O
Grande Chefe (Directoren for det hele), de Lars Von Trier (Dinamarca/Suécia/Islândia/Itália/França/Noruega/Finlândia/
Alemanha, 2006) por Cléber Eduardo
Falso distanciamento e a farsa do
poder Pode-se afirmar que em Dogville,
Manderlay e neste O Grande Chefe, existe da parte de Lars Von Trier
a vontade de sabotar a crença na imagem. Trata-se de uma opção a princípio estranha
para quem atolou-se no melodrama seqüestrador da emoção em Ondas do Destino
e Dançando no Escuro, nos quais a quebra de uma dinâmica do verismo
não ameaça em nada a construção de um ilusionismo cênico. Se a princípio parece
estranho esse mesmo realizador filmar em cima de um palco nos dois filmes seguintes,
tentando nos afastar dos efeitos narrativos para nos instalar nas operações cênicas,
uma visão mais atenta nos mostra haver coerência nessa proposta. Isso porque,
ao mostrar o artifício de construção, como entendeu quem aderiu aos dois filmes
anteriores (ou a pelo menos a um deles – em geral, Dogville), Von Trier
busca apenas transpor um obstáculo. Mais que distanciamento, percebe-se, quer
a adesão do espectador – mas, para tal, será preciso superar os entraves. Uma
adesão “apesar de” e não apenas “por causa” (e colocar-se obstáculos, falsas ameaças
à narratividade, é algo bem comum a Von Trier – basta ver seu documentário As
Cinco Obstruções). Até por isso, vamos pular aquela
parte sobre Brecht nos filmes mais recentes de Lars Von Trier, porque há uma certa
facilidade crítica em fazer essa relação sem levar em conta, na aproximação, as
distinções entre os momentos históricos da “representação” e a capacidade da imagem
em implodir distanciamentos. Uma teoria para o teatro não pode ser simplesmente
despejada sobre o cinema. Cortes, planos-detalhes, fluxo entre os planos, movimentos
de câmera são operações que, no teatro brechtiano, não são uma questão por não
se tratarem de operações do teatro (não de forma evidente como no cinema). Pois
cada uma dessas operações, por mais empenhadas que sejam em se fazer notar, criam
um jogo de sedução com o olhar, mesmo quando procura sabotá-lo ou impor-lhe ruídos. Se
alguns dos elogios a Dogville eram centrados na superação do palco, na
capacidade de se acreditar nas situações e de se visualizar a cidadezinha e suas
casas, O Grande Chefe muda o desafio sem alterar a natureza de sua existência.
Em vez de filmar em cima do palco, Von Trier mostra a câmera: na primeira seqüência,
refletida na janela de um prédio. E usa uma narração em primeira pessoa, de diretor
do filme, com a qual começa falando de sua proposta (fazer uma comédia sem pretensões),
e, mais à frente, intervém na narrativa para comentar procedimentos, assim como
para anunciar uma nova personagem. Ao final, despede-se, desculpando-se com quem
esperava mais e afirmando que, se o espectador está satisfeito, é porque merecia
ver tudo aquilo. Não sei se por ruído de tradução, a frase soa ambígua (o que,
em se tratando de Von Trier, não seria assim tão estranho): merecer ter visto
o filme pode tanto ser um agradecimento como uma ironia. Nas
situações exibidas, ambientadas em uma empresa dinamarquesa em processo de venda
para um especulador islandês, há outras ameaças à ilusão. Von Trier promove uma
sucessão de cortes dentro dos mesmos planos, sem nenhuma intenção de efeito estético
(como era em Acossado, de Godard), com a evidente meta de nos fazer arranhar
a vista. Também aumenta e diminui o volume do som, muda seu registro, sem corte
da imagem, como se tivessem aberto uma janela com uma avenida embaixo. A luz é
alterada na mesma seqüência, eixos são fuzilados na passagem dos planos. Para
que? Não haveria uma certa disposição de brincar de amarelinha com a reflexividade
tão praticada e conceitualizada a partir dos anos 60? Von Trier não mostra sua
câmera e fala sobre o reflexo dela na janela com a seriedade de Godard em O
Desprezo. Há uma piada com o próprio procedimento. Como não o leva a sério,
a reflexividade, mais que efeito, é um dispositivo narrativo, assim como cômico.
Coloca-se a metalinguagem como objeto do riso do espectador. Uma
farsa, portanto. Assim como a mostrada na empresa onde o filme se concentra. Temos
lá um ator que, contratado pelo dono da companhia (por sua vez disfarçado sob
a posição de empregado), tem de bancar o chefe. São várias as tentativas de se
extrair o humor da interpretação desse personagem ator na pele do comandante da
empresa. Várias as trapalhadas Podemos nos sentir freqüentemente, quando os cortes
permitem, em uma peça do teatrão brasileiro, onde a graça está na encenação em
si e não na situação encenada. Mas, por trás da aparente graça, está lá o sumo
de Von Trier: os jogos de manipulação e esconde-esconde das instâncias de poder,
que agem na sombra e com aparências enganosas, sempre a esconder as verdadeiras
operações de seu exercício. Ora, não é isso, enfim, que faz Von Trier? Não mostra
a imagem e a voz do poder narrativo, o grande chefe do filme, mas apenas para
cometer outras operações à sombra? Tudo não passa de uma
farsa, tanto entre os personagens quanto entre diretor e espectador. Há uma questão
moral em jogo, questões de direito e de justiça, questões de vida em grupo. É
possível a aproximação com a manipulação de comportamentos e mentalidades presente
em Os Idiotas. Nessa farsa, há um tanto de laboratório humano, como há
em Os Idiotas, como há em Dogville, como parece haver nas intenções
de Von Trier, não apenas nos alvos de suas críticas. Assim como Michael Haneke,
o cineasta dinamarquês, mesmo quando se apóia em moral como referência de entendimento
do mundo, transborda amoralidade em seus procedimentos, tornando-se objeto de
seus próprios discursos e supostas críticas. São cineastas que, ao olhar pela
janela, encontram um espelho. Não de suas pessoas, mas de suas mentalidades artísticas.
Setembro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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