Arraste-me Para o Inferno (Drag Me to Hell),
de Sam Raimi (EUA, 2009)
por Paulo Santos Lima

De volta para o futuro

Acusado de ser um retorno de Sam Raimi ao gênero que o consagrou, o terror, Arraste-me para o Inferno está mais para uma digressão a partir de Homem-Aranha. "Acusado", porque ir pelo caminho fácil de ver o filme simplesmente através do gênero no qual ele se encaixa é reduzi-lo a um mero item etiquetável. É acusá-lo também porque, mesmo com orçamento mais modesto que o das superproduções recentes do diretor, os procedimentos não coincidem com os de um Evil Dead. Atende apenas à velha idéia romântica do “retorno”, fetichização pela pureza criativa como se não houvesse todo um percurso e presença de molde produtivo que determinassem muito o que vai ser, de fato, um filme. É curioso, contudo, como o humor – este sim um elemento bastante presente nos trabalhos do diretor desde sempre – é o que coloca Arraste-me para o Inferno ainda mais próximo dos três Homem-Aranha. Porque a chave, agora, é outra que não a que surgia destacada e delimitada em meio ao clima de terror de fitas como Evil Dead 2 e O Exército das Sombras. O humor, agora, é um componente de tensão extra, que aditiva o jogo, e trabalha mais atrelado ao sentido, como um tempero de pronunciado acento. Assim, se a própria experiência já é bastante complexa, com o filme lidando com o drama, o terror, o romance e a comédia, ter tudo isso salpicado com o escracho tumultua bastante a percepção.

Não há, por exemplo, como deixar de detectar a ironia, a patetice e o pavor na trajetória descendente da protagonista da história, Christine, uma bancária que, para conseguir uma promoção, nega-se a renovar a hipoteca de uma velha que, cigana e bruxa, vai lhe rogar a praga de ser atazanada até ser arrastada para o inferno. O filme já vai trabalhar, desde o princípio, numa alternância de sentidos bastante dinâmica. O drama de Christine, interiorana que tenta a sorte na cidade e ainda se vê em apuros no trabalho com um colega de ofício traiçoeiro, é só a plataforma de lançamento de um foguete que vai rasgar os ares em direção ao riso e à tensão – para chegar, decerto, numa crônica mordaz sobre a fatalidade das coisas num mundo completamente absurdo. Essa conclusão não advém de uma “leitura a partir”, mas sim de como o filme trabalha seus enunciados. Enuncia-se algo, que por sua vez motiva a personagem, que em seguida empreende a mudança, mas sem sucesso – e a tensão está, fundamentalmente, em como Christine vai afundando mais e mais na sua tentativa de fazer as pazes com a velha. Todos os projetos que surgem a partir do que foi apresentado pelo drama deságuam em terrível desastre.

Estamos, definitivamente, na chave da comédia, cuja lógica de funcionamento da engrenagem do mundo é maluca, com os seres tendo de lidar com o inesperado, quase como uma força superior. Numa comparação breve, Christine é o oposto aos personagens de Jerry Lewis: loser por excelência, ela, passiva ou precariamente, toma caldo da engrenagem, ao passo que Lewis peita espetacularmente a complexidade da máquina das coisas do mundo. Se voltamos aos primeiros longas de Raimi, vemos que a comédia simplesmente surgia simples na tela, como elemento destacado e inserido ao lado dos outros sentidos; como elemento, e não estrutura – era apenas um item. Já em Arraste-me para o Inferno, a presença do humor, além de mais complexa e estrutural, é o que cria a sensação “terrorífica”, pois a atmosfera que rege a diegese é de um certo azar, ou seja, de uma força superior que prescreve a ladeira. É, também, uma certa visão de mundo ameaçador e ridículo, com vilanias no trabalho, exclusivismo social, mercantilização da crença etc.

Essa visão mais larga está nos três Homem-Aranha, mas ali a lógica conteudística é oposta – fala-se do mundo e tal, mas se vai do azar ao sucesso. Há, neste Arraste-me, um outro olhar sobre as coisas, mais sagaz porém fatalista, e nisso, certamente, pode-se dizer que Raimi voltou ao seu pretérito cinematográfico e a uma visão apadrinhada do gênero do terror, na total subserviência ao místico e ao superior desconhecido. Não deixa de ser mordaz esse comentário que o filme faz, mas é fato o quanto Raimi trabalha aqui com mais ferramentas industrializadas, inclusive repetindo funcionalidades já utilizadas pelo cinema – como o muitíssimo bem trabalhado mas tradicionalíssimo som. Isso não é uma falha, mas, antes, uma confirmação de que Arraste-me para o Inferno não se faz virtuoso por trabalhar com borderô mais enxuto, parecer que Raimi revisitou seu clássico inventivo Evil Dead e, portanto, se fazer como um “cinema de invenção”. Longe disso.

O que ele fizera nos Homem-Aranha, sobretudo o segundo, inovando no modo como a câmera acompanha os vôos do herói, achatando oticamente suas aéreas, é efetivamente uma criação típica de um esteta. A virtude do novo filme estaria no olhar sardônico sobre as coisas? Sim, certamente, mas os Homem-Aranha também possuíam um olhar crítico sobre vários assuntos contemporâneos. Aliás, o olhar, esse termo que veste tão bem as confirmações de autoria, não é, assim, tão importante aqui. É um mero fetichismo, nada além. O que faz deste Arraste-me para o Inferno um filme tão interessante é justamente como ele encontra o humor e o deboche através de um jogo narrativo muito bem caligrafado, devedor total do bom cinema narrativo americano. Uma vida separa o clássico de 1981 e este filme de entressafra realizado às portas de 2010. Criação antes, manipulação irreverente e debochada das peças industriais agora, sagração autoral antes e funcionalismo agora – o que importa isso?

Setembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta