mesmo modo, sg. Deleuze (rememorando Guattari) os psicanalistas tb deveriam ser pagos tanto quanto os analisandos, pois o traballho dos primeiros é ouvir/peneirar e o dos segundos é produzir inconsciente...


De Leo Mecchi, 26/08/2006,
3:13 PM

É verdade, me esqueci do Domingos, de quem gosto muito. Mas ainda assim tanto o Domingos quanto o Furtado trabalham essa classe média na chave da comédia, e eu estava pensando num drama mais psicológico/existencial à la Noite Vazia (daí eu ter falado do Khouri). Pois, para mim, aí sim teria uma reflexão sobre o trabalho de uma maneira interessante: como conflito moral, de princípios ou existencial e não apenas como uma outra forma de se abordar a pobreza/miséria (que é como hoje vejo que o trabalho é trabalhado – argh – nos filmes nacionais).


De Leo Mecchi, 26/08/2006, 3:41 PM

O plano final de A Vida Sonhada dos Anjos é uma das coisas mais tristes que já vi na história do cinema, aquilo não é redenção de modo algum, Ilana! Para mim aquela é uma visão extremamente pessimista do Zoncka, onde o indivíduo, por mais forte que seja, invariavelmente sucumbe às imposições da sociedade, seja se suicidando (no caso de Marie) seja se integrando a uma massa desumanizada de trabalho (no caso de Isa). E olha que eu adoro esse filme...


De Ilana, 26/08/2006,
3:58 PM

Eu também adoro esse filme, Leo!! Mas a integração de Isa "a uma massa desumanizada de trabalho" é no filme sua única saída – na verdade, é sua alternativa à vida (pq. no exemplo oposto, o da não-integração, a saída foi o suicídio). Então é dessa redenção de que falo, não uma redenção gloriosa, mas a redenção como salvação, ou mesmo "libertação" de uma determinada condição, mesmo que esta imponha uma nova escravidão, uma nova forma de subjugação, como esse trabalho desumanizado. Esse conflito e paradoxo, entre a liberdade-aprisionada pela falta de grana ou o aprisionamento-liberto pela mínima presença dela está no Zoncka e nos Dardenne.


De Paulo Santos Lima, 26/08/2006,7:19 PM

Recente, tem também A Concepção, que fala do vazio existencial e resistência a essa nossa lógica, que é a do país, Brasil, capitalista, onde o trabalho ou a inserção no sistema produtivo é a condição de sobrevivência. Há o personagem de Matheus Nachtergaele se travestindo de "executivo" para armar seu teatro farsesco, a azia do casal que retorna/sucumbe ao sistema, mesmo mantendo um olhar levemente reformista (ou não? lembro-me pouco do filme). E, mais importante, a questão da identidade diz respeito ao que vc é socialmente, ou seja, "trabalhisticamente".
Diferente de um filme como o perdidíssimo Achados e Perdidos, onde o trabalho serve para compor o personagem, personalizá-lo. Ou, quando é mais um adicional dramático externo (Cidade Baixa) ou interno-existencial (Crime Delicado, por exemplo) e menos uma questão para as ações do personagem.


De Cléber, 27/08/2006, 3:19 AM

Não sei se há redenção nesse final de Vida Sonhada, o que vejo é que se trata de uma opção pela vida, em contraposição ao suicídio, mas essa opção pela vida traz em si uma espécie de não opção dentro da opção, uma prisão, uma limitação, repetição, um determinismo, que desenha para o futuro, a partir da imagem dela na fábrica, uma projeção modelada pelo presente. Não sei haveria redenção ou uma solução resignada, na linha "se não tiver outro jeito...".
Mas, concordo com essa afirmação sobre a relação do cinema francês com o trabalho – e citaria ainda o caso daquela ficção da assistente dos Dardenne, que passou no Festival do Rio em 2004. O único francês recente que foge à essa regra é o Kaplisch, no primeiro Albergue Espanhol, que é uma espécie de primo distante do filme do Cameron Crowe. Em um e outro, perder o trabalho ou recusá-lo é uma libertação, uma renovação, um arejamento. Lembro ainda que nessa linha dos franceses há a comédia americana com Jim Carrey, As Loucuras de Dick e Jane.


De Ilana, 27/08/2006, 11:42 AM

Nessa linha, além do Albergue Espanhol, há o Sansa, do Siegfried, exibido tb no Fest. do Rio, 2004. Um filme adorável, em vários sentidos. Quanto à redenção em "A vida sonhada", você disse a mesma coisa que eu já havia dito... Redenção como opção pela vida, redenção em seu sentido literal, como salvação/sobrevivência. Está lá no dicionário. O problema é que "redenção" na cultura cristã adquiriu esse matiz salvacionista-transcendental e se tornou ela mesma uma palavra redentora...


