sessão cinética
Vozes
Distantes (Distant Voices, Still Lives), de Terence Davies (Inglaterra, 1988)
por Fábio Andrade
Passado
imperdoável
Ao falar de Vozes Distantes,
longa de estréia de Terence Davies, é inevitável mencionar os nomes de Alain Resnais
e Federico Fellini. Resnais, pela elegância dos travellings memorialistas;
o cuidado na construção do décor; o rigoroso planejamento prévio de cada
pequeno elemento em quadro; a câmera que expressa, em sua movimentação e posicionamento,
o mergulho no passado. Fellini, pela grandiloquência operática da vida particular;
a narrativa como mosaico de fragmentos soltos que se fecham em pequenos planos-sequências;
o desenho sinfônico de vozes e gestos que encontra personalidade alguns tons acima
do naturalismo estrito; o espaço transformado em palco para um verdadeiro balé
de mortos. Em ambos os casos, a proximidade é pertinente temática e estilisticamente.
São todos cineastas interessados na memória enquanto fonte artística, muitas vezes
se aproximando da autobiografia mais direta (mais em Fellini, menos em Resnais),
e que usam o cinema como espaço de estilização irrestrita, onde a encenação do
vivido vem sempre estilhaçada pelo prisma do olhar individual. Mas
há um terceiro cineasta que vem à mente quando vemos os filmes de Terence Davies,
e que talvez seja a influência que gere maior espanto, justamente por ser uma
aparente contradição formal ao sistema por ele criado: Yasujiro Ozu. Contradição
uma vez que as qualidades normalmente associadas aos dois diretores são não raro
opostas: Davies e a empostação sinfônica, o exorcismo dos traumas particulares,
os travellings que entortam o tempo e o espaço, a luz marcadamente recortada;
Ozu e sua metódica economia, produzindo um universo ficcional que parece autônomo,
completamente apartado de sua trajetória pessoal, filmado com câmera quase sempre
fixa, em composições que acreditam demais no extracampo e na passagem do tempo
para permitirem qualquer deformação diegética. Dois cineastas que vêm de cantos
opostos, mas que se encontram em uma velha predileção: observar retratos de família.
Como
Ozu, Terence Davies parece se inspirar na composição dos retratos familiares para
desenhar os seus quadros. Surge daí a predominância de enquadramentos frontais,
com os personagens encarando a câmera, como se um velho retrato fosse tirado da
parede e colocado em movimento, incluindo seu passado e seu porvir imediato. O
cinema vem como uma espécie de choque elétrico, reanimando os mortos (uma vez
que Terence Davies filma sempre o passado), libertando-os da pose rígida que os
condensou no tempo. Vozes Distantes – que compõe um díptico de inspiração
autobiográfica com seu filme seguinte, O Fim de um Longo Dia – se interessa
por esse reavivamento do passado não só por os fantasmas continuarem rondando,
mas principalmente porque o passado não se dá apenas em poses.
As lembranças
de Terence Davies são particulares justamente por não se deixarem confinar nos
retratos. Elas estão mais vivas nas canções que já não mais se cantam, nas ondas
do rádio que permanecem feito assombrações, na coleção de jargões e entonações
que faz de cada fala uma pequena cápsula de uma época, nos eventos isolados que
compõem mais uma sensação de vivência do que uma narrativa, nos papéis de parede
empastelados, na insegurança palpável de uma limpeza de janelas. É a essas impressões
que Davies deve fidelidade, e essa fidelidade precisa ser preservada em toda sua
integridade, mesmo quando isso se traduz em uma literalidade incômoda (não há
filme frontal que não seja incômodo), quase cruel, onde qualquer relativismo é
interdito. Vozes Distantes traz os mortos de volta à vida, pois só assim
é possível se eximir da obrigação social de perdoá-los. Fevereiro
de 2010editoria@revistacinetica.com.br
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