in loco - cobertura dos festivais
Doce Amianto,
de Guto Parente e Uirá dos Reis
(Brasil, 2013)
por Raul Arthuso
Esse canto torto feito faca
minhas
lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor
É perceptível nos filmes solo de Guto Parente uma
inquietação em relação às potências
plásticas da imagem cinematográfica e a manipulação
das cores, da imanência/permanência da luz no quadro,
a intervenção direta nos elementos do plano pelo
efeito especial. Assim, se há um desajeito dessas potências
quando do corpo-a-corpo com filmes como Flash Happy Society
e Dizem que os Cães Vêem Coisas, é
relevante saber que Doce Amianto nasce de um encontro
com uma história que parte do co-diretor Uirá dos
Reis para entender a força que essas potências alcançam
aqui.
Amianto é uma mulher passando por um momento de rejeição
de seu grande amor, atormentada pela solidão e a profunda
tristeza de ter uma série de sonhos, desejos, anseios abortados.
A epígrafe do filme, poema de Walt Whitman, afirma a condição
de uma rejeição ao mesmo tempo em que reforça
a vontade de pertencimento. Que a protagonista seja interpretada
por um homem deixa transparente uma idéia essencial aqui:
a transformação. Em Doce Amianto convivem
masculino e feminino, dor e humor, dureza e carinho, o poético
e o vulgar e muitas das gradações compreendidas
no entrecho. É na concretude da não-classificação
da protagonista que o filme encontra seu princípio. Trans-formação.
O transitório, mutável, plástico num mundo
de pré-concepções.
A própria construção do filme por Uirá
e Parente se dá como uma série de sinais e gêneros
cinematográficos: a multiplicidade de materiais e texturas
da imagem, uma certa instabilidade de sonoridades e uma economia
de moods que não se furta a uma série de
excessos e rasgos estéticos que passam reiteradamente pelo
artifício. Se há, por toda sua artificialidade e
a tendência ao bizarro, uma possibilidade de aproximação
com o cinema de David Lynch, ela apenas se concretiza no espelhamento
das transitoriedade dos climas e registros estéticos do
filme com os tormentos da personagem - o pesadelo íntimo
da personagem se manifesta no acerto climático das cenas.
Então, mais que Lynch ou Almodóvar ou João
Pedro Rodrigues, ou qualquer aproximação fetichista
com vestígios estéticos latentes no filme a outros
diretores que estabeleceram suas marcas autorais pelo surrealismo
sombrio (no caso lynchiano) ou pela reutilização
do imaginário kitsch e do melodrama (no caso almodovariano),
Doce Amianto é uma peça impregnada do espírito
da música brega - elemento presente em diversos momentos
da trilha musical do filme - em que as mediações
formais são reduzidas até restar apenas o excesso
rasgado dos sentimentos do eu-lírico. Uma imagem ecoa do
início para o resto do filme pelo resumo que traz dos termos
do jogo: após tomar um pé-na-bunda, Amianto cai
no chão e, literalmente, jogada na lama, chora num plano
próximo, longo, que não economiza na sentimentalidade.
Fundamentalmente essa é singularidade de Doce Amianto
dentro do espectro dos pares da geração de Parente
e Uirá: o desejo de um espelhamento completo narrativa-personagem
como expressão de suas sensações e sentimentos;
um desejo tão fervoroso de ir até eles que se entranha
nas frestas de cada imagem.
Os excessos que já se encontravam mais claramente em Dizem
que os Cães Vêem Coisas - e voltamos então
ao início da apreciação do filme - encontram
em Doce Amianto um terreno fértil exatamente porque
naturalizado na narrativa. O desajeito que não apenas Guto
Parente, mas os últimos filmes da Alumbramento (Não
Estamos Sonhando, Retratos de uma Paisagem e o próprio
Dizem que os Cães...) têm demonstrado ao
tentar lidar mais diretamente com uma concretude das coisas, vem
à frente e vira ferramenta narrativa. Doce Amianto
é em si também um gesto de "precisar mudar
o mundo", como diz a narração de Amianto no
final do filme. Uma intenção repleta de desajeito,
desaforo, violência e auto-imolação, mas também
uma profunda tristeza por ter de abandoná-lo. Doce
Amianto aponta também, a partir dessa trajetória
da personagem, um desejo de andar por caminhos diferentes daqueles
sobre o qual o cinema brasileiro de ficção, em vários
casos, tem transitado nessa última virada de década.
Assim, todo o artifício passa por emular essa série
de sensações e contextos para achar a alertada singularidade
do poema inicial. É "preciso mudar o mundo" –
o realista, para um não-naturalista, exótico, exarcebado,
excessivo, transmutação do concreto com o lírico,
um mundo em primeira pessoa ("voilà mon couer",
na segunda cartela do filme). Um mundo singular para uma personagem
singular. O artifício é a ferramenta de Uirá
e Parente em busca de uma imagem singular que dê conta de
todas as forças que perpassam personagem e filme, uma imagem
síntese contemplando sensibilidades masculina e feminina,
o lado cômico do excesso sentimental misturado a sua profunda
tragédia, um humor negro que evoca a gravidade do mundo
– e, nesse sentido, o intermezzo contando como
Blanche, a fada-madrinha de Amianto, morreu é um achado.
A imagem-síntese do efeito especial, da encenação
sobre chroma key, as manipulações de correção
de cor da imagem: pôr em cena elementos diversos e estranhos
entre si, mas latentes de serem formulados em conjunto num mundo
além das classificações. Pois, Doce Amianto
certamente será tomado como um filme gay, quando na
verdade sua dimensão política é a de ser
um filme trans - a tentativa de lidar com significações
que perpassam as mudanças em relação ao masculino
e o feminino pontuando que esses sentidos são sociais,
portanto transitórios, efêmeros e ultrapassáveis;
e não apenas eles, mas também noções
próprias do cinema como gênero, arte, sofisticação,
contemporaneidade. Um mundo de transformação cujo
sentimento pode ser apreciado indo direto ao olhar sobre casos
singulares, coisas singulares.
Janeiro de 2013
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