história(s) do cinema brasileiro - doc tv
Esquinas cearenses
por Cléber Eduardo

Em um de seus vários textos disponíveis na Internet, o professor de comunicação, poeta e ensaísta Ruy Vasconcelos deixa claro sua admiração por dois cineastas, mencionados por conta de filmes específicos: Joris Ivens (por A Ponte e A Chuva) e Jean Vigo (por A Propos de Nice). Documentários-sensação (para fazer a analogia com o cine-sensação de Dziga Vertov). A experiência da relação com a imagem sobrepõe-se à relação da imagem com a experiência. A experiência da forma, a realidade da linguagem, construída pela linguagem, não construtora dela (ainda que matéria-prima).

Pode-se lembrar de Vigo e Ivens ao vermos Uma Encruzilhada Aprazível, o documentário de Vasconcelos, que, com a consciência de quem certamente viu a proposta plástica-sensorial de seu conterrâneo cearense Alexandre Veras em As Vilas Volantes - Verbo contra o Tempo, também parte do DocTV (foto ao lado), procura deter-se na relação visual com o espaço, com raro espaço para a palavra falada ou para explicações quaisquer. Não apenas evita-se a palavra, substituindo-a por uma atmosfera sonora, como evita-se o sentido. O encadeamentro entre as imagens nada explica em Uma Encruzilhada Aprazível. Cada enquadramento ou plano-seqüência é uma tentativa de retenção do espaço no tempo, quase como se houvesse um enigma a ser decodificado pela insistência da câmera. Mas, essa câmera, e depois a montagem, nada decodificam. Apenas convidam para uma imersão em fragmentos de um espaço, na beleza das imagens, na construção de um mundo poético audiovisual.

No entanto, consciente demais de determinadas estratégias para produzir efeitos vinculados à uma noção de documentário artístico, Vasconcelos às vezes se perde na viagem, viaja por dentro da própria proposta, propiciando uma sensação de vale tudo. As Vilas Volantes, de Alexandre Veras (com colaboração de Vasconcelos), é trabalho-primo. Demonstra-se ali uma noção de observacional com ares artísticos, com agudo senso da luz e da composição dos planos, com dilatação das experiências miúdas no tempo. É no tempo das ações cotidianas e na sensorialidade da experiência mostrada que se assentam a narrativa e as imagens. A velha ensina sobre o que faz, resmunga algo, mas a equipe não se manifesta, mantendo o rigor da observação mesmo quando a observada explicita a presença da câmera e da equipe.

Por uma série de razões, voltarei a As Vilas Volantes. Uma primeira aproximação deixou a forte impressão de se conseguir ali um olhar para espaços e para vivências realmente forte e poderoso em suas opções narrativas, no uso do som das entrevistas-depoimentos, na retenção do ambiente no tempo dos planos, com uma aposta convicta na linguagem, convicção essa ausente de muitos documentários para cinema. E o fato de Vasconcelos e Veras estarem no Ceará, terem trabalhado juntos em As Vilas Volantes e manifestarem esquinas claras em suas propostas estéticas, estimula a curiosidade sobre a continuidade de ambos – além de aumentar a curiosidade sobre a produção cearense. Ela está indo para determinada linha, de um recolhimento da palavra e da informação, ou esses seriam objetos-exceções?


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