ensaios
A imagem das palavras
Os desgastes da adaptação em Djalioh, de Ricardo Miranda
por Fábio Andrade
Não faz muito tempo, escrevi um artigo
para o catálogo da retrospectiva da Semana dos Realizadores
que identificava um traço recorrente nesta nova geração
de filmes brasileiros: o processo criativo como tema das próprias
obras. Por geração, não me refiro à
idade dos realizadores, mas sim a um conjunto de filmes que surgem
em um mesmo momento e contexto e terminam por dialogar de maneira
mais direta entre si do que com outras fatias da produção
– basta pensar que um dos que lidam mais frontalmente com
o tema seja justamente O Último Romance de Balzac,
de Geraldo Sarno, e que ele tem muito mais ressonância e
identificação no encontro com Estrada para Ythaca
do que com o trabalho recente de Cacá Diegues, para ficar
com um companheiro geracional de Sarno, assim como Estrada
para Ythaca tem mais relação com O Último
Romance de Balzac do que com 2 Coelhos, filme de
estréia de um diretor que surge mais ou menos no mesmo
momento. O compartilhamento temático é digno de
nota, pois embora o processo criativo sempre tenha tido uma presença
forte na produção de poesia brasileira, no cinema
ele nunca rendeu mais do que iniciativas individuais e esparsas.
Caso
o tivesse visto antes, teria destaque nesse texto Djalioh,
filme de Ricardo Miranda que teve esparsas exibições
em festivais (aí incluída a própria Semana
dos Realizadores, em 2011), e agora tem um mais que bem vindo
período de exibição na íntegra pela
internet, no
site da Alumbramento (existe todo um outro artigo a ser escrito
sobre a absurda morosidade dos diretores em perceber a necessidade
de simplesmente mostrar as obras, que encontra uma possibilidade
de escoamento em iniciativas como esta... mas, por ora, falemos
do filme, e aproveitem a chance de vê-lo). Adaptação
de “Quidquid Volueris – estudos psicológicos”,
conto de Gustave Flaubert, de 1837, Djalioh parece mais
próximo em seu trabalho de versão literária
para o cinema daquilo que fez David Cronenberg com o Naked
Lunch, de William Burroughs: incorporar ao filme o próprio
processo de adaptação (ou, no caso de Cronenberg,
a angústia da escrita), a ponto de ele se tornar o fio
que conecta os fragmentos de encenação do material
tirado do texto original.
Em Djalioh, as palavras são personagens, como
os personagens são palavras. Esse desvio de foco já
fica claro logo nos primeiros minutos de filme. Começamos
com a voz de Helena Ignez em off, sobre uma montagem de planos
de galhos de árvores. A montagem, porém, é
feita por sobreposição de imagens, e os galhos terminam
por ocupar toda a tela, como uma parede que impede a passagem.
O impedimento, porém, não é natural ao mundo;
ele é criado deliberadamente com um artifício de
montagem. O cinema é
a ferramenta de ilustração da dificuldade que Ricardo
Miranda cria para si, e que estampará todo o resto do filme.
Suas imagens são o testemunho da dificuldade de sua criação.
Em
seguida, o rosto de Helena Ignez toma a tela, entrevisto pelos
reflexos de uma taça de vinho. Localizamos aquela voz que
se sobrepunha ao “caminho de dificuldade” do começo
do filme, e só então somos apresentados às
personagens. Ironicamente, vemos apenas seus pés, caminhando
de lado a outro. As personagens de Flaubert, escritor especialmente
notável por seus talentos descritivos, são reduzidas
a imagens de pés que caminham por diferentes espaços.
O filme é um espaço que elas podem habitar, mas
o cinema, arte do mostrar e incapaz de descrever qualquer coisa
que não ações, se impõe aqui na escolha
de quem mostra e de como mostra: dos personagens, interessa primeiro
a travessia, a movimentação que leva de um lugar
a outro, o passo a passo, ou os próprios pés; o
protagonista, aquele digno do close up, da identificação
em primeiro plano, é o próprio narrador.
Djalioh realiza um cruzamento improvável, quase
sacrílego, entre o “oratório cinematográfico”
de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, e a instalação
deliberada na interseção entre cinema e literatura
de Marguerite Duras. Não se trata, portanto, exatamente
de metalinguagem, mas de trazer ou
traduzir, para o cinema, a dimensão material da palavra.
Se quisermos usar a divisão linguística tradicional,
estamos mais próximos de uma metalinguagem incorporada
do que ordenada, pois os signos carregam uma dupla dimensão,
falando, concomitantemente, do significado que eles portam e do
processo de sua construção. O conteúdo do
texto é tão importante quanto a presença
do texto.
As
duas musas de Djalioh (Barbara Vida e Mariana Fausto)
são, igualmente, duas personagens que o protagonista-título
(Otávio III) cobiça, separado delas pelo vidro da
janela (ou pelas grades do zoológico, em uma associação
que o filme faz, em um de seus melhores momentos, entre o homem
e um grupo de orangotangos), como são encarnações
da própria palavra, inatingível, separada do diretor
pelo vidro da objetiva da câmera. Retomando o pensamento
de Christian Metz, Serge Daney escrevia, em texto sobre o cinema
de Straub e Huillet, que “a tradução linguística
do plano de um revólver não seria a palavra ‘revólver’,
mas alguma coisa como ‘eis um revólver’”.
O filme faz o caminho inverso, transformando as imagens sugeridas
pelo texto de Flaubert (uma vez que as imagens concretas de um
texto também não podem ser esquecidas: desenhos
de tinta em uma folha de papel) em enunciação, sabendo
que cada signo não será somente um signo, mas também
o ato de mostrá-lo. Em Djalioh, cada palavra se
contorce com a dor do significado, como agoniza Bovary na descrição
de Flaubert dos efeitos do cianureto.
Mas
mesmo esse processo de adaptação – de criação,
em última instância – não se separa
de uma vivência que, seletivamente, media, seleciona, ressignifica
os signos da obra (ou do mundo) original. Toda adaptação
é uma espécie de curadoria e Djalioh também
incorpora, às suas imagens, a aparente arbitrariedade desse
processo: o processo de adaptação é como
uma piscina de decantação, trazendo ao visível
as impressões que, após toda a descaracterização
inerente à versão em imagem, teimaram em flutuar.
No cinema, as imagens não espelham necessariamente o que
foi sugerido pelas palavras, mas trazem no corpo os efeitos desse
processo de decantação. Se boa parte dessa mesma
produção a que me referia no começo do texto
tematiza a impossibilidade de suas próprias ambições
(“fracasso” e “erro” são palavras
hoje mais corriqueiras do que “plano” ou “montagem”,
por exemplo), Djalioh se concentra no desgaste do processo,
desgaste este que é necessário para que, ao fim,
exista obra (e não apenas um projeto fracassado de obra).
É um filme sobre os sulcos que estampam essas palavras
desbastadas pelo tempo, pela técnica (embora, neste aspecto,
existam limitações que perturbam um pouco o embarque
pleno na proposta do filme), pela memória, pelo corpo de
quem fala, e pela fricção inerente – aqui,
pensada como próprio fim – do desejo primeiro de
vertê-las em imagens.
Dezembro de 2012
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