Do Outro Lado (Auf der Anderen Seite),
de Fatih Akin (Alemanha/Turquia/Itália, 2007)
por Julio Bezerra

A lei do cineasta

No panteão dos “autores” contemporâneos desde o Urso de Ouro ganho no Festival de Berlim 2004 por Contra a Parede, o cinema do alemão de ascendência turca Fatih Akin ganhou o mundo embalado por premiações importantes, de um lado, e encontros étnicos e um suposto debate sobre identidades globalizadas, do outro. Mas o que nos confirma este Do Outro Lado, seu quinto filme (cujo roteiro, para variar, foi premiado em Cannes), é que Akin é antes de tudo um cineasta das “temáticas urgentes”.

Na trama, duas histórias paralelas. Nejat (Baki Davrak) é um alemão de origem turca e professor universitário sem muita convicção. Seu pai, Ali, (Tuncel Kurtiz) se apaixona pela prostituta Ayten (Nurgul Yesilkay) e termina por convidá-la a morar com ele. Esta precisa do dinheiro ganho no trabalho para enviar à filha, Yeter (Nursel Kose), que vive em Istambul e faz parte de um grupo de ativistas políticos. O quadro se completa com Lotte (Patrycia Ziolkowska) e sua mãe Susanne (Hanna Schygulla, veterana dos tempos de Fassbinder).Como não poderia ser diferente, a relação entre Ali e Ayten acaba em tragédia, o que leva Nejat a procurar Yeter na capital turca. Ela, por sua vez, foge da Turquia e se refugia na casa de Lotte, por quem se apaixona. Nesta rede de tensos (des)encontros movidos por uma ordem da coincidência, há lógica em excesso, esquematismo em demasia. Os acasos são exageradamente organizados e, quando colocados em associação com outros acasos, nos deixam ver o esqueleto do roteiro. Akin amarra a convivência entre os núcleos narrativos, mas deixa alguns personagens resumidos, recorrendo sempre a situações e diálogos de uma funcionalidade visível que revelem suas personalidades e algo a mais sobre a trama.

Do outro lado se vende como um filme sobre dramas individuais, mas seus personagens permanecem como ilustrações de um tema. Akin, assim como o Paul Haggis de Crash ou Alejandro Gonzáles Iñarritu, é um prisioneiro de seus esquemas e temas – com a diferença de que é preciso reconhecer o domínio dos elementos cinematográficos que Haggis e Iñarritu têm. Talvez seja exagero afirmar que Do Outro Lado seja a ilustração visual das palavras, sem nenhuma disposição de trabalhar na elaboração das cenas, pois Akin até mostra uma certa disposição para criar atmosferas. No entanto, fato é que ele filma mal: a fotografia é dura e nada sedutora (= suposto naturalismo) e as seqüências de perseguição, por exemplo, nunca geram a tensão que prometem.

Os desdobramentos relacionados à segunda metade do longa ainda tornam o filme repetitivo (como acontece, por exemplo, com a marcação da passagem de “capítulos”), além de um tanto banal, resultando em uma queda substancial no nível de energia. Os personagens mais importantes desta metade e seus respectivos atores não ajudam. A jovem turca é uma caricatura a perambular com um discurso raso, supostamente de resistência, enquanto seu par romântico, a estudante alemã, é de uma ingenuidade incrivelmente artificial.

O melodrama está presente o tempo todo – Akin diz, inclusive, que este seu novo filme seria o segundo de uma trilogia em resposta a chamada trilogia BRD de Fassbinder (O Casamento de Maria Braun, Lola e Veronika Voss). No entanto, trata-se de um melodrama cheio de vergonha e recalque, que nunca ousa dizer seu nome. Em determinado momento, a personagem de Schygulla entra em um hotel em Istambul e se entrega ao sofrimento da perda da filha. Akin, no entanto, nos mantém em uma distância segura e não-contaminada, observando a cena em plongée, do ponto de vista de uma câmera de vigilância. Os sentimentos nunca se tornam nossos. No que diz respeito ao desenho das emoções, Do Outro Lado parece sempre um passo na frente do espectador.

Mesmo no campo das ilustrações, o discurso do filme vem recheado de contradições: se por um lado a personagem de Schygulla parece simbolizar uma Alemanha-mãe, compreensiva e experiente, do outro, todos os personagens turcos ou de ascendência turca, terminam o filme, assim como em Contra a Parede, longe da Alemanha. Se Akin trabalha bem a simbiose das duas culturas no nível lingüístico, quando personagens misturam as línguas alemã e turca em uma mesma sentença, Do Outro Lado pune todas as “transgressões” de suas criações e empreende uma certa domesticação dos afetos. O próprio tema da busca por identidade também se apresenta um tanto confuso. Akin insiste, por exemplo, no peso das origens. É claro que ele existe, mas o grande diferencial desta nossa pós-modernidade é o fato de não mais prestarmos contas a uma interioridade psicológica baseada no conflito (que sempre caracterizou a subjetividade moderna), tampouco a valores supra-individuais ou a meta-narrativas tradicionais, de natureza religiosa, política ou histórica. É este dilema da absoluta liberdade e do incontornável desnorteamento que ela provoca que sublinha estes debates sobre identidades globalizadas tão marcadamente presentes hoje.

Em uma entrevista a um jornal canadense, Akin falou de um momento de muitas idéias logo após o sucesso de Contra a Parede. O realizador revela que o desafio era colocar todas estas idéias em um próximo filme: Do Outro Lado é o estranho reflexo deste projeto totalizante.

Julho de 2008

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