De Cléber, 27/08/2006,
12:31 PM

Não sei se salvacionista-transcendental, mas certamente no sentidor de redimir-se, viver uma experiência para superar outra e prosseguir, uma experiência como preço da outra. O Missão Impossível 3 também tem um troço interessante sobre "trabalho", no sentido espetacular da coisa, e o Miami Vice é o trabalho como caminho para o amor, mas um amor sabotado pelo trabalho... Ninguém mais viu ainda?


De Leo Mecchi, 27/08/2006,
12:41 PM

Concordo com o Cleber que é mais uma resignação do que uma redenção. Para mim, é uma quase-morte mesmo. Enquanto a Marie opta pelo suicídio físico, a Isa opta por uma espécie de suicídio moral/espiritual/ideológico. Não vejo a opção dela como muito melhor do que a da Marie, o que volta à questão do pessimismo de Zoncka nesse filme. Mas gostei da aproximação entre Zonka e os Dardenne. A propósito, Ilana, tenho o DVD francês da Vida Sonhada (que inclusive vem com um curta bem interessante do Zonka). Se quiser, te empresto pro Cleber copiar...


De Francis Vogner, 27/08/2006, 2:42PM

Olha, não gosto nem um pouquinho do filme do Zonka e o acho diferente dos filmes dos Dardenne. O Vida Sonhada dos Anjos é um filme que simplesmente tem seu assunto como "dado morto". O suícídio é aquela saída (ou beco sem saída), para uma situação em que só há dois caminhos: a resignação ou o morte. Discordo mais uma vez da leitura de ambos. O suicídio é a única libertação (e patética, no entanto, porque incerta e patológica), enquanto o trabalho (a sequência final mostra isso) tem o automatismo da sobrevivência. Ou seja, não há vida. Acho grotesca essa sacada de alguns filmes em entender o mundo (o seu mundo, que no mau sentido, parece inevitavelmente ancorado ao mundo verídico – ou seja, uma espécie de atestado de óbito, somente), como algo subjugado a um determinismo da história.
Nos filmes dos Dardenne (principalmente Rosetta) o que importa é a experiência do protagonista perante as vicissitudes do seu mundo, a câmera quase se une organicamente ao personagem. Por isso, relativiza esse mundo, faz um recorte, adere à experiência da personagem – experiência digo, física, visual como se tudo se reconstruísse ali. Os movimentos em falso não são ascese que visa "coisificar" a personagem, restringí-la ao esgotamento e cansaço do mundo "real". É um trabalho pedagógico, no melhor sentido do termo (o que manda às favas um certo didatismo que filmes ruins como Segunda Feira ao Sol têm).


De Ilana, 27/08/2006, 4:48 PM

Francis, 
Muito interessante sua análise comparativa entre A Vida Sonhada e Rosetta. Eu teria de rever o primeiro para uma relação mais apurada com o filme, porém, a intenção com a comparação inicial entre ambos (imagino que para o Leo também) não era da ordem da analogia, mas, como a partir das diferenças entre ambos há uma "mesma" relação conflituosa com o mundo do trabalho e suas implicações... e tudo aquilo que já comentamos. Mas gostei muito dessa análise das diferentes formas de aproximação com/dos personagens que, no limite, dizem respeito a diferentes formas de naturalismo/realismo (naturalismo como código estético e realismo como procedimento através do qual é revelado um mundo social).
Nesse sentido, e seguindo seu raciocínio, é como se Zoncka utilizasse um naturalismo-realista (ancorado nesse suposto mundo "real") e os Dardenne utilizassem um naturalismo-fenomenológico (ancorado, sobretudo, na dimensão da experiência da protagonista). Mas, ainda assim, há vários momentos fenomenológicos em A Vida Sonhada, e em minha memória são os mais bonitos. Quanto ao "atestado de óbito" e o "determinismo histórico" (por exemplo, de modo repugnante, em As Invasões Bárbaras) é um problema mesmo intrínseco ao cinema que se quer realista, àquele que precisa se ancorar em acontecimentos históricos para ter legitimidade e veracidade. Nesse aspecto, um cinema chamado por aí de "político" (de Ken Loach, com seus filmes sobre revoluções, a Bertolucci com Os Sonhadores) é, com eufemismo, o mais problemático....


De Fernando Veríssimo, 29/08/2006, 12:56 AM

Ainda não vi Miami Vice, mas tenho certeza absoluta que contribui pra esse debate.
Michael Mann é marxista de carteirinha – sem a pieguice católica dos Dardenne, um pragmático puro. COM ideologia!
Rever Colateral, Thief (caso raro de bom título em português: PROFISSÃO LADRÃO), O Informante – até O Último dos Moicanos, e etc.
Imaginem o que seria O Aviador nas mãos dele – quase foi!



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