Distrito 9 (Disctrict 9),
de Neill Blomkamp
(Nova Zelândia, 2009)
por Eduardo Valente

Épico vagabundo, com orgulho

É da combinação de dois sentimentos muito distintos que Distrito 9 retira a maior parte de sua força: por um lado, o de um filme com prazer total em ser pouco mais do que um divertimento vagabundo, construído (especialmente a partir de sua metade) numa lógica de montanha-russa onde uma cena leva à outra essencialmente pelo desejo de provocar as emoções mais baratas do seu espectador; por outro, toda a ambição de conseguir criar um autêntico sentido épico de uma ficção apocalíptica, cheia de efeitos visuais e cenas de ação com elementos múltiplos e enorme escopo. Que Neill Blomkamp tenha tido sequer a pachorra de, neste que é seu primeiro longa (realizado antes dele completar 30 anos), buscar realizar estas duas coisas de maneira tão completamente entregue e exagerada, é algo a ser muito mais louvado do que a possibilidade inegável de nos apegarmos a suas várias pequenas incapacidades ou muletas (como o uso da trilha ou a duração realmente excessiva, que se tem a ver com seu sentido épico, também não ajuda em nada a fruição do seu lado vagabundo).

Não há como não pensar, vendo o filme, em Tropas Estelares, de Paul Verhoeven. Mas se de fato há nos dois filmes um interesse claro pelo uso da ficção científica como espaço fértil para a sátira, o interesse eminentemente político do filme de Verhoeven (mesmo na sua manipulação da linguagem e da estética da ficção vagabunda) aqui dá lugar a um filme que, se passa pela política, quer mais é mergulhar na vagabundagem, aquilo que mais o interessa. Tanto assim que é palpável no filme o sentido de prazer na sua realização, algo que passa pela maneira como usa os efeitos computadorizados, mas também em como a direção de arte parece se esmerar na criação dos ambientes e das inúmeras gadgets deste mundo alternativo de uma cidade partilhada por homens e alienígenas. É incrível como os planos abertos do filme são povoados (mesmo poluídos) de detalhes e mais detalhes criados e postos em cena um a um, vários na pós-produção. Esta é uma das características que nos faz sentir que não é acaso descobrimos que o diretor Blomkamp vem não só da publicidade e do videoclipe, mas principalmente do desenvolvimento de games.

Distrito 9 talvez seja mais lembrado no futuro como um primeiro filme realmente ambicioso a ser realizado por um diretor que emerge deste ambiente, tendo tido sua sensibilidade moldada neste novo espaço que, inegavelmente, terá importância total na dinâmica futura do cinema de ação e do grande espetáculo. Porque se até agora tínhamos visto a indústria tentando hibridizar linguagens principalmente adaptando narrativas de games lucrativos, talvez Distrito 9 seja o primeiro filme que nasce no cinema com a lógica narrativa e visual herdada deste outro ambiente (onde seu prazer em explodir corpos em poças de sangue é apenas o sinal mais óbvio disso).Talvez por isso ele possa nos propor um protagonista tão sui generis: por tudo que acontece na primeira metade do filme, não há motivo nem para simpatizarmos nem mesmo para acharmos que Wikus Van der Merwe (aliás é impossível pensar que a ascendência holandesa sobre o nome e o sotaque do personagem não dialoguem com Verhoeven ainda mais) será de fato o personagem principal do filme. Serão as circunstâncias de estarmos o tempo todo grudados nele, como num jogo, que afirmam que ele pode ser também um protagonista de cinema, e não qualquer característica prévia que o destaque para tal – afinal temos aqui um ator com rosto desconhecido e não particularmente carismático, e um personagem bastante odiável, de estupidez inegável e exacerbada pelo próprio filme.

Mas o que há de mais notável na linguagem do filme e sua relação com o ambiente onde surgem os games é esta sensação de uma clara consciência de vir depois de tudo, depois que todas as linguagens audiovisuais (do cinema, da TV) já haviam há muito tempo estabelecido suas convenções, que hoje existem como dados tão inegáveis que cabe ao que vem depois meter-se ali dentro como se entrasse num enorme brinquedo. Por isso, o uso de estéticas documentais no filme (tanto os inserts de cobertura jornalística, como o uso da câmera-testemunho em primeira pessoa, como as entrevistas em formato talking heads) têm muito menos a ver com um desejo de atrelar a ficção na realidade do mundo ou de criar um curto-circuito de percepções do que simplesmente se esbaldar no máximo possível de possibilidades de jogo com as convenções de imagem, criando muito menos uma lógica específica dentro delas do que um sentido de caos e da falta de lógica. Não por acaso, produto do olhar de produtor de Peter Jackson que é, o filme parece muito mais um filho do caótico Forgotten Silver dirigido por este em 1995 do que parte da discussão contemporânea sobre permeações do documentário na ficção e vice-versa.

Pois Distrito 9, não importando que tenha na sua narrativa paralelos óbvios com problemas atuais como o da imigração (onde se passar na África surge como um dado particularmente agressivo), não acredita ter algo realmente novo a dizer sobre nada disso – ou sobre nada mesmo, em suma. Ele só acredita que, vindo depois de tudo, chega com a possibilidade de avacalhar, ser grosseiro (e a palavra vem à mente algumas vezes ao longo do filme), de se impor pela total falta de modos. Se este já seria um sentimento saudável para qualquer diretor jovem, torna-se ainda mais quando se insere dentro de uma indústria enorme e poderosa – e que, já sabemos, está mais que pronta a digerir esta rebeldia e torná-la produto vendável. Por um pouco disso tudo é que, mesmo com muitas falhas, Distrito 9 é mesmo um tremendo primeiro filme. Aguardemos para breve Distrito 10 (algo planejado totalmente, numa das melhores caras de pau do filme).

Setembro de 2009

